1 Meus queridos pais:
Peço a Deus nos faça seguir para diante.
2 Dois anos são passados. Não me esqueço: os carros engarrafados e eu tentando aproveitar os minutos para pensar. Na retaguarda, surgiu o mastodonte que me colheu desprevenido. Foi um momento trágico, em que queria e não queria descer para acompanhar aquela batida estranha. De repente a minha visão estava toldada por uma névoa forte, surgida logo após a minha incapacidade de pensar.
3 Ouvi uma voz amiga que soube depois ser de nosso prezado amigo Aristides Nery: (5)
“Retire-se para fora, meu filho”, dizia ele com insistência. Eu, que não me dispunha a sair, num impulso instintivo, que não sei explicar, retirei-me inesperadamente. Entretanto, vi de imediato que não era mais o Lineu condutor do carro; era eu mesmo, de corpo modificado, ouvindo as palavras do amigo Nery, que se incumbiu de trazer enfermeiros que se concentravam junto de mim.
4 “Ah! Então eu morrera!”, pensei com tristeza.
Aristides Nery explicou-me que me libertara e que era preciso facear as ocorrências com cara e coragem.
5 Não se passaram dois minutos depois do nosso diálogo e o fogo irrompeu na grande máquina da retaguarda, transmitindo-se ao meu carro, que vi despedaçar-se.
6 Oh! papai, quanto segredo da vida por desvendar!
Enxergava meu corpo inerte e insensível alcançado pelas labaredas, via-me fora dele, com os amigos, seguindo a ocorrência inesperada.
7 Pensei em meu aniversário, em sua ausência temporária, refleti nas aflições da mamãe e não pude deixar de chorar copiosamente: Então os livros que Luciana e eu estivemos lendo exprimiam a verdade! (11)
8 Sabia que o senhor estava a caminho de Campo Grande e a ideia de que a sua presença seria nosso consolo, especialmente para a querida mana e para o cunhado Saturnino, me instilaram forças novas. (3)
9 “Seu pai virá em poucas horas”, disse Aristides Nery.
Lúcido, conquanto de ânimo alterado pela fogueira, vi quando os bombeiros retiravam meu corpo hirto para algum lugar.
Aristides Nery, porém, convidou-me para ir ao encontro do Saturnino e me declarou que o meu caso não me privava de reconfortar a família.
10 Nessa hora, mãezinha Elza e minha irmã já se haviam entregue à emoção do pranto inestancável e o telefone já se fizera sentir, chamando o senhor para nós. Isso me aliviou, sem trazer-me a paz que perdera com o incêndio destruidor.
11 Uma certa sensação de sono ou fadiga mental me tomou de todo quando o amigo Aristides Nery me avisou que não resistisse ao torpor de que me havia acometido. Conquanto a minha cabeça me desse a ideia de um vulcão interno, consegui dormir para despertar muito depois.
12 O nosso amigo de Igarapava (5) me fez sentir que a minha comoção agravaria a sua, papai, quando chegasse e acentuaria os sofrimentos da mãezinha Elza e que o sono me facultaria o ensejo de repouso, o qual livraria o senhor de receber, na condição de pai, as cargas de minhas emoções condensadas.
13 Foi assim que não mais procurei vê-los até que pudesse vir em Campo Grande rever a querida família.
14 Muito obrigado, meu pai, por todas as medidas que já iniciara para demonstrar que não perdi o meu corpo nas chamas que se levantaram e sim que o traumatismo craniano me arrancou da forma física antes que aquele quadro de guerra me extinguisse as forças.
15 Tivemos muitas lágrimas. O ambiente de Ituverava, entretanto, nos reconfortou. As observações da vovó Joana e as confidências da Luciana, contando-lhes que líamos livros que nos davam excelentes informações de outras vidas, foram consolo e bênção em seu coração e no coração da mamãe.
16 Depois, é o que sabemos: da luta para minha adaptação à Espiritualidade, o encontro com meus avós e as excursões de estudo, que ainda persistem e eis-me aqui, mais otimista e mais forte do que antes do acontecimento, considerado tragédia.
17 Se formos fazer a listagem dos benefícios que recebemos nesses dois anos, todas as nossas dores ficarão para trás.
18 Agradeço à mãezinha as flores que me ofertou junto com as suas lembranças e — quem sabe? — Talvez choremos de novo, refletindo nos fenômenos da saudade. Mas creiam, meus pais, seu filho está refeito e com lucidez em seus pensamentos.
19 Estamos na expectativa de tomar Ituverava para nossa residência e não estou contra, apenas lhe peço o tempo destinado à nossa preparação mental.
20 Sabemos que a Terra pertence a Deus, que confiou o espaço aos homens. Tentar ampliar o nosso espaço em Ituverava é ideia feliz mas precisamos agir com vagar. Querido papai Lineu e querida mãezinha Elza, vamos pensar.
21 Muito grato pelas alegrias com que vieram participar comigo da felicidade de minha libertação. Estamos juntos e estou contente.
22 Recebem nossos fluídos de amor; beijo as mãos queridas com o mesmo carinho e com a imensa saudade do filho agradecido de todos os dias.
Lineu de Paula Leão Júnior
12 de julho de 1987.