A narrativa que segue está relatada numa carta, cujo original temos em mão e que transcrevemos textualmente.
“Viviers, † 10 de abril de 1741.
“Ninguém no mundo, meu caro Noailles, melhor do que eu pode informar-vos de tudo quanto se passou na cela da Irmã Maria e se a descrição que fizestes nos expôs ao ridículo em nossa cidade; quero partilhá-lo convosco. A força da verdade vencerá sempre em mim o medo de passar por um visionário e um homem demasiado crédulo.
“Eis, pois, um pequeno relato de tudo o que vi e ouvi durante quatro noites que ali passei, e comigo mais de quarenta pessoas, todas dignas de fé. Só vos narrarei os fatos mais notáveis.
A 23 de março, dia da Anunciação, † soube, pela voz pública, que há três dias, ouviam-se, todas as noites, grandes ruídos na cela da Irmã Maria; que as duas irmãs de São Domingos, que moram com ela tinham ficado tão apavoradas que mandaram chamar o Sr. Chambon, cura de Saint-Laurent, o qual tendo vindo àquela cela a uma hora da madrugada, ouvira os quadros batendo nas paredes, uma pia de água benta, de louça, mover-se com ruído, e uma cadeira de madeira, colocada no meio da cela, ser derrubada seis vezes. Confesso, senhor, que ao ouvir esse relato não deixei de zombar; as devotas renderam-se à minha crítica e, desde então, resolvi ir passar a noite seguinte na casa da Irmã Maria, convencido de que, em minha presença, tudo se passaria em silêncio ou eu descobriria a impostura. Com efeito, naquele mesmo dia, às nove horas da noite, dirigi-me àquela casa. Interroguei muitas irmãs, sobretudo a Irmã Maria, que me pareceu informada da causa de todos esses ruídos, mas ela não nos quis comunicar. Então, fiz uma busca minuciosa em seu quarto; olhei por cima e por baixo da cama; as paredes, os quadros, tudo foi examinado com cuidado. Nada tendo descoberto que pudesse provocar todos esses ruídos, mandei que todos saíssem do quarto, com ordem de que ninguém entrasse senão eu. Posicionei-me no quarto vizinho, junto à lareira; deixei aberta a porta da cela e na soleira coloquei uma vela, de modo que via, do meu lugar, a um passo do leito, a cadeira que havia colocado e quase todo o quarto. Às dez horas os senhores d’Entrevaux e Archambaud vieram juntar-se a mim e, com eles, dois artesãos de nossa cidade.
“Cerca de onze e meia ouvi a cadeira mexer-se e logo acorri; ao encontrá-la caída, levantei-a, tomei uma segunda, que coloquei a maior distância do leito da doente, pois não queria perdê-la de vista. Os senhores d’Entrevaux e Archambaud tomaram a mesma precaução e, após um momento, nós a vimos mexer-se pela segunda vez; a pia de água benta, colocada no leito da Irmã Maria, mas a uma distância que ela não podia atingir, tiniu várias vezes e um quadro bateu três vezes na parede. Naquele momento fui falar com a nossa doente; encontrei-a extremamente oprimida e dessa opressão ela caiu num desfalecimento ou perdeu a consciência e o uso de todos os sentidos, que se reduziram à audição; eu próprio fui o seu médico; por meio de água de lavanda, em pouco tempo voltou a si. De quinze em quinze minutos ouvíamos o mesmo ruído e, achando sempre os quadros no mesmo estado, ordenei a esse barulhento, fosse quem fosse, que batesse três vezes o quadro na parede e invertesse a sua posição; logo fui obedecido. Um instante depois, ordenei-lhe que pusesse o quadro na posição anterior, recebendo uma segunda prova de sua submissão às minhas ordens.
“Como nada percebi de barulhento no quarto a não ser uma cadeira, dois quadros e uma pia de água benta, apossei-me de todos esses objetos; então o ruído deslocou-se para as imagens, que ouvimos mover-se várias vezes, e para um pequeno crucifixo pendurado à parede por um prego. Nada mais vimos ou ouvimos nessa noite; tudo ficou calmo e tranquilo às cinco horas da manhã. Não fizemos segredo sobre tudo quanto tínhamos visto e ouvido e vos deixo a pensar se não fui iludido em minha visão. Exortei os mais incrédulos a acreditar; lá fomos três noites seguidas e eis o que me pareceu mais surpreendente. Só vos relatarei certos fatos, pois seria muito longo se quisesse entrar em detalhes. Por ora deve bastar vos diga que os senhores Digoine, Bonfils, d’Entrevaux, Chambon, Faure, Allier, Aoust, Grange, Bouron, Bonnier, Fontènes, Robert e tantos outros os testemunharam.
“Tendo-se espalhado na cidade o boato de que a Irmã Maria podia ser a atriz dessa comédia, desde então modifiquei o bom conceito em que a tinha; quis mesmo suspeitar de fraude e, embora seja ela paralítica, segundo o testemunho de nosso médico e de todos que dela se aproximam e nos asseguram que há mais de três anos apenas movimenta a cabeça, presumi que ela pudesse agir e, com tal suposição, senhor, eis de que maneira me conduzi:
“Durante três dias consecutivos, às nove horas da noite, dirigi-me à casa da irmã. Preveni-a quanto aos expedientes que ia tomar para não ser enganado, em presença dos cinco ou seis senhores já citados. Fiz costurá-la em seu hábito; ela estava disposta e envolvida no leito como uma criança de um mês em seu berço. Tomei ainda dois papelotes, colocando-os em forma de cruz sobre o peito, de modo que não podia fazer qualquer movimento sem que a cruz se desfizesse.
“Nesse mesmo dia ela tinha revelado o mistério ao Padre Chambon, que a dirige na ausência do Sr. Bispo, e ao Padre David, diretor de nosso seminário. O primeiro pediu-lhe e lhe permitiu que me informasse a causa de todos esses ruídos; então entrei na confidência e ela me informou que era uma alma sofredora, cujo nome indicou, e que vinha com a permissão de Deus para que aliviassem suas penas. Assim instruído e prevenido contra o erro, não deixei ninguém no quarto. Éramos oito naquela noite e todos determinados em nada acreditar. Por volta das onze horas os quadros e a pia de água benta se fizeram ouvir. Então o Sr. Digoine e eu nos fomos colocar à porta, com uma lâmpada à mão; é preciso notar que a cela é pequena, que do meio eu podia alcançar as quatro paredes apenas estendendo os braços. Mal nos postamos e o quadro bateu na parede; corremos imediatamente, encontrando o quadro sem movimento e a doente na mesma situação; retomamos o nosso lugar e, tendo o quadro batido segunda vez, corremos à primeira pancada e vimos o quadro girar no ar e rodar sobre o leito. Coloquei-o na janela; um momento depois ele bateu três vezes, à vista de todos. Querendo cada vez mais me convencer da verdade contada pela Irmã Maria, ordenei ao Espírito sofredor que tomasse o crucifixo da parede e o pusesse no peito da doente; ele logo obedeceu. Todos os senhores que estavam comigo foram testemunhas. Ordenei-lhe que recolocasse o crucifixo no lugar e movesse a pia com força; também obedeceu; como, então, eu tivera o cuidado de pôr a pia à vista de todos, ouvimos o ruído e vimos o movimento. Não sendo tais sinais suficientes para me convencer, exigi novas provas. Coloquei uma mesa ao pé do leito da doente e disse a esse Espírito sofredor que de boa vontade lhe ofereceríamos votos e preces, mas sendo o sacrifício da missa o meio mais seguro para o alívio de suas penas, ordenei que desse tantas pancadas sobre a mesa quantas missas quisesse que fossem ditas para ele. Bateu no mesmo instante e contamos trinta e três pancadas. Então entramos em acordo para nos desobrigar daquela incumbência o quanto antes e, durante o tempo destinado para isto, os quadros, a pia e o crucifixo batiam ao mesmo tempo, com mais ruído que nunca.
“Eram duas horas da madrugada; mandei despertar o Padre Chambon, que testemunhou tudo quanto lhe havíamos contado, pois em sua presença fizemos repetir as 33 batidas. O Padre Chambon lhe ordenou que levasse o crucifixo para determinada cadeira; tão logo ouvimos uma pancada sobre esta, corremos e encontramos o crucifixo debaixo da cama, a um passo da cadeira. Pedi sucessivamente ao Cônego Digoine, ao Padre Chambon e ao Sr. Robert que se escondessem na cela para examinar se viam algo; ouviram duas vozes diferentes na cama da doente, distinguindo a desta perfeitamente, que fazia várias perguntas; quanto à outra, não puderam discernir a resposta, pois se explicava em tom muito baixo e rápido. Informado por esses senhores, fui conferi-lo com a Irmã Maria, que confessou o fato.
“Propus àqueles senhores dizer um De profundis pelo alívio das penas dessa alma sofredora e, acabada a prece, a cadeira tombou, os quadros bateram e a pia zuniu. Disse a esse Espírito que íamos dizer cinco Pater e cinco Ave em honra das cinco chagas de Nosso Senhor, e lhe ordenava, como prova de que a prece lhe agradava, derrubar a cadeira uma segunda vez, mas com mais força. Mal nos ajoelhamos, a cadeira, colocada sob as nossas vistas e a dois passos, caiu para frente, levantou-se e caiu para trás.
“Vendo a docilidade desse Espírito e sua presteza em obedecer, julguei poder tentar tudo. Pus 40 moedas sobre a cama da doente e ordenei-lhe que as contasse. Imediatamente ouvimos contá-las num copo de vidro que eu havia colocado perto. Peguei a moeda e coloquei-a sobre a mesa; ordenei a mesma coisa e logo ele obedeceu. Pus um escudo de seis francos e mandei que com ele indicasse o número de missas que lhe são necessárias; bate 33 vezes com o escudo na parede. Faço entrar no quarto os senhores Digoine, Bonfils e d’Entrevaux, afastamos as cortinas do leito, colocamos a vela sobre este e mando o Espírito bater e nos designar o número de missas. Vemos, os quatro, a Irmã Maria sempre no mesmo estado, sem movimento e com os papelotes em forma de cruz, ainda dispostos, e contamos 33 batidas na parede. É de notar que no quarto vizinho, separado por esta parede, não havia vivalma; tínhamos tido o cuidado de afastar tudo quanto fizesse suscitar em nós a menor suspeita.
“Por fim, senhor, tentei uma nova via; escrevi estas palavras num papel: Eu te ordeno, alma sofredora, que nos digas quem és, tanto para nossa consolação quanto para a sustentação de nossa fé. Escreve, pois, o teu nome neste papel ou, pelo menos, faz nele uma marca para conhecermos a necessidade que tens de nossas preces. Coloco este escrito debaixo da cama da doente, com um tinteiro e uma pena; um instante depois ouço a pia tilintar; acorremos todos ao ruído e, ao mesmo tempo, achamos o papel e o crucifixo sobre ele. Ordeno-lhe que ponha o crucifixo em seu lugar e marque o papel; então dissemos a ladainha da Virgem e, acabada a prece, encontramos o crucifixo em seu lugar e por baixo do papel duas cruzes feitas com a pena. O Padre Chambon, que estava muito perto do leito, ouviu o ruído da pena no papel. Eu poderia contar-vos muitos outros fatos igualmente surpreendentes, mas o detalhe me levaria muito longe.
“Sem dúvida perguntareis, caro senhor, o que penso desta aventura. Vou fazer minha profissão de fé. Em primeiro lugar estabeleço que o ruído que vi e ouvi tem uma causa. Os quadros, a cadeira, a pia, etc., são seres inanimados, que não podem mover-se por si mesmos. Qual, então, a causa que lhes deu movimento? Necessariamente, é preciso que seja natural ou sobrenatural; se for natural, não pode ser senão a Irmã Maria, pois havia apenas ela no quarto. Não se pode pretender que o ruído tenha sido produzido por molas; examinamos tudo com a máxima atenção, até desmontando os quadros, e se um simples cabelo tivesse respondido pela pia ou pela cadeira nós o teríamos percebido.
“Ora, eu digo que a Irmã Maria não é a causa; ela não quis, ou melhor, ela não nos pôde enganar. Será possível que uma menina em perfeito estado de santidade, uma jovem cuja vida é um milagre contínuo, pois está provado que há três anos não come, não bebe e que de seu corpo não tem saído, senão uma quantidade de pedras; que uma donzela que sofre há seis anos tudo quanto se pode sofrer e sempre com uma paciência admirável; que uma moça que só abre a boca para orar, deixando transparecer, em tudo o que diz, a mais profunda humildade, tenha querido nos enganar, impondo-se assim a todo um público, ao seu bispo, ao seu confessor e a uma multidão de sacerdotes que a interrogaram a respeito? Acho em tudo quanto ela diz uma coerência maravilhosa, jamais a menor contradição, caráter único da verdade, pois a mentira não se sustentaria. Não creio que os mártires tenham sofrido mais do que esta santa; há épocas do ano em que o seu corpo é uma chaga só; vê-se saindo sangue e pus pelos ouvidos e, com muita frequência, lhe arrancam vermes muito compridos, que saem pelas narinas; ela sofre e pede continuamente a Deus que a faça sofrer. Uma coisa maravilhosa é que todo ano, na quinzena da Páscoa, é tomada por um vômito de sangue; passado o vômito, a garganta fica desobstruída, ela recebe o santo viático e um instante depois se fecha totalmente; foi o que lhe aconteceu quarta-feira última.
“Em segundo lugar digo que ela não nos pôde enganar, pois está fora de estado de agir; como já disse, é paralitica e uma senhorita de nossa cidade ficou plenamente convencida quando lhe enterrou uma calibrosa agulha na coxa. Aliás, vedes as precauções que tomamos. Costuramo-la em seu hábito e muitas vezes com guarda à vista. Então não é ela. Quem é, então? Perguntais. A consequência é fácil de tirar de tudo quanto tenho a honra de vos dizer neste relato.
“Assinado: † Abade de Saint-Ponc, † cônego apresentador.”
Observação – Há evidente analogia entre estes fatos e os do Espírito batedor de Bergzabern e de Dibbelsdorf, relatados na Revista Espírita de maio, junho, julho e agosto de 1858, salvo, neste, que o Espírito nada tinha de malévolo. São constatados por um homem cujo caráter não pode ser suspeito, e que não observou levianamente. Se, como pretendem certas pessoas, só o diabo se manifesta, como viria junto de uma moça em estado de perfeição espiritual? Ora, é de notar que esta não era apavorada nem atormentada; ela própria sabia e as experiências constataram, que era uma alma sofredora. Se não é o diabo, então outros Espíritos podem comunicar-se?
Duas circunstâncias têm analogia particular como a que hoje vemos. Antes de mais, o primeiro pensamento é que haja fraude da parte da pessoa junto à qual se produzem os fenômenos, a despeito das impossibilidades materiais que, por vezes, existem. Na situação física e moral dessa moça, não se compreende que a suspeita de uma encenação tenha podido entrar no espírito das outras religiosas.
O segundo fato é mais importante. Se alguns dos fenômenos ocorreram à vista das pessoas presentes, a maior parte deles se produziu quando elas estavam no quarto vizinho, de costas e na ausência de luz direta, como muitas vezes se tem observado em nossos dias. A que se deve isto? É o que não está ainda suficientemente explicado. Tendo esses fenômenos uma causa material, e não sobrenatural, poderia acontecer, como em certas operações químicas, que a luz difusa fosse mais favorável à ação dos fluidos de que se serve o Espírito. n A física espiritual ainda está na infância.
[1] N. do T.: Parece que se dá exatamente o inverso: a luz difusa causa dissolução dos fluidos.