(Quarto artigo. — Vide os números de dezembro de 1862, janeiro e fevereiro de 1863.)
30. — Numa segunda edição de sua brochura sobre a epidemia de Morzine, n o Dr. Constant responde ao Sr. de Mirville, que criticou o seu cepticismo relativo aos demônios e o censurou por não ter estado nos lugares. “É certo que ele se deteve em Thonon; † não, porém, por temer os diabos, mas o caminho; mas nem por isso se julga o homem menos informado. Censura-me ainda, como a outro médico, por ter partido de Paris † com juízo já formado. Com todo o direito, se me permite, posso devolver-lhe a censura: neste ponto estaremos, então, ex oequo [em igualdade].
Não sabemos se o Sr. de Mirville teria ido lá com a firme predisposição de não ver absolutamente nenhuma afecção física nos doentes de Morzine, † mas é bem evidente que o Dr. Constant lá foi com a de não ver nenhuma causa oculta. O preconceito, num sentido qualquer, é a pior condição para um observador, porque, então, tudo vê e tudo refere do seu ponto de vista, negligenciando o que pode haver de contrário. Certamente não é o meio de chegar à verdade.
A opinião inflexível do Dr. Constant, no que respeita à negação das causas ocultas, ressalta que ele, a priori, repele como errônea toda observação e toda conclusão que se afastem de sua maneira de ver, nos relatórios feitos antes do seu. Assim, enquanto o Dr. Constant insiste sobre a constituição débil, linfática e raquítica dos habitantes, a insalubridade da região, a má qualidade e a insuficiência da alimentação, o Dr. Arthaud, médico-chefe dos alienados de Lyon, † que foi enviado a Morzine, diz em seu relatório “que a constituição dos habitantes é boa e os escrofulosos são raros; não obstante todas as suas pesquisas, apenas descobriu um caso de epilepsia e um de imbecilidade.” Mas, replica o Dr. Constant, “o Dr. Arthaud só passou alguns dias na região; assim, não pôde ver senão pequena parte da população; além disso, é muito difícil obter informações sobre as famílias.”
31. — Um outro relatório assim se exprime sobre o mesmo assunto:
Nós, abaixo assinados, declaramos que tendo ouvido falar dos casos extraordinários, levados à conta de possessão de demônios, e ocorridos em Morzine, transportamo-nos para aquela paróquia, n onde chegamos em 30 de setembro último (1857), para testemunhar o que se passava e examinar tudo com maturidade e prudência, esclarecendo-nos por todos os meios fornecidos pela presença no lugar, a fim de poder formar um juízo razoável em semelhante matéria.
“1º – Vimos oito jovens que estão libertas e cinco em estado de crise; a mais moça tem dez anos e a mais velha, vinte e dois.
“2º – Conforme tudo quanto nos dizem e que pudemos observar, essas jovens estão em perfeito estado de saúde; fazem todas as obras e trabalhos que reclamam sua posição, de sorte que não se vê, quanto aos outros hábitos e ocupações, nenhuma diferença entre elas e as demais moçoilas da montanha.
“3º – Vimos estas moças, as não curadas, nos momentos de lucidez. Ora, podemos assegurar que nada foi observado nelas, seja idiotia, seja predisposição para as crises atuais, por falhas de caráter ou por exaltação de espírito. Aplicamos a mesma observação às que são curadas. Todas as pessoas que consultamos sobre os antecedentes e os primeiros anos dessas moças nos garantiram que elas estavam, no que respeita à inteligência, no mais perfeito estado.
“4º – O maior número destas moças pertence a famílias honestas e abastadas.
“5º – Asseguramos que pertencem a famílias que gozam de boa reputação, entre as quais existem algumas cuja virtude e piedade são exemplares.”
Daqui a pouco daremos a continuação deste relatório, relativamente a certos fatos. Queríamos apenas constatar que nem todos viram as coisas sob cores tão negras quanto o Dr. Constant, que representa os habitantes como vivendo na extrema miséria, e dos mais cabeçudos, obstinados e mentirosos, embora no fundo fossem bons e, sobretudo; piedosos, ou, antes, devotos. Ora, quem tem razão? Somente o Dr. Constant, ou vários outros, não menos honrados, que certificam ter bem observado? De nossa parte não vacilamos em nos colocar ao lado dos últimos, em razão daquilo que vimos e do que nos disseram várias autoridades médicas e administrativas da região, e a manter a opinião emitida em nossos artigos precedentes.
Para nós a causa primeira não está na constituição, nem no regime higiênico dos habitantes, porquanto, como fizemos notar, há muitas regiões, a começar pelo Valais † limítrofe, em que as condições de toda natureza, morais e outras, são infinitamente mais desfavoráveis e onde, entretanto, não se alastra essa doença. Daqui a pouco nós a veremos circunscrita, não ao vale, mas apenas aos limites da comuna de Morzine n Se, como afirma o Dr. Constant, a causa fosse inerente à localidade, ao gênero de vida e à inferioridade moral dos habitantes, perguntamos, ainda, por que o efeito é epidêmico e não endêmico, como o bócio e o cretinismo no Valais? Por que as epidemias do mesmo gênero, de que fala a História, se produzem nas casas religiosas onde nada falta e que se encontram nas melhores condições de salubridade?
32. — Não obstante, eis o quadro que o Dr. Constant faz do caráter dos habitantes de Morzine:
“Uma estada prolongada, visitas sucessivas e diárias mais ou menos em cada casa, permitiram-me chegar a outras constatações.
“Os habitantes de Morzine são afáveis, honestos, de grande piedade; talvez fosse mais acertado dizer de grande devoção.
“São obstinados e dificilmente renunciam a uma ideia que adotaram, o que, além de outros inconvenientes, acrescenta o de os tornarem litigantes, outra fonte de mal-estar e de miséria, porque as condições não são fáceis. Mas só muito raramente a justiça criminal encontra culpados entre eles.
“Têm um semblante grave e sério, que parece um reflexo da natureza áspera que os rodeia e que lhes imprime uma espécie de marca particular, que os faria ser tomados por membros de uma vasta comunidade religiosa. Com efeito, sua existência pouco difere da de um convento.
“Seriam inteligentes, se seu raciocínio não fosse obscurecido por uma profusão de crenças absurdas ou exageradas, por um invencível arrastamento para o maravilhoso, legado pelos séculos passados e ainda não curado no século atual.
“Todos gostam de contos e histórias impossíveis. Conquanto honestos por natureza, alguns mentem com imperturbável altivez, para sustentar o que disseram no gênero. Estou convencido de que eles acabam mentindo de boa-fé, por crerem nas próprias mentiras e nas dos outros. Para ser justo, é preciso dizer que a maioria não mente, limitando-se a contar vagamente o que viu.”
33. — Aos nossos olhos, a causa é independente das condições físicas dos homens e das coisas. Se manifestamos tal opinião, não é com a ideia preconcebida de ver por toda parte a ação dos Espíritos, já que ninguém admite sua intervenção com mais reserva que nós, mas por uma analogia que notamos entre certos efeitos e os que nos são demonstrados como resultado evidente de uma causa oculta. Mas, ainda uma vez, como admitir essa causa quando não se crê na existência dos Espíritos? Como admitir, com Raspail, as afecções produzidas por seres microscópicos, se se nega a existência de tais animálculos, porque não foram vistos? Antes da invenção do microscópio, Raspail teria passado por louco, por ver animais em toda parte; hoje, que se está muito mais esclarecido, não se veem Espíritos. Para isso, no entanto, só falta pôr óculos.
Não negamos que haja efeitos patológicos na afecção de que se cuida, porque a experiência no-los mostra muitas vezes em casos semelhantes; mas dizemos que são consecutivos e não causais. Se um médico espírita tivesse sido enviado a Morzine, teria visto o que outros não viram, sem, por isso, negligenciar os fatos fisiológicos.
34. — Depois de haver falado do Sr. de Mirville que, diz ele, se deteve no caminho, acrescenta o Dr. Constant:
“O Sr. Allan Kardec fez a viagem completa. Nos números de dezembro de 1862 e janeiro de 1863 da sua Revista Espírita, já publicou dois artigos, que não passam de preliminares; o exame dos fatos virá no número de fevereiro. Entretanto, já nos adverte que a epidemia de Morzine é semelhante à que assolou a Judeia, † ao tempo do Cristo. É bem possível.
“Com o risco de ser censurado por alguns leitores, que talvez achassem que eu faria melhor se não falasse dos Espíritos, conclamo vivamente aos que lerem esta brochura a ler o mesmo assunto nos autores que acabo de citar.
“Todavia, não deveriam equivocar-se quanto ao objetivo de meu convite; quanto mais leitores sérios houver para as obras do Espiritismo, mais cedo será feita completa justiça a uma crença, a uma ciência, como dizem, sobre a qual talvez eu pudesse arriscar uma opinião, depois de haver constatado tantas vezes o seu resultado: o contingente bastante notável que ele fornece anualmente à população de nossos asilos de alienados.”
Por aí se pode ver com que ideias o Dr. Constant foi a Morzine. Certamente não o levaremos a pensar como nós; apenas lhe diremos que está demonstrado pela experiência que o resultado da leitura das obras espíritas é completamente diferente do que ele espera, pois tal leitura, em vez de fazer pronta justiça a essa pretensa ciência, anualmente multiplica os adeptos aos milhares; que hoje são contados no mundo inteiro por cinco ou seis milhões, dos quais a décima parte só na França. Se ele objetasse que todos são tolos e ignorantes, nós lhe perguntaríamos por que essa doutrina conta no número de seus mais firmes partidários tão grande número de médicos em todos os países, tanto dos que assinam a Revista, como o atesta a nossa correspondência, quanto dos que presidem ou fazem parte de grupos e sociedades espíritas, sem falar do número não menos expressivo de adeptos pertencentes a posições sociais, aonde só se chega pela inteligência e pela instrução. Isto é um fato material que ninguém pode negar. Ora, como todo efeito tem uma causa, a causa desse efeito está no fato de o Espiritismo não parecer a toda a gente assim tão absurdo, levando alguns a dizerem: — Infelizmente é verdade, exclamam os adversários da doutrina; assim, não temos mais de cobrir o rosto pela sorte da Humanidade em sua marcha para a decadência.
35. — Resta a questão da loucura, o lobisomem de hoje, com o auxílio do qual se procura amedrontar as populações, que quase já não se alvoroçam, como bem se vê. Quando esse meio estiver esgotado, certamente conceberão outro; enquanto se espera, chamamos a atenção dos leitores para o artigo publicado no número de fevereiro de 1863, intitulado A Loucura Espírita.
Os primeiros sintomas da epidemia de Morzine se manifestaram em março de 1857, em duas meninas de cerca de dez anos. No mês de novembro seguinte o número de doentes era de vinte e sete e em 1861 atingiu a cifra máxima de cento e vinte.
Se déssemos conta dos fatos segundo o que vimos, poderiam dizer que vimos o que quisemos ver. Aliás, chegamos no declínio da doença e ali não ficamos o bastante para tudo observar. Citando as observações alheias, não nos acusarão de somente ver pelos próprios olhos.
36. — Tomamos as observações que se seguem do relatório [31] cujo extrato fizemos acima:
“Essas moçoilas falam francês durante a crise com admirável facilidade, mesmo as que, fora daí, só conhecem algumas palavras.
“Uma vez em crise, as jovens perdem completamente a reserva, seja para o que for; também perdem inteiramente toda afeição de família.
“De ordinário a resposta é pronta e fácil; dir-se-ia que vem antes da interrogação. Esta resposta é sempre ad rem [pertinente], exceto quando quem fala responde por tolices, insultos ou uma recusa afetada.
“Durante a crise o pulso fica calmo e, no maior furor, a personagem tem um ar de domínio, como alguém que tivesse a cólera sob o seu comando, sem parecer exaltada nem tomada por um acesso de febre.
“Notamos durante as crises uma insolência extraordinária, que ultrapassa qualquer limite, em mocinhas que, fora desse estado, são doces e tímidas.
“Durante a crise há em todas as meninas um caráter de impiedade permanente, levado além de todo o limite, dirigido contra tudo o que lembra Deus, os mistérios da religião, Maria, os santos, os sacramentos, a prece, etc.; o caráter dominante desses momentos terríveis é o ódio a Deus e a tudo quanto a ele se refere.
“Constatamos muito bem que essas jovens revelam coisas que chegam de longe, bem como fatos passados de que não tinham conhecimento; também revelaram pensamentos de várias pessoas.
“Algumas vezes anunciaram o começo, a duração e o fim das crises, o que farão mais tarde e o que não farão.
“Sabemos que deram respostas exatas a perguntas feitas em línguas que elas desconheciam, como alemão, latim, etc. “No estado de crise essas jovens são dotadas de uma força desproporcional à sua idade, pois são precisos três ou quatro homens para conter, durante o exorcismo, meninas de dez anos.
“É de notar-se que, durante a crise, as meninas não sofrem danos materiais, nem pelas contorções, que parecem capazes de deslocar os membros, nem pelas quedas, nem pelas pancadas que se dão com violência.
“Em suas respostas há sempre a distinção de várias personagens: a filha e ele, o demônio e o danado.
“Fora da crise essas meninas não guardam nenhuma lembrança do que disseram ou fizeram, quer a crise tenha durado todo o dia, quer tenham feito trabalhos prolongados ou incumbências dadas no estado de crise.
“Para concluir, diremos:
“Que a nossa impressão é de que tudo isto é sobrenatural, na causa e nos efeitos; e, conforme as regras da lógica e de tudo quanto nos ensinam a teologia, a história eclesiástica e o Evangelho,
“Declaramos que, em nossa opinião, há uma verdadeira possessão do demônio.
“Em testemunho do que,
Assinado: ***
Morzine, 5 de outubro de 1857.
37. — Eis como o Dr. Constant descreve as crises dos doentes, de acordo com suas próprias observações:
“Em meio à mais completa calma, raramente à noite, de repente sobrevêm bocejos, espreguiçamentos, alguns tremores, pequenos solavancos de aspecto coréico † nos braços; pouco a pouco, e em curto espaço de tempo, como por efeito de descargas sucessivas, esses movimentos se tornam mais rápidos, depois mais amplos e logo não parecem mais que um exagero dos movimentos fisiológicos; a pupila se dilata e se contrai alternadamente e os olhos participam dos movimentos gerais.
“Nesse momento as doentes, cujo aspecto a princípio parecia exprimir terror, entram num estado de furor, que vai sempre crescendo, como se a ideia que as domina produzisse dois efeitos quase simultâneos: depressão e excitação logo depois.
“Elas batem nos móveis com força e vivacidade começam a falar, ou, melhor, a vociferar; o que dizem, mais ou menos todas, quando não superexcitadas por perguntas, reduz-se a palavras indefinidamente repetidas: “S… não! S… ch… gne! S… vermelho!” (Elas chamam vermelhos aqueles em cuja piedade não acreditam). Algumas acrescentam juramentos.
“Se junto delas não se acha nenhum espectador estranho; se não lhes fizerem perguntas, repetem incessantemente a mesma coisa, sem nada acrescentar; caso contrário, respondem ao que pergunta o espectador e mesmo aos pensamentos que lhes atribuem, às objeções que preveem, mas sem se afastarem da ideia dominante, a esta referindo tudo o que elas dizem. Assim, muitas vezes: “Ah! tu crês, b… descrente, que somos loucas, que apenas sofremos da imaginação! Somos danadas, s… n… de D…! Somos os diabos do inferno!”
“E como é sempre um diabo que fala pela sua boca, o suposto diabo algumas vezes conta o que fazia na Terra, o que fez depois no inferno, etc.
“Em minha presença acrescentavam invariavelmente:
“Não são os teus s… médicos que nos curarão! Nós nos f… muito bem de teus remédios! Podes perfeitamente fazer a menina tomar; eles a atormentarão e a farão sofrer. Mas a nós eles nada farão, porque somos diabos! É de santos padres e de bispos que precisamos, etc.
“O que não os impede de insultar os sacerdotes, quando estes estão presentes, sob o pretexto de que não são bastante santos para ter ação sobre os demônios. Perante o prefeito e os magistrados, era sempre a mesma ideia, mas com outras palavras.
“À medida que elas falam, sempre com a mesma veemência, suas fisionomias não têm outro aspecto senão o do furor. Por vezes o pescoço incha e a face se injeta; noutras, empalidece, como sói acontecer às pessoas normais que, conforme a constituição, coram ou empalidecem durante um violento acesso de cólera; frequentemente os lábios estão úmidos de saliva, o que leva a dizer que as doentes espumavam.
“Limitados inicialmente às partes superiores, os movimentos ganham sucessivamente o tronco e os membros inferiores, a respiração torna-se ofegante; as doentes redobram o furor, tornam-se agressivas, deslocam móveis e atiram cadeiras, tamboretes, isto é, tudo que lhes cai às mãos, sobre os assistentes; precipitam-se sobre estes para lhes bater, tanto nos parentes quanto nos estranhos; jogam-se ao chão, sempre continuando com os mesmos gritos; rolam-se, batem as mãos no solo e mesmo no próprio peito, no ventre, na região anterior do pescoço e procuram arrancar algo que parece incomodá-las nesses pontos. Viram-se e reviram-se de um salto só; vi duas que, levantando-se como que impulsionadas por uma mola, se inclinavam para trás de tal modo que a cabeça tocava o solo ao mesmo tempo que os pés.
“Esta crise dura mais ou menos dez, vinte minutos, meia-hora, conforme a causa que a provocou. Se é a presença de um estranho, sobretudo um padre, é muito raro que termine antes que a pessoa se tenha afastado; neste caso os movimentos convulsivos não são contínuos: depois de terem sido violentos, enfraquecem e param para recomeçar imediatamente, como se, esgotada, a força nervosa repousasse um momento para se refazer. “Durante a crise, o pulso e os batimentos cardíacos não estão acelerados; dá-se comumente o contrário: o pulso se concentra, torna-se fraco, lento e as extremidades se esfriam; apesar da violência da agitação e dos golpes furiosos desferidos de todos os lados, as mãos ficam geladas.
“Contrariamente ao que se vê muitas vezes em casos análogos, nenhuma ideia erótica se mistura ou parece juntar-se à ideia demoníaca. Eu mesmo me surpreendi com essa particularidade, por ser comum a todas as doentes: nenhuma diz a mais leve palavra ou faz o menor gesto obsceno. Em seus mais desordenados movimentos, jamais se descobrem e se seus vestidos se levantam um pouco quando rolam por terra, é muito raro que não os recomponham imediatamente.
“Não parece que haja aqui lesão da sensibilidade genital; assim, jamais se tratou de íncubos e súcubos, ou de cenas de feitiçaria. Todas as doentes pertencem, como demonomaníacas, ao segundo dos quatro grupos indicados pelo Sr. Macário; algumas escutam a voz dos diabos; muito mais geralmente falam por sua boca.
“Depois da grande desordem, pouco a pouco os movimentos se tornam menos rápidos; alguns gases se escapam pela boca e a crise termina. A doente olha em redor com ar um pouco espantando, arruma os cabelos, apanha e coloca o seu gorro, bebe alguns goles de água e retoma o seu trabalho, caso fizesse algum quando a crise começara. Quase todas dizem não sentir cansaço, nem se lembram do que disseram ou fizeram.
“Nem sempre esta última afirmação é sincera; surpreendi algumas que se lembravam muito bem; apenas acrescentavam: “Bem sei que ele (o diabo) disse ou fez tal coisa, mas não sou eu. Se minha boca falou, se minhas mãos bateram, era ELE que as fazia falar e bater; bem que eu queria ficar tranquila, mas ELE é mais forte que eu.”
“Esta é a descrição do estado mais frequente; mas entre os extremos existem vários graus, desde a doente que só tem crises de gastralgia, até a que chega ao último paroxismo do furor. Feito este reparo não encontrei, em nenhuma das doentes visitadas, diferenças dignas de nota, à exceção de umas poucas.
“Uma, chamada Jeanne Br…, quarenta e oito anos, solteira, histérica de velha data, sente animais que não passam de diabos, que lhe correm pelo rosto e a mordem.
“A mulher Nicolas B…, trinta e oito anos, doente há três anos, late durante as crises. Atribui sua doença a um copo de vinho que bebeu em companhia de um desses que fazem mal.
“Jeanne G…, trinta e sete anos, não casada, é aquela cujas crises diferem mais. Não tem movimentos clônicos generalizados, que se veem nas outras e quase nunca fala. Desde que sente vir a crise, vai sentar-se e se põe a balançar a cabeça para a frente e para trás; inicialmente lentos e pouco pronunciados, os movimentos vão se acelerando e acabam fazendo a cabeça descrever um círculo com incrível rapidez, cada vez mais amplo, até vir alternativa e regularmente bater o dorso e o peito. A intervalos o movimento cessa por um instante e os músculos contraídos mantêm a cabeça fixa na posição em que se encontrava ao parar, sem que seja possível, mesmo com esforços, reerguê-la ou flexioná-la.
“Victoire V .., vinte anos, foi uma das primeiras a adoecer, aos dezesseis anos. Assim conta seu pai o que ela sofreu:
“Jamais tinha sentido algo, quando um dia foi assaltada pelo mal na igreja. Durante os dois ou três primeiros dias apenas saltava um pouco. Um dia trouxe o meu jantar na paróquia, onde eu trabalhava; nesse momento o sino tocava, anunciando o Ângelus, quando, de repente, ela se pôs a saltar e se jogou no chão, gritando e gesticulando, jurando após o badalar do sino. Como casualmente lá se achasse o cura de Montriond, † ela o injuriou, chamou-o s… ch… de Montriond. O cura de Morzine também veio para junto dela, no momento em que a crise terminava, mas logo ela recomeçou, porque ele fez o sinal da cruz em sua fronte. Tinham-na exorcizado várias vezes, mas vendo que nada a curava, nem exorcismos nem outra coisa, levei-a a Genebra, † ao Sr. La Fontaine (magnetizador); ali permaneceu um mês e voltou completamente curada. Guardou equilíbrio por cerca de três anos.
“Há seis semanas houve uma recidiva, mas ela já não tinha crise. Não queria ver ninguém e se trancava em casa; só comia quando eu tinha algo de bom para lhe dar, pois do contrário não podia engolir. Não se sustentava em pé e nem ao menos movia os braços. Várias vezes tentei pô-la de pé, mas ela não se sentia e logo caía, desde que eu não mais a sustentava. Então resolvi levá-la ao Sr. Lafontaine. Não sabia como conduzi-la; ela me disse: “Quando estiver na comuna de Montriond andarei bem.” Auxiliado por um de meus vizinhos, nós a carregamos até Montriond. Mas logo do outro lado da ponte ela andou só e se queixava apenas de um gosto horrível na boca. Depois de duas sessões com o Sr. Lafontaine já estava melhor e agora está empregada como doméstica.
“Foi geralmente notado, diz o Dr. Constant, que uma vez fora da comuna, só raramente as doentes têm crises.
“Um dia, o prefeito, que me acompanhava, foi surpreendido por uma doente que, violentamente, lhe atirou uma pedra contra o rosto. Quase ao mesmo instante outra doente se precipitava sobre ele, armada com um grande pedaço de pau, para também lhe bater. Vendo esta vir, ele lhe mostrou a extremidade pontiaguda de sua bengala ferrada, ameaçando perfurar-lhe o corpo, caso avançasse. Ela parou, deixou cair o porrete e contentou-se em injuriá-lo.
“Não obstante as corridas, os saltos e os movimentos violentos e desordenados das doentes; malgrado as pancadas a que se entregam, seus terrores e divagações, não se citam tentativas de suicídio nem acidentes graves com qualquer delas. Assim, não perdem inteiramente a consciência e ao menos subsiste o instinto de conservação.
“Se, ao iniciar a crise, uma mulher segura o filho nos braços, acontece muitas vezes que um diabo menos mau que o que vai operá-la lhe diz: “Deixa esta criança; ele (outro diabo) lhe faria mal.” Por vezes dá-se o mesmo quando têm uma faca ou outro instrumento susceptível de causar ferimentos.
“Como as mulheres, os homens sofreram a influência da crença que a todos deprime em graus diversos, embora neles os efeitos tenham sido menores e bastante diferentes. Alguns sentem absolutamente as mesmas dores que as mulheres; como estas, eles sentem sufocações, experimentam uma sensação de estrangulamento e acusam a sensação da bola histérica, mas nenhum chegou às convulsões; e se houve alguns raros exemplos de acidentes convulsivos, quase sempre podem ser atribuídos a um estado mórbido anterior e diferente. O único representante do sexo masculino que pareceu ter tido crises da mesma natureza que as das moças foi o jovem T… São geralmente as moças de quinze a vinte e cinco anos que foram atingidas. Ao contrário, no sexo oposto, com exceção do jovem T…, são apenas homens maduros, como acabo de dizer, aos quais as vicissitudes da vida poderiam perfeitamente ter trazido outras preocupações pré-existentes, ou acrescentadas às causadas pela doença.”
Depois de haver discutido a maioria dos fatos extraordinários narrados a respeito das doentes de Morzine, e tentado provar o estado de degradação física e moral dos habitantes em consequência de afecções hereditárias, acrescenta o Dr. Constant:
“É, pois, necessário ter como certo que tudo quanto se diz em Morzine, uma vez restabelecida a verdade,, acha-se consideravelmente reduzido. Cada um concebeu sua história e quis ultrapassar o outro. Tais exageros se encontram em todas os relatos de epidemias desse gênero. Ainda mesmo que alguns fatos fossem reais em todos os pontos e escapassem a toda interpretação, seria motivo para lhes buscar uma explicação fora das leis naturais? Corresponderia a dizer que todos os agentes, cujo modo de ação ainda não foram descobertos e escapam à nossa análise, são necessariamente sobrenaturais.
“Tudo o que se viu em Morzine, sobretudo aquilo que se conta poderá, para certas pessoas, ser interpretado como sinal manifesto de uma possessão, mas é, também, muito certamente, o de uma moléstia complexa que recebeu o nome de histero-demonomania.
“Em suma, acabamos de ver uma região cujo clima é rude e a temperatura muito variável, onde a histeria, em todos os tempos, foi considerada endêmica; uma população cuja alimentação, sempre a mesma para todos, mais pobres ou menos pobres, e sempre má, é composta de alimentos geralmente alterados, que podem provocar, e provocam, desarranjos das funções dos órgãos da nutrição e, por aí, nevroses particulares; uma população de constituição pouco robusta e especial, marcada muitas vezes por predisposições hereditárias; ignorantes e vivendo num isolamento quase completo; muito piedosa, mas de uma piedade que tem por base mais o medo que a esperança; muito supersticiosa e cuja superstição, essa chaga que São Tomé chamava um vício oposto à religião por excesso, tem sido mais alimentada que combatida; embalada por histórias de feitiçaria que são, fora das cerimônias da Igreja, a única distração que a severidade religiosa exagerada não pôde impedir; de uma imaginação viva, muito impressionável, que precisaria de algum alimento e que não o encontra senão nessas mesmas cerimônias.”
38a. — Resta-nos examinar as relações que podem existir entre os fenômenos acima descritos e os que se produzem nos casos de obsessão e subjugação bem constatados, o que sem dúvida cada um já terá notado: o efeito dos meios curativos empregados, as causas da ineficácia do exorcismo e as condições nas quais podem ser úteis. É o que faremos no próximo e último artigo.
Por ora diremos, como o Dr. Constant, que não há necessidade de buscar no sobrenatural a explicação dos efeitos desconhecidos; neste ponto concordamos perfeitamente com ele. Para nós os fenômenos espíritas nada têm de sobrenatural; revelam-nos uma das leis, uma das forças da Natureza que não conhecíamos e que produz efeitos até agora inexplicados. Evidenciada pelos fatos e pela observação, esta lei será mais irracional porque tem, como promotores, seres inteligentes, em vez de animais ou a matéria bruta? Será, então, um contrasenso acreditar em inteligências ativas além do túmulo, sobretudo quando se manifestavam de maneira ostensiva? O conhecimento desta lei, levando certos efeitos à sua causa verdadeira, simples e natural, é o melhor antídoto contra as ideias supersticiosas.
[1] Brochura in-8, Livraria de Adrien Delahaye, place de l’École-de-Médecine. Preço: 2 fr.
[2] N. do T.: A palavra paróquia (paroisse) não deve ser aqui entendida na sua acepção ordinária, de “circunscrição eclesiástica”, mas como “unidade administrativa rural do Antigo Regime (Ancien Régime) francês.”
[3] N. do T.: A grafia correta é Morzine, e não Morzines, como muitas vezes aparece no texto original.