1.
De conformidade com o roteiro de serviço traçado pelo Assistente, Hipólito
e Luciana ficariam na Casa Transitória, atendendo as necessidades prementes
de Dimas recém-liberto, enquanto nós ambos acompanharíamos Fábio, em
processo desencarnacionista.
2 — Fábio permanece
em excelente forma, — esclareceu-nos o orientador, — e não exigirá cooperação
complexa. Preparou, com relação ao acontecimento, não somente a si mesmo,
senão também os parentes, que, ao invés de nos preocuparem, como acontece
comumente, serão úteis colaboradores de nossa tarefa.
3 Falava Jerônimo
com sólida razão porque, em verdade, mostrava-se Dimas em lastimável
abatimento. Apesar da fé que lhe aquecia o espírito, as saudades do
lar infundiam-lhe inexprimível angústia. 4
Às vezes, finda a conversação serena em que se revelava calmo e seguro
nas palavras, punha-se a gemer doridamente, chamando a esposa e os filhos,
inquieto. Em tais momentos, tornava aos sintomas da moléstia que lhe
vitimara o corpo denso e, com dificuldade, conseguíamos subtraí-lo à
estranha psicose, fazendo-o regressar à posição normal. 5
Tentava desvencilhar-se de nossa influência amiga, como se houvera enlouquecido
repentinamente, no propósito de fugir sem rumo certo. Gritava, gesticulava,
afligia-se, como sonâmbulo inconsciente.
6 Não pude dissimular
a surpresa que me assaltou diante da ocorrência. Se estivéssemos tratando
com criatura alheia aos serviços da espiritualidade superior, compreensível
seria o quadro que se desenrolava aos nossos olhos; mas Dimas fora instrumento
dedicado do Espiritismo evangélico, consagrara a existência às benditas
realizações da consoladora doutrina do túmulo vazio pela vida eterna.
7 De antemão, sabia
na Esfera carnal que seria submetido às lições da morte e que não lhe
faltariam ricas possibilidades de continuar junto da parentela, já dele
separada, aparentemente, segundo o simples ponto de vista material.
Porque semelhantes distúrbios? Não merecera ele excepcional atenção
de nossos superiores hierárquicos?
8 Vali-me de momento adequado
e expus ao nosso dirigente as indagações que me absorviam o raciocínio.
Sem qualquer nota admirativa, Jerônimo respondeu-me, bem humorado:
— Você deve saber, André, que cada qual de nós é, por si mesmo, todo
um mundo. Esclarecimentos e consolações são dádivas de Deus, Nosso Pai,
mas convicções e realizações constituem obra nossa. 9
Cada servidor tem a escala própria de edificações, na tábua de valores
imortais. A assembleia de aprendizes receberá a mesma bagagem de ensinamentos,
de modo geral, organizada para todos os indivíduos que a integram. Diferenciam-se,
porém, os alunos, na série do aproveitamento particular. O mérito não
é patrimônio comum, embora seja a glória do cume, a desafiar todos os
caminheiros da vida para a suprema elevação. 10
Dimas foi destacado discípulo do Evangelho, principalmente no setor
de assistência e difusão, mas, quanto a si mesmo, não fez aproveitamento
integral das lições recebidas. Espalhou as sementes da luz e da verdade,
dedicou-se largamente à causa do bem, merecendo, por isso mesmo, socorro
especialíssimo. Contudo, no campo particular, não se preparou suficientemente.
11 Qual ocorre à maioria
dos homens, prendeu-se demasiadamente às teias domésticas, sem maior
entendimento. Conferiu excessivo carinho à roda familiar, sem noção
de equidade, no caminho terrestre. Certamente, sob o ponto de vista
humano, consagrou-se o necessário à companheira e aos rebentos do lar;
mas, se lhes prodigalizou muita ternura, não lhes proporcionou todo
o esclarecimento de que dispunha, libertando-os da esfera pesada de
incompreensão. E agora, muito naturalmente, sofre-lhes o assédio. A
inquietude dos parentes atinge-o, através dos fios invisíveis da sintonia
magnética.
12 Sorriu, benévolo e continuou:
— Nosso irmão, inegavelmente, fez por merecer o auxílio de nosso Plano, pois conseguiu enfileirar amigos prestigiosos que lhe dedicam valiosos serviços intercessórios, mas não se preparou, interiormente, considerando-se as necessidades do desapego construtivo. Gastará, desse modo, alguns dias para edificar a resistência.
13 O ensinamento
significava muito para mim, que via tão dedicado servidor, cercado da
mais honrosa consideração, por parte das autoridades de nosso Plano,
em porfiada luta consigo mesmo para restaurar seu próprio equilíbrio.
14 E concluí, mais uma
vez, que o amor pode improvisar infinitos recursos de assistência e
carinho, acordando faculdades superiores do Espírito, mas que a lei
divina é sempre a mesma para todos. O obséquio é ofício sublime, no
culto ativo da cooperação fraterna; todavia, cada homem, por si, elevar-se-á
ao Céu ou descerá aos infernos transitórios, em obediência às disposições
mentais em que se prende.
2.
Atravessado curto período de proveitosas observações e marcada a libertação
do novo amigo, Jerônimo e eu tornamos à Crosta, de modo a desobrigar-nos
da incumbência.
2 Acercamo-nos do bairro pobre
em que Fábio situara o ninho doméstico. A casinha singela encantava.
Rodeada de folhagens e flores, via-se que todo o espaço merecera a ternura
dos moradores.
3 De longe, chegava
o barulho da enorme cidade. Espíritos vadios passavam de largo, em lamentável
promiscuidade. Nas adjacências erguiam-se alguns bangalôs novos, que
lhes ofereciam livre acesso, fazendo-nos adivinhar a triste influenciação
de que eram objeto. 4
Naquela residência pequena e humilde, havia, no entanto, paz e silêncio,
harmonia e bem-estar. À nossa apreciação, parecia delicioso oásis em
meio de vasto deserto.
4 Entramos.
Três amigos espirituais receberam-nos. Um deles, Aristeu Fraga, conhecido
pessoal de Jerônimo, abraçou-nos, festivo, e anunciou que faziam visita
ao enfermo, então nas últimas horas do corpo material. 5
Agradeceu-nos o interesse pelo desencarnante e apresentou-nos o irmão
Silveira, genitor de Fábio na Terra, que desejava colaborar conosco,
em favor do filho querido. 6
Estava satisfeito, informou. O filho arregimentara todas as medidas
relacionadas com a próxima libertação, submetendo-se, dócil, aos desígnios
superiores. Tivera existência modesta; limitara o voo das ambições mais
nobres, no culto da espiritualidade redentora; esforçara-se suficientemente
pela tranquilidade familiar; fora acicatado por dificuldades sem conto,
no transcurso da experiência que terminava; deixava a esposa e dois
filhinhos amparados na fé viva, e, embora não lhes legasse facilidades
econômicas, afastava-se do corpo físico, jubiloso e confortado, com
a glória de haver aproveitado todos os recursos que a Esfera superior
lhe havia concedido. 7
Além de haver-se afeiçoado profundamente ao Evangelho do Cristo, vivendo-lhe
os princípios renovadores, com todas as possibilidades ao seu alcance,
Fábio conseguira iluminar a mente da companheira e construir bases sólidas
no espírito dos filhinhos, orientando-os para o futuro.
3. Falava-se tão bem, acerca do companheiro, que, admitido à palestra, arrisquei uma pergunta:
2 — Fábio desencarnará na
ocasião prevista?
— Sim, — elucidou Jerônimo, com gentileza, — estamos de posse das instruções.
Nosso amigo desencarnará no tempo devido.
— É verdade, — confirmou o pai emocionado, — ele aproveitou todos os recursos
que se lhe conferiu, malgrado o corpo franzino e doente, desde a infância.
3 Traindo a condição de médico
sempre interessado em estudar, considerei:
— É lamentável tenha renascido em semelhante organismo, quem sabe servir com
tanto valor à causa do bem…
4 O genitor sentiu-se na necessidade
de esclarecer o assunto, porque prosseguiu, calmo:
— Este é, de fato, argumento humano dos mais ponderáveis. Quando na
carne, frequentes vezes surpreendi-me com a saúde frágil de Fábio, em
criança. 5 Desde cedo,
notei-lhe a virtude inata, o pendor para a retidão e para a justiça,
as disposições congênitas para os trabalhos da fé viva. Passei longas
noites na justa preocupação de pai, em vista do porvir incerto. Como
poderia nascer alma tão sensível e formosa, como a dele, em vaso tão
imperfeito? 6 Aos doze
anos, foi atacado de pneumonia dupla, que quase o arrebatou de nosso
convívio. Clínico amigo chamou-me a atenção para a debilidade do rapazinho.
Éramos, no entanto, demasiadamente pobres para tentar tratamentos caros
em estâncias de repouso. 7
Antes dos catorze anos, terminado o curso das letras primárias, conduzi-o
ao serviço pela exigência imperiosa do ganha-pão. Sabia, como pai, que
Fábio desejava continuar estudando, para o aprimoramento das faculdades
intelectuais, em face dos seus pendores para o desenho e para a literatura,
porque, não poucas vezes, surpreendi-o namorando o educandário vizinho
de nossa casa, ralado de inveja ao reparar os colegiais em bandos festivos.
8 As nossas condições
de vida, no entanto, nos reclamavam esforço ingente; e meu filho, atirado
à luta, desde muito cedo, não encontrou ensejo para as construções artísticas
que idealizava. Segregando-se na oficina de mecânica, em ambiente pesado
demais para a sua constituição física, ele não o tolerou por muito tempo,
contraindo com facilidade a tuberculose pulmonar.
4.
— Mas chegou a saber a causa determinante da posição física de Fábio,
ao regressar ao Plano espiritual? — Indaguei.
2 — Isso representou
um dos primeiros problemas que procurei elucidar. Passado algum tempo,
fui devidamente esclarecido. Meu filho e eu fomos destacados fazendeiros
na antiga nobreza rural fluminense. Nessa época, não muito recuada,
Fábio, noutro nome e noutra forma, era igualmente meu filho. 3
Eduquei-o com desvelado carinho e, por mais de uma vez, enviei-o à Europa,
ansioso por elevar-lhe o padrão intelectual e cioso de nossa superioridade
financeira. Ambos, porém, cometemos graves erros, mormente no trato
direto com os descendentes de africanos escravos. 4
Meu filho era sensível e generoso, mas excessivamente austero para com
os servidores das tarefas mais duras. Congregava-os na senzala, com
severidade rigorosa, e perdemos grande número de cooperadores em virtude
do ar viciado pela construção deficiente que Fábio conservou inalterável,
simplesmente para manter ponto de vista pessoal.
5 Os olhos do narrador brilharam
mais intensamente. Pareceu menos bem, ao contato das recordações, e
acentuou com melancolia:
— O romance é longo e peço-lhes permissão para interrompê-lo.
6 Senti remorsos por haver
provocado a dificuldade, mas Jerônimo interveio em meu socorro.
— Não pensemos mais nisso, — exclamou o Assistente, bem humorado, — nunca me
conformo com a exumação de cadáveres…
7 E enquanto a alegria tornava
ao ambiente, meu orientador acrescentou:
— Prestemos ao enfermo a assistência possível. Nesta noite, afastá-lo-emos definitivamente do corpo carnal.
Levantamo-nos e penetramos o quarto.
5.
Fábio, fundamente abatido, respirava a custo, acusando indefinível mal-estar.
Junto dele, a esposa velava, atenta.
2 Através da janela aberta,
o doente reparou que a cidade acendia as luzes. Ergueu os tristes olhos
para a companheira e observou:
— Interessante verificar como a aflição se agrava à noite…
— É fenômeno passageiro, Fábio, — afirmou a esposa, tentando sorrir.
3 Entre nós, todavia, iniciaram-se
providências para socorro imediato. O pai do enfermo dirigiu-se a Jerônimo:
— Sei que a libertação de Fábio exige grande esforço. Entretanto, desejava
auxiliá-lo no derradeiro culto doméstico em que tomará parte fisicamente
ao lado da família. 4
Regra geral, as últimas conversações dos moribundos são gravadas com
mais carinho, pela memória, dos que ficam. Em razão disso, ser-me-ia
sumamente agradável ajudá-lo a endereçar algumas palavras de aviso e
estímulo à companheira.
5 — Com muita satisfação,
— aquiesceu o Assistente, — colaboraremos também na execução desse propósito.
É mais conveniente que a família esteja a sós.
— Bem lembrado! — Disse o genitor, agradecido.
6 Reparei que Jerônimo e Aristeu
passaram a aplicar passes longitudinais no enfermo, observando que deixavam
as substâncias nocivas à flor da epiderme, abstendo-se de maior esforço
para alijá-las de vez. Finda a operação, indaguei dos motivos que os
levavam a semelhante medida.
7 — Está muito enfraquecido,
agonizando quase, — informou o meu dirigente, — e fazemos o possível
por beneficiá-lo, sem lhe aumentar o cansaço. As substâncias retidas
nas paredes da pele serão absorvidas pela água magnetizada do banho,
a ser usado em breves minutos.
8 Efetivamente, atendendo
à influenciação dos amigos espirituais, que lhe davam intuições indiretamente,
Fábio dirigiu-se à esposa, expressando o desejo de leve banho morno,
no que foi atendido em reduzidos instantes.
Jerônimo e Aristeu ministraram à água pura certos agentes de absorção e ampararam a dedicada senhora, que, por sua vez, auxiliou o marido a banhar-se, como se estivesse satisfazendo o desejo de uma criança.
9 Notei, admirado, que a operação
se fizera acompanhar de salutaríssimos efeitos, surpreendendo-me, mais
uma vez, ante a capacidade absorvente da água comum. A matéria fluídica
prejudicial fora integralmente retirada das glândulas sudoríparas.
Terminado o banho, o enfermo voltou ao leito, em pijama, de fisionomia
confortada e espírito bem disposto. Algumas fricções de álcool, levadas
a efeito, completaram-lhe a melhora fictícia.
10 O relógio marcava alguns
minutos além das dezenove horas.
Silveira, que se havia ausentado, voltou à pressa, falando particularmente a Jerônimo, a quem informou:
— Tudo pronto. Conseguiremos a reunião exclusiva da família.
11 O Assistente mostrou satisfação
e salientou a necessidade de acelerar o ritmo do trabalho. O bondoso
pai desencarnado movimentou-se. A tecla mais sensível à nossa atuação
foi quando Fábio se dirigiu à esposa, ponderando:
— Creio não devermos adiar o serviço da prece. Sinto-me inexplicavelmente melhor e desejaria aproveitar a pausa do repouso.
12 Dona Mercedes, a abnegada
senhora, trouxe ambas as crianças, que se sentaram na posição respeitosa
de ouvintes. E enquanto a esposa se acomodava ao lado dos pequenos,
o enfermo, auxiliado pelo pai, abriu o Novo Testamento, na primeira
epístola de Paulo de Tarso aos Coríntios e leu o versículo quarenta
e quatro do capítulo quinze:
— “Semeia-se corpo animal, ressuscitará corpo espiritual. Há corpo animal, e há corpo espiritual.”
13 Fez-se curto silêncio, que
o doente interrompeu, iniciando a prece, comovido:
— Rogo a Deus, nosso Eterno Pai, me inspire na noite de hoje, para conversarmos
intimamente e espero que a Divina Providência, por intermédio de seus
abençoados mensageiros, me ajude a enunciar o que desejo, com a facilidade
necessária. 14 Enquanto
possuímos plena saúde física, enquanto os dias e as noites correm serenos,
supomos que o corpo seja propriedade nossa. Acreditamos que tudo gira
na órbita de nossos impulsos, mas… ao chegar a enfermidade, verificamos
que a saúde é tesouro que Deus nos empresta, confiante.
15 Sorriu, calmo e conformado.
Até ali, via-se bem que era Fábio o expositor exclusivo das palavras.
Expressava-se em voz correntia, mas sem calor entusiástico, dada a sua
situação de extrema fraqueza.
16 Findo intervalo mais longo,
o genitor descansou a destra em sua fronte, mantendo-se na atitude de
quem ora com profunda devoção. Reparei, surpreso, que luminosa corrente
se estabelecera no organismo débil, desde a massa encefálica até o coração,
inflamando as células nervosas, então semelhando a minúsculos pontos
de luz condensada e radiante. Os olhos de Fábio, pouco a pouco, adquiriram
mais brilho e a sua voz fez-se ouvir, de novo, com diferente inflexão.
Dirigindo à esposa e aos filhinhos o olhar terno, agora otimista e percuciente,
passou a dizer, inspirado:
17 — Estou satisfeito
pela oportunidade de trocarmos ideias a sós, dentro da fé que nos identifica.
É significativa a ausência dos velhos amigos que nos acompanham as orações
familiares, desde muitos anos. Não é sem razão. Precisamos comentar
nossas necessidades, cheios de bom ânimo, dentro da noção da próxima
despedida. 18 A palavra
do apóstolo dos gentios é simbólica na situação presente. Assim como
há corpos animais, há também corpos espirituais. ( † )
E não ignoramos que meu corpo animal, em breve tempo, será restituído
à terra acolhedora, mãe comum das formas perecíveis, em que nos movimentamos
na face do mundo. Algo me diz ao coração que esta será talvez a última
noite em que me reunirei com vocês, neste corpo… 19
Nos momentos em que o sono me abençoa, sinto-me nas vésperas da grande
liberdade… Vejo que amigos iluminados me preparam o coração e estou
certo de que partirei na primeira oportunidade. Acredito que todas as
providências já foram levadas a efeito, em benefício de nossa tranquilidade,
nestes minutos de separação. Em verdade, não lhes deixo dinheiro, mas
conforta-me a certeza de que construímos o lar espiritual de nossa união
sublime, ponto indelével de referência à felicidade imorredoura…
20 Fitou particularmente a
esposa, tomado de maior emoção, e prosseguiu:
— Você, Mercedes, não tema os obstáculos da sombra. O trabalho digno
ser-nos-á fonte bendita de realização. Creia que a saudade edificante
estará sempre em meu espírito, seja onde for, saudade de sua convivência,
de sua afetuosa dedicação. Isto, porém, não constituirá algema pesada,
porque nós dois aprendemos na escola da simplicidade e do equilíbrio
que o amor legítimo e purificado não prescinde da compreensão santificante.
21 Decerto, necessitarei
de muita paz, a fim de readaptar-me à vida diferente e, por isso, pretendo
deixá-los com tranquilidade suficiente para que todos nos ajustemos
aos desígnios de Deus. Conheço-lhe a nobreza heroica de mulher afeiçoada
ao trabalho, desde muito cedo, e entendo a pureza de seus ideais de
esposa e mãe. 22 Entretanto,
Mercedes, releve-me a franqueza neste instante expressivo da experiência
atual: sei que minha ausência se fará seguir de problemas talvez angustiosos
para o seu espírito sensível. A solidão torna-se aflitiva, para a mulher
jovem, sem a vizinhança dos carinhosos laços de pais e irmãos consanguíneos,
que já não possuímos neste mundo, quando não é possível conservar a
mesma vibração de fé, através das diversas circunstâncias do caminho…
Não posso exigir de você fidelidade absoluta aos elos materiais que
nos unem, porque seria exercer cruel opressão a pretexto de amor. Além
disso, nada quebrará nossa aliança espiritual, definitiva e eterna.
23 Observei que Fábio arquejava,
fortemente emocionado.
Transcorridos alguns segundos de breve pausa, continuou, irradiando seus olhos verdadeira afeição e sinceridade fiel:
— Por isso, Mercedes, embora tenhamos providenciado sua posição futura no trabalho
honesto, quero dizer a você que ficarei muito satisfeito se Jesus enviar-lhe
um companheiro digno e leal irmão. Se isso acontecer, querida, não recuse.
Felizmente, para nós, cultivamos a ligação imperecível da alma, sem
que o monstro do ciúme desvairado nos guarde o castelo afetivo… 24
Não sabemos quantos anos lhe restam de peregrinação por este mundo.
É provável que a Vontade Divina prolongue por mais tempo a sua permanência
na Terra, e, se me for possível, cooperarei para que não fique sozinha.
Nossos filhos, ainda frágeis, necessitam de amparo amigo na orientação
da vida prática…
25 Dona Mercedes, enxugando
os olhos lacrimosos, esboçou gesto de quem ia protestar, todavia, adiantou-se-lhe
o doente, acrescentando:
— Já sei o que dirá. Nunca duvidei de sua virtude incorruptível, de
seu desvelado amor. Nem estou a desinteressar-me da abnegada companheira
de luta que o Senhor me confiou. Reconheça, porém, que temos vivido
em profunda comunhão espiritual e devemos encarar, com sinceridade e
lógica, minha partida próxima. 26
Se você conseguir triunfar de todas as necessidades da vida humana,
mantendo-se a cavaleiro das exigências naturais da existência terrestre,
certamente Jesus compensará seu esforço com a láurea dos bem-aventurados.
Todavia, não procure escalar o cume glorioso da plena vitória espiritual
num só voo. Nossos corações, Mercedes, são como as aves: alguns já conquistaram
a prodigiosa força da águia; outros, contudo, guardam, ainda, a fragilidade
do beija-flor. 27 Sofreria,
de fato, por minha vez, se a visse afrontando a montanha redentora,
com falsa energia. Não tenha medo. Criaturas perversas não amedrontam
almas prudentes. Concedeu-nos o Senhor bastante luz espiritual para
discernir. Você jamais poderá ser vítima de exploradores inconscientes,
porque o Evangelho de Jesus está colocado diante de seus olhos para
iluminar o caminho escolhido. Portanto, a observação e o juízo, o exercício
espiritual e a inspiração de ordem superior, permanecerão a serviço
de suas decisões sentimentais. E creia que farei tudo, em espírito,
por auxiliá-la nesse sentido.
28 Sorriu, com esforço, enquanto
a esposa chorava, discreta. Após longo interregno, frisou:
— Se eu puder, trarei estrelas do firmamento para enfeite de suas esperanças. Você estará sempre mais viva em meu coração; amarei também a todos aqueles que forem assinalados por sua estima enobrecedora.
29 Em seguida, após fitar demoradamente
os filhinhos, aduziu:
— A palavra apostólica no Evangelho conforta-nos e esclarece-nos, como se faz indispensável. Em breve tempo, reunir-me-ei aos nossos na Vida Maior. Perderei meu corpo animal, mas conquistarei a ressurreição no corpo espiritual, a fim de esperá-los, alegremente.
30 Verificava-se que o enfermo
despendera muito esforço. Fatigara-se.
O genitor retirou a destra da fronte de Fábio, desaparecendo a corrente fluídico-luminosa que o ajudara a pronunciar aquela impressionante alocução de amor acrisolado.
Demonstrando sublime serenidade nos olhos brilhantes, recostou-se nos volumosos travesseiros, algo abatido.
31 Dona Mercedes compôs a fisionomia,
afastando os vestígios das lágrimas, e falou para o filhinho mais velho:
— Você, Carlindo, fará a prece final.
Fábio mostrou satisfação no semblante, enquanto o rapazinho se erguia, obediente à recomendação ouvida. Com naturalidade, recitou curta oração que aprendera dos lábios maternos:
32 — Poderoso Pai
dos Céus, abençoa-nos, concedendo-nos a força precisa para a execução
de tua lei, trazida ao mundo com o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Faze-nos melhores no dia de hoje para que possamos encontrar-te amanhã.
Se permites, ó meu Deus! Nós te pedimos a saúde do papai, de acordo
com a tua soberana vontade. Assim seja!…
6.
Terminada a rogativa e quando os pequenos beijavam sua mamãe, antes
do sono tranquilo, o enfermo pediu à esposa, com humildade:
— Mercedes, se você concorda, sentir-me-ia feliz por beijar, hoje, os meninos…
2 A senhora aquiesceu, comovida.
— Traga-me um lenço novo, — solicitou o esposo, enternecido.
A dona da casa, em poucos instantes, apresentava-lhe alvo fragmento de linho.
Emocionado, vi que o pai cristão aplicou o nevado pano à cabeleira das
crianças e beijou o linho, ao invés de oscular-lhes os cabelos. 3
Contudo, havia tanta alma, tanto fervor afetivo naquele gesto, que reparei
o jato de luz que lhe saía da boca, atingindo a mente dos pequeninos.
O beijo saturava-se de magnetismo santificante. Jerônimo, comovido de
maneira especial, dirigiu-se a mim, em voz sussurrante:
— Outros verão micróbios; nós vemos amor…
4 Logo após, a pequena família
recolheu-se. O enfermo sentia-se singularmente melhorado, bem disposto.
Em nosso grupo havia geral contentamento.
As crianças dormiram sem demora e foram, por Aristeu, conduzidas, fora do corpo físico, a uma paisagem de alegria, de modo a se entreterem, descuidadas…
5 A sós com o doente e a esposa,
que tentavam conciliar o sono, encetamos o serviço de libertação.
Enquanto Silveira amparava o filho, com inexcedível carinho, Jerônimo aplicou ao enfermo passes anestesiantes. Fábio sentiu-se bafejado por deliciosas sensações de repouso. Em seguida, o Assistente deteve-se em complicada operação magnética sobre os órgãos vitais da respiração e observei a ruptura de importante vaso. O paciente tossiu e, num átimo, o sangue fluiu-lhe à boca aos borbotões.
6 Dona Mercedes levantou-se,
assustada, mas o esposo, falando dificilmente, tranquilizou-a:
— Pode chamar o médico… entretanto, Mercedes… não se preocupe… é justamente o fim…
7 Enquanto prosseguia Jerônimo
separando o organismo perispiritual do corpo débil, Dona Mercedes pediu
o socorro de um vizinho, que saiu prestativo, em busca do clínico especializado.
8 O médico não tardou, trazido
celeremente por automóvel, mas embalde aplicaram a solução de adrenalina,
a sangria no braço, os sinapismos nos pés e as ventosas secas no peito.
O sangue, em golfadas rubras, fluía sempre, sempre…
9 Reparei que Jerônimo
repetia o processo de libertação praticado em Dimas, mas com espantosa
facilidade. Depois da ação desenvolvida sobre o plexo
solar, o coração e o cérebro, desatado o nó vital, Fábio fora completamente
afastado do corpo físico. 10
Por fim, brilhava o cordão fluídico-prateado, com formosa luz. Amparado
pelo genitor, o recém-liberto descansava, sonolento, sem consciência
exata da situação.
11 Supus que o caso
de Dimas se repetiria, ali, minudência por minudência; porém, uma hora
depois da desencarnação, Jerônimo cortou o apêndice luminoso.
— Está completamente livre, — declarou meu orientador, satisfeito.
12 O pai enternecido
depositou sobre a fronte do filho desencarnado, em brando sono, um beijo
repassado de amor e entregou-o a Jerônimo, asseverando:
— Não desejo que ele me reconheça de pronto. Não seria aproveitável levá-lo
agora a recordações do passado. Encontrá-lo-ei mais tarde, quando tenha
de partir da instituição socorrista para as zonas mais altas. 13
Pode conduzi-lo sem perda de tempo. Incumbir-me-ei de velar pelo cadáver,
inutilizando os derradeiros resíduos vitais contra o abuso de qualquer
entidade inconsciente e perversa.
14 O Assistente agradeceu,
emocionado, e partimos, conduzindo o sagrado depósito que nos fora confiado.
Enquanto prosseguíamos, espaço acima, contemplei, respeitoso, o primeiro anúncio da aurora e, observando Fábio adormecido, tive a impressão de que gloriosos portos do Céu se iluminavam de sol para receber aquele homem, de sublime exemplo cristão, que subia vitorioso, da Terra…
André Luiz