1. — Senhores e caros colegas,
A Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas começou seu quinto ano
em 1º de abril de 1862 e, temos de convir, jamais o fez sob melhores
auspícios. Esse fato não tem importância somente do nosso ponto de vista
pessoal, mas é característico, sobretudo, do ponto de vista da doutrina
em geral, porquanto prova, de maneira evidente, a intervenção de nossas
guias espirituais. Seria supérfluo lembrar a origem modesta da Sociedade
[v. Revista
de maio de 1858 e
julho de 1859,] bem como as circunstâncias, de certo modo providenciais,
de sua constituição, circunstâncias para as quais um Espírito eminente,
então no poder e depois recolhido ao mundo dos Espíritos, nos disse
ter contribuído poderosamente ele próprio. [v. Um
oficial superior morto em Magenta.]
Haveis de lembrar, senhores, que a Sociedade teve as suas vicissitudes; tinha em seu seio elementos de dissolução, provenientes da época em que se recrutava gente muito facilmente, e sua existência chegou mesmo, em certa ocasião, a ser comprometida. Naquele momento pus em dúvida a sua utilidade real, não como simples reunião, mas como sociedade constituída. Fatigado pelas adversidades, estava resolvido a retirar-me; esperava que, uma vez livre dos entraves semeados em meu caminho, trabalharia melhor na grande obra empreendida. Fui dissuadido do meu intento por numerosas comunicações espontâneas, que me foram dadas de diferentes lugares. Entre outras, uma há, cuja substância agora me parece útil vos dar a conhecer, porque os acontecimentos justificaram as previsões. Ela estava assim concebida:
“A Sociedade formada por nós com o teu concurso é necessária; queremos que subsista e subsistirá, não obstante a má vontade de alguns, como tu o reconhecerás mais tarde. Quando existe um mal, não se cura sem crise. Assim é do pequeno ao grande: no indivíduo como nas sociedades; nas sociedades como nos povos; nos povos como o será na Humanidade. Dizemos que nossa Sociedade é necessária. Quando deixar de o ser sob a forma atual, transformar-se-á, como todas as coisas. Quanto a ti, não podes nem deves te retirar. Contudo, não pretendemos subjugar o teu livre-arbítrio; apenas dizemos que a tua retirada seria um erro que um dia lamentarias, porque entravaria os nossos desígnios…”
Desde então, dois anos se passaram e, como vedes, a Sociedade felizmente superou aquela crise passageira, cujas peripécias me foram todas assinaladas, e das quais um dos resultados foi dar-nos uma lição de experiência, que aproveitamos, além de provocar medidas que não temos senão que aplaudir. Desembaraçada das preocupações inerentes ao seu estado anterior, pôde a Sociedade prosseguir livremente os seus estudos; seus progressos também foram rápidos e ela cresceu a olhos vistos, não direi numericamente, embora seja mais numerosa do que nunca, mas em importância. Oitenta e sete membros, participando das cotizações anuais figuraram na lista do ano que findou, sem contar os sócios honorários e correspondentes. Ter-lhe-ia sido fácil dobrar, e mesmo triplicar esse número, se ela visasse receita; bastava cercar as admissões de menos dificuldades. Ora, longe de diminuir essas dificuldades, ela as aumentou, porque, sendo uma Sociedade de estudos, não quis afastar-se dos princípios de sua instituição e porque jamais fez questão de interesses materiais. Não procurando entesourar, era-lhe indiferente ser um pouco mais, ou um pouco menos numerosa. Sua preponderância não decorre absolutamente do número de seus membros; está nas ideias que estuda, que elabora e divulga; não faz propaganda ativa; não tem agentes nem emissários; não pede a ninguém que venha a ela e, o que pode parecer extraordinário, é a essa mesma reserva que deve a sua influência. A respeito, eis o seu raciocínio: Se as ideias espíritas fossem falsas não criariam raízes, pois toda ideia falsa só tem existência passageira; mas, se são verdadeiras, prevalecerão a despeito de tudo, pela convicção; impô-las seria o pior meio de propagá-las, porque toda ideia imposta é suspeita e trai a sua fraqueza. As ideias verdadeiras devem ser aceitas pela razão e pelo bom-senso; onde elas não germinam é porque a estação ainda não é propícia; é preciso esperar e limitar-se a lançar a semente ao vento, pois, mais cedo ou mais tarde, algumas cairão em terreno menos árido.
O número de membros da Sociedade é, assim, uma questão muito secundária; porque hoje, menos que nunca, ela não poderia ter a pretensão de absorver todos os adeptos; seu objetivo, por estudos conscienciosos, feitos sem preconceitos e sem partido, é o de elucidar as várias partes da ciência espírita, pesquisar as causas dos fenômenos e recolher todas as observações, susceptíveis de esclarecer o problema tão importante, tão palpitante de interesse do estado do mundo invisível, de sua ação sobre o mundo visível e das inumeráveis consequências que daí resultam para a Humanidade. Por sua posição e pela multiplicidade de suas relações, ela se acha nas mais favoráveis condições para observar bem e bastante. Seu fim é, pois, essencialmente moral e filosófico; mas o que, acima de tudo, deu crédito aos seus trabalhos é a calma, a gravidade que a eles aplica; é que aí tudo é discutido friamente, sem paixão, como devem fazer as pessoas que de boa-fé buscam esclarecer-se; é porque sabem que ela só se ocupa de coisas sérias; é, enfim, a impressão que os numerosos estrangeiros, muitas vezes oriundos de países distantes, levaram da ordem e da dignidade das sessões a que assistiram.
2. — Assim, a linha que ela seguiu dá os seus frutos. Os princípios que professa, baseados em observações conscienciosas, hoje servem de regra à imensa maioria dos espíritas. Vistes caírem, sucessivamente, a maioria dos sistemas que surgiram no começo e apenas alguns ainda conservam raros partidários. Isto é incontestável. Quais, então, as ideias que crescem e quais as que declinam? É uma questão de fato. A doutrina da reencarnação foi o mais controvertido dos princípios e seus adversários nada pouparam para abrir uma brecha, nem mesmo as injúrias e grosserias, supremo argumento daqueles a quem faltam boas razões. Nem por isso deixou de fazer o seu caminho, porque se apoia numa lógica inflexível; porque sem esta alavanca nós nos defrontamos com dificuldades insuperáveis; enfim, porque nada encontraram de mais racional para o substituir.
3. — Há, entretanto, um sistema que, mais que nunca, se firma hoje: o sistema diabólico. Na impossibilidade de negar as manifestações, pretende um partido provar que são obra exclusiva do diabo. A obstinação com que defendem tal ideia revela que não estão muito convencidos de ter razão, ao passo que os espíritas não se inquietam absolutamente com essa demonstração de forças, deixando que se gastem. Nesse momento ele ataca em todos os flancos: discursos, pequenas brochuras, grossos volumes, artigos de jornais. É um ataque geral para demonstrar o quê? Que aqueles fatos, que em nossa opinião testemunham o poder e a bondade de Deus, atestariam, ao contrário, o poder do diabo; assim, deduz-se que o diabo é mais poderoso que Deus, visto só ele poder manifestar-se. Atribuindo ao diabo tudo quanto é bom nas comunicações, retiram o bem a Deus para homenagear o demônio. Nós nos julgamos mais respeitosos para com a Divindade. Aliás, como já dissemos, os espíritas pouco se inquietam com esse motim, que terá por efeito destruir, um pouco mais cedo, o prestígio de Satã.
4. — Sem o emprego de meios materiais, e embora restrita numericamente por sua própria vontade, a Sociedade de Paris não deixou de fazer uma propaganda considerável pela força do exemplo; a prova disto é o número incalculável de grupos espíritas que se formam pelos mesmos processos, isto é, de acordo com os princípios que ela professa; é o número de sociedades regulares que se organizam e querem colocar-se sob o seu patrocínio, existentes em várias cidades da França † e do estrangeiro, na Argélia, † na Itália, † na Áustria, † no México, † etc. O que fizemos para isto? Fomos à sua procura? Solicitamos? Enviamos emissários, agentes? Absolutamente; nossos agentes são as obras. As ideias espíritas se espalham numa localidade; a princípio aí quase não ecoam; depois, pouco a pouco, ganham terreno; os adeptos sentem necessidade de se reunirem, menos para fazer experiências do que para conversar sobre um assunto que lhes interessa. Daí os milhares de grupos particulares, que podem ser chamados familiares. Destes, alguns adquirem maior importância numérica. Pedem-nos conselhos e, assim, insensivelmente se forma essa rede, que já fincou balizas em todos os pontos do globo.
5. — Naturalmente, senhores, cabe aqui uma observação muito importante sobre a natureza das relações que existem entre a Sociedade de Paris e as reuniões ou sociedades fundadas sob os seus auspícios, e que seria erro considerar como sucursais.. A Sociedade de Paris † não tem, sobre aquelas, outra autoridade senão a da experiência; mas, como já disse em outra ocasião, não se imiscui em seus negócios; seu papel limita-se a conselhos oficiais, quando solicitados. O laço que as une é, .pois, puramente moral, fundamentado na simpatia e na similitude das ideias; entre elas não há nenhuma filiação, nenhuma solidariedade material; a única palavra de ordem é a que deve unir todos os homens: caridade e amor ao próximo, palavra de ordem pacífica e que não deixa margem a dúvidas.
6. — A maior parte dos membros da Sociedade reside em Paris; † entretanto, conta alguns que residem na província ou no estrangeiro e, embora só compareçam excepcionalmente, alguns jamais vieram a Paris desde a sua fundação, mas têm a honra de pertencer aos seus quadros. Além dos membros propriamente ditos, ela tem correspondentes, mas suas relações, puramente científicas; apenas objetivam mantê-la ao corrente do movimento espírita nas diversas localidades e me fornecem documentos para a história do estabelecimento do Espiritismo, cujos materiais estou a recolher. Entre os adeptos, alguns há que se distinguem pelo zelo, pela abnegação e pelo devotamento à causa do Espiritismo; que pagam pessoalmente, não em palavras, mas em ações. A Sociedade sente-se feliz por lhes dar um testemunho particular de simpatia, conferindo-lhes o título de membros honorários.
7. — Nos últimos dois anos a Sociedade tem crescido em reputação e em importância; mas os seus progressos são assinalados pela natureza das comunicações que recebe dos Espíritos. Com efeito, de algum tempo a esta parte, suas comunicações adquiriram proporções e desenvolvimentos que superaram de muito a nossa expectativa; já não são, como outrora, breves fragmentos de moral banal, mas dissertações, nas quais as mais altas questões,de filosofia são tratadas com uma amplidão e uma profundidade que delas fazem verdadeiros discursos. Foi o que observou a maioria dos leitores da Revista.
8. — Sinto-me feliz em noticiar um outro progresso, no que respeita aos médiuns. Jamais, em nenhuma outra época, os vimos tantos, participando dos nossos trabalhos, pois chegamos a ter quatorze comunicações na mesma sessão. Contudo, mais precioso que a quantidade, é a qualidade, cuja importância pode ser julgada pelas instruções que nos são dadas. Nem todos apreciam a mediunidade do mesmo ponto de vista. Uns a avaliam pelo efeito; para estes, os médiuns velozes são os mais notáveis e os melhores. Para nós, que, antes de tudo, buscamos a instrução, damos mais valor àquilo que satisfaz ao pensamento do que ao que contenta os olhos. Assim, preferimos um médium útil, com o qual aprendemos alguma coisa, a um médium admirável, com quem nada aprendemos. Sob este ponto de vista não temos por que nos lastimar e devemos agradecer aos Espíritos por terem cumprido a promessa que fizeram, de não nos deixarem desprevenidos. Querendo ampliar o círculo de seus ensinos, deviam multiplicar também os instrumentos.
9. — Há, porém, um ponto ainda mais importante, sem o qual tal ensino só teria produzido alguns frutos, ou nenhum. Sabemos que os Espíritos estão longe de possuir a soberana ciência e que se podem enganar; que, muitas vezes, emitem as próprias ideias, justas ou falsas; que os Espíritos superiores querem que o nosso julgamento se aperfeiçoe em discernir o verdadeiro do falso, o que é racional daquilo que é ilógico. Eis por que jamais aceitamos, seja o que for, de olhos fechados. Logo, não poderia haver ensino proveitoso sem discussão. Mas, como discutir comunicações com médiuns que não admitem a menor controvérsia, que se ofendem com uma observação crítica, com um simples comentário, e ficam contrariados quando não são aplaudidos pelas coisas que recebem, mesmo aquelas eivadas das mais grosseiras heresias científicas? Essa pretensão não teria cabimento se aquilo que escrevem fosse produto de sua inteligência; é ridícula, desde que não passam de instrumentos passivos, pois se assemelham a um ator que se sentiria melindrado caso achássemos maus os versos que deve recitar. Não sendo seu próprio Espírito passível de magoar-se com uma crítica que não o atinge, é, por conseguinte, o Espírito comunicante que se sente ofendido e transmite ao médium a sua impressão. Por isto mesmo o Espírito trai a sua influência, porque quer impor suas ideias pela fé cega, e não pelo raciocínio; ou, o que vem a dar no mesmo, porque só ele quer raciocinar. Disso resulta que o médium, que se acha em tais disposições, está sob o império de um Espírito que merece pouca confiança, desde que exibe mais orgulho que saber. Sabemos, também, que os Espíritos dessa categoria geralmente afastam os médiuns dos centros onde não são aceitos sem reservas.
Essa imperfeição, em médiuns assim atingidos, é um enorme obstáculo ao estudo. Se não buscássemos senão o efeito, isto não teria importância para nós; mas como buscamos a instrução, não podemos nos eximir de discutir, mesmo com o risco de desagradar aos médiuns. Como sabeis, outrora alguns se retiravam por este motivo, embora não confessado, e porque não conseguiram impor-se perante a Sociedade como médiuns exclusivos e como intérpretes infalíveis das potências celestes. Aos seus olhos, os obsedados são aqueles que não se inclinam diante de suas comunicações. Alguns levam a sua susceptibilidade a ponto de se escandalizarem com a prioridade dada à leitura das comunicações recebidas por outros médiuns. Quando é que uma comunicação é preferida à sua? Compreende-se o mal-estar imposto por tal situação. Felizmente, no interesse da ciência espírita, nem todos são assim e me apresso em aproveitar a ocasião para, em nome da Sociedade, agradecer aos que hoje nos prestam o seu concurso com tanto zelo e devotamento, sem calcular esforço nem tempo e que, não tomando partido por suas comunicações, são os primeiros a não fugirem da controvérsia que podem provocar.
10. — Em resumo, senhores, só nos podemos congratular pelo estado da Sociedade, do ponto de vista moral; ninguém há que não tenha observado uma notável diferença no espírito dominante, em comparação ao que era no princípio, e cada um sente instintivamente a impressão, traduzida em muitas circunstâncias por fatos positivos. É incontestável que aí reina menos mal-estar e constrangimento, enquanto se faz sentir um sentimento de mútua benevolência. Parece que os Espíritos trapalhões, vendo a sua impotência para semear a desconfiança, tomaram o sábio partido de retirar-se. Também só podemos aplaudir a feliz ideia de vários membros, de organizarem reuniões particulares em suas casas. Elas têm a vantagem de estabelecer relações mais íntimas; além disso, são centros para uma porção de pessoas que não podem vir à Sociedade. Aí podem ter uma primeira iniciação; podem fazer numerosas observações que, depois, convergem para o centro comum. Enfim, são laboratórios para a formação de médiuns. Agradeço muito sinceramente às pessoas que me honraram oferecendo a sua direção, mas isso me era materialmente impossível. Lamento mesmo muito não poder estar aí tanto quanto desejaria. Conheceis minha opinião a respeito dos grupos particulares; assim, faço votos por sua multiplicação, na Sociedade ou fora dela, em Paris ou alhures, porque são os agentes mais ativos da propaganda.
11. — Do ponto de vista material, nosso tesoureiro vos explicou a situação da Sociedade. Sabeis perfeitamente, senhores, que o nosso orçamento é muito simples; como não procuramos capitalizar, basta que haja equilíbrio entre o ativo e o passivo.
Peçamos, pois, aos bons Espíritos e, em particular, ao nosso presidente espiritual, São Luís, que continuem a nos prestar a sua benevolente proteção, concedida tão ostensivamente até hoje e da qual nos esforçaremos cada vez mais por nos tornarmos dignos.
Resta-me, senhores, chamar a vossa atenção para uma coisa importante. Quero falar do emprego dos dez mil francos que me foram enviados há cerca de dois anos por um assinante da Revista Espírita, que quis guardar o anonimato. Certamente vos lembrais de que esse donativo, a ser empregado no interesse do Espiritismo, foi-me entregue pessoalmente, sem formalidades especiais, sem recibo e sem que eu devesse prestar contas a quem quer que fosse.
Comunicando à Sociedade essa feliz circunstância, declarei, na
sessão de 17 de fevereiro de 1860, que não pretendia prevalecer-me
daquela prova de confiança e que, para minha própria satisfação, desejava
que aquele fundo fosse submetido a um controle. E acrescentei: “Esta
soma formará o primeiro fundo de uma caixa especial, sob o nome
de Caixa do Espiritismo [v. Relatório
da Caixa do Espiritismo.] e que nada terá em comum com os meus negócios
pessoais. Será posterior-mente aumentada com as somas que lhe puderem
chegar de outras fontes e destinada exclusivamente às necessidades da
doutrina e ao desenvolvimento das ideias espíritas. Um de meus primeiros
cuidados será suprir o que estiver faltando materialmente à Sociedade
para a regularidade de seus trabalhos, e para a criação de uma biblioteca
especial [v. Publicidade
das comunicações espíritas]. Pedi a vários colegas que aceitassem
o controle dessa caixa e verificassem, em datas que serão determinadas
posteriormente, o útil emprego desse fundo.”
Essa comissão, hoje parcialmente desfeita pelas circunstâncias, será completada quando for necessário; então, todos os documentos lhe serão fornecidos. Enquanto aguardamos, e tendo em vista a absoluta liberdade que me foi concedida, julguei conveniente aplicar essa soma no desenvolvimento da Sociedade. É a vós, senhores, que julgo dever prestar contas da situação, tanto para desobrigar-me pessoalmente, quanto para a vossa edificação.
Insisto, sobretudo, para que bem se compreenda a impossibilidade material de usar esse fundo em despesas cuja urgência se faz sentir cada vez mais, em razão da própria extensão dos trabalhos que reclama o Espiritismo.
12. — Como sabeis, senhores, a Sociedade sentia vivamente os inconvenientes de não ter um local especial para as sessões e onde seus arquivos pudessem estar à mão. Para trabalhos como os nossos é preciso, por assim dizer, um local consagrado, onde nada possa perturbar o recolhimento. Cada um deplorava a necessidade em que nos encontrávamos de nos reunirmos num estabelecimento público, em desarmonia com a seriedade de nossos estudos. Desse modo, julguei fazer uma coisa útil, proporcionando-lhe os meios de dispor de um local mais conveniente, com o auxílio dos fundos que havia recebido.
Por outro lado, o progresso do Espiritismo traz à minha casa um número cada vez maior de visitantes, nacionais e estrangeiros, número que pode ser calculado em mil e duzentos a mil e quinhentos por ano, sendo preferível recebê-los na própria sede da Sociedade, nela concentrando todos os negócios e todos os documentos relativos ao Espiritismo.
Quanto a mim, acrescentarei que, consagrando-me inteiramente à doutrina, tornava-se de certo modo necessário, para evitar perda de tempo, que aí tivesse o meu domicílio ou, pelo menos, uma pousada. Para mim pessoalmente não havia a menor necessidade, pois tenho em casa um apartamento que nada me custa, mais agradável sob todos os aspectos, e onde habito tanto quanto mo permitem minhas ocupações. Um segundo apartamento teria sido uma despesa inútil e onerosa. Assim, sem o Espiritismo, eu estaria tranquilamente em casa, na Avenida Ségur, † e não aqui, obrigado a trabalhar da manhã à noite e, muitas vezes, da noite à manhã, sem mesmo poder repousar um pouco, o que me seria bastante necessário. Sabeis que sou sozinho para dar conta de uma tarefa cuja extensão dificilmente as pessoas imaginam, e que necessariamente aumenta com o desenvolvimento da doutrina.
13. — Este apartamento reúne as vantagens desejáveis por suas disposições internas e sua situação central. Sem nada ter de suntuoso, é muito conveniente; mas sendo os recursos da Sociedade insuficientes para pagar o aluguel integralmente, vi-me forçado a completá-lo com os fundos da doação. Sem isto a Sociedade teria de permanecer na situação precária acanhada e incômoda em que antes se achava. Graças a esse suplemento, foi possível imprimir aos seus trabalhos desenvolvimentos prontamente acolhidos pela opinião pública, de maneira vantajosa e proveitosa para a doutrina. É, pois, o emprego passado e a destinação futura dos fundos da doação que julgo dever comunicar-vos.
O aluguel do apartamento custa 2.500 francos por ano e, com os acessórios, 2.530 francos. As contribuições perfazem 198 francos, totalizando 2.728 francos. A Sociedade paga de sua parte 1.200 francos; resta, pois, a completar, uma diferença de 1.528 francos.
O contrato foi feito por três anos, seis ou nove, a contar de 1º de abril de 1860. Calculando-o por apenas seis anos a 1.528 francos, temos 9.168 francos, ao que devemos acrescentar 900 francos para a compra de móveis e despesas de instalação; para doações e auxílios diversos, 80 francos. Total das despesas: 10.148 francos, sem contar os imprevistos, a pagar com o capital de 10.000 francos.
Portanto, no fim do contrato, isto é, daqui a quatro anos, haverá um excedente de despesa. Vedes, senhores, que não podemos desviar a menor soma, se quisermos chegar ao fim. Que faremos, então? Aquilo que Deus e os bons Espíritos quiserem, e que não me inquietasse, conforme me disseram estes últimos.
Quero frisar que a importância destinada à compra do material e às despesas de instalação não ultrapassa 900 francos, soma que gastei rigorosamente do capital. Se tivéssemos de adquirir todo o mobiliário aqui existente – refiro-me apenas às peças de recepção – haveria necessidade de três ou quatro vezes mais e, então, a Sociedade, em vez de seis anos de contrato, teria apenas três anos de aluguel. É, pois, o meu mobiliário pessoal que constitui a maior parte e que, devido ao uso, vem se desgastando severamente.
Em resumo, esta soma de 10.000 francos, que alguns julgavam inesgotável; acha-se quase inteiramente absorvida pelo aluguel que, antes de tudo, importava garantir por certo tempo, sem que tivesse sido possível desviar uma parte para outros fins, principalmente para a compra de obras antigas e modernas, francesas e estrangeiras, necessárias à formação de uma grande biblioteca espírita, como era projeto meu. Este único objetivo não teria custado menos de 3.000 a 4.000 francos.
Disso resulta que, exceto o aluguel, todas as despesas, tais como viagens e uma porção de gastos necessários ao Espiritismo, e que não chegam a menos de 2.000 francos por ano, estão pessoalmente a meu cargo, soma que não deixa de ser importante num orçamento restrito, que só se salda à custa de ordem, economia e mesmo de privações.
Não creiais, senhores, que eu queira conquistar méritos; assim agindo, sei que sirvo a uma causa, junto à qual a vida material nada é e pela qual estou pronto a sacrificar a minha. Talvez um dia eu tenha imitadores; aliás, estou bem recompensado pela visão dos resultados obtidos. Só lamento uma coisa: a exiguidade de meus recursos não me permite fazer mais. Com suficientes meios de execução, bem empregados, com ordem e em coisas verdadeiramente úteis, avançaríamos meio século no estabelecimento definitivo da doutrina.