1.
Duas horas antes de organizar-se o cortejo fúnebre, estávamos a postos.
2 A residência de Dimas enchia-se
de pessoas gradas, além de apreciável assembleia de entidades espirituais.
3 Jerônimo, resoluto,
penetrou a casa, seguido de nós outros. Encaminhou-se para o recanto
onde o recém-desencarnado permanecia abatido e sonolento, sob a carícia
materna. 4 Reparei
que o médium liberto tinha agora o corpo perispiritual mais aperfeiçoado,
mais concreto. Tive a nítida impressão de que através do cordão fluídico,
de cérebro morto a cérebro vivo, o desencarnado absorvia os princípios
vitais restantes do campo fisiológico. 4
Nosso dirigente contemplou-o, enternecido, e pediu informes à genitora,
que os forneceu, satisfeita:
— Graças a Jesus, melhorou sensivelmente. É visível o resultado de nossa influência restauradora e creio que bastará o desligamento do último laço para que retome a consciência de si mesmo.
5 Jerônimo examinou-o e auscultou-o,
como clínico experimentado. Em seguida, cortou o liame final, verificando-se
que Dimas, desencarnado, fazia agora o esforço do convalescente ao despertar,
estremunhado, findo longo sono.
6 Somente então notei
que, se o organismo perispirítico recebia as últimas forças do corpo
inanimado, este, por sua vez, absorvia também algo de energia do outro,
que o mantinha sem notáveis alterações. 7
O apêndice prateado era verdadeira artéria fluídica, sustentando o fluxo
e o refluxo dos princípios vitais em readaptação. Retirada a derradeira
via de intercâmbio, o cadáver mostrou sinais, quase imediatos, de
avançada decomposição.
8 A análise do cadáver de
Dimas causava tristeza.
Inumeráveis germens microscópicos entravam, como exércitos vorazes, em combate
aberto, libertando gases ocultos que revelavam o apodrecimento dos tecidos
e líquidos em geral. 9
Os traços fisionômicos do defunto achavam-se alterados, degenerando-se
também a estrutura dos membros. Os órgãos autônomos, por seu turno,
perdiam a feição característica, já tumefactos e imóveis.
10 Em compensação,
Dimas-livre, Dimas-Espírito, despertava. Amparado pela genitora, abriu
os olhos, fixou-os em derredor, num impulso de criança alarmada e chamou
a esposa, aflitivamente. Dormira em excesso, mas alcançara sensível
melhora. Sentia a casa cheia de gente e desejava saber alguma coisa
a respeito. 11 A mãezinha,
porém, afagando-o brandamente, acalmou-o, esclarecendo:.
— Ouça, Dimas: A porta pela qual você se comunicava com o Plano carnal, somático, cerrou-se com seus olhos físicos. Tenha serenidade, confiança, porque a existência, no corpo físico, terminou.
12 O desencarnado não dissimulou
a penosa impressão de angústia e fitou-a com amargurado espanto, identificando-a
pela voz, um tanto vagamente.
— Não me reconhece, filho?
13 Bastou a pergunta carinhosa,
pronunciada com especial inflexão de meiguice, para que o desencarnado
se abraçasse à velhinha, gritando, num misto de júbilo e sofrimento:
— Mãe! Minha mãe!… Será possível?
14 A anciã deteve-o ternamente
nos braços e falou:
— Escute! Refreie a emoção, que lhe será extremamente prejudicial. Sustente o equilíbrio, diante do fato consumado. Estamos, agora, juntos, numa vida mais feliz. Não tenha preocupações acerca dos que ficaram. Tudo será remediado, como convém, no momento oportuno. Acima de qualquer pensamento que o incline à prisão no círculo que acabou de deixar, faça valer a confiança sincera e firme em nosso Pai Celestial.
15 — Ó minha mãe! E a esposa,
os filhos?…
A sábia benfeitora, todavia, cortou-lhe as palavras, consolando-o:
— Os laços terrenos, entre você e eles, foram interrompidos. Restitua-os a Deus, certo de que o Eterno Senhor da Vida, a quem de fato pertencemos, permitirá sempre que nos amemos uns aos outros.
16 Contemplou-a Dimas, através
de espesso véu de pranto e, antes que ele enunciasse novas interrogações,
falou a genitora carinhosa, apresentando-lhe Jerônimo, que acompanhava
a cena, comovido:
— Eis aqui o amigo que o desligou das cadeias transitórias. Em breve, partirá você, em companhia dele, buscando o socorro eficiente de que necessita.
17 Embora atordoado, o filho
esboçou silencioso gesto de contrariedade, ante a perspectiva de nova
separação do convívio materno, mas a velhinha interveio, acrescentando:
— Vim até aqui porque você me chamou, recorrendo à Mãe divina; contudo, não estou habilitada a lhe proporcionar ingresso em meus trabalhos, por enquanto. O irmão Jerônimo, todavia, é o orientador dedicado que conduzirá o serviço de sua restauração. Tenha confiança. Irei vê-lo quantas vezes for possível, até que nos possamos reunir noutro lar venturoso, sem as lágrimas da separação e sem as sombras da morte.
18 Em seguida, sussurrou algumas
palavras que somente Dimas pôde escutar e, sob funda emoção, vi-o desvencilhar-se
dos braços maternos e avançar, cambaleante, para Jerônimo, osculando-lhe
respeitosamente as mãos. O Assistente agradeceu o carinhoso preito de
reconhecimento e amor e, de olhos marejados, explicou:
— Nada efetuamos aqui, senão o dever que nos trouxe. Guarde o seu agradecimento para Jesus, o nosso Benfeitor Divino.
2.
O trabalhador recém-liberto trazia o olhar nevoado de pranto, entre
a alegria e a dor, a saudade e a esperança.
2 A devotada mãe amparou-o,
mais uma vez, animando-o:
— Dimas, congregamo-nos aqui, diversos amigos seus, em manifestação inicial de regozijo pela sua vinda. Entretanto, a sua posição é a do
convalescente, cheio de cicatrizes a exigirem cuidado. Fale pouco e
ore muito. Não se aflija, nem se lastime. Por hoje, não pergunte mais
nada, meu filho. 3
Seja dócil, sobretudo, para que nosso auxílio não seja mal interpretado
pela visão deficiente que você traz da Esfera obscura. Acompanharemos
seus despojos até à última morada, a fim de que você faça exercício
preliminar para a grande viagem que levará a efeito, dentro de breves
minutos, sustentado pelos nossos amigos, a caminho do restabelecimento.
4 Não tema, pois já
se preparou para receber-nos a cooperação, semeando o bem, em longos
anos de atividades espiritistas. Não dê guarida ao medo, que sempre
estabelece perigosas vibrações de queda em transições como a em que
você se encontra.
5 Em seguida, conduzindo-o
à câmara mortuária, onde o corpo jazia imóvel, prestes a partir; acrescentou
a anciã, sob o olhar de aprovação que Jerônimo lhe dirigia:
— Venha ver o aparelho que o serviu fielmente durante tantos anos. Contemple-o com gratidão e respeito. Foi seu melhor amigo, companheiro de longa batalha redentora.
6 E como a viúva e os filhos
chorassem lamentosamente, advertiu:
— Deploro os sentimentos negativos a que se recolhem os seus entes
amados, despercebidos das realidades do Espírito. Não se detenha, Dimas,
nas lágrimas que derramam, absorvidos em devastadora incompreensão.
Este pranto e estas exclamações angustiosas não traduzem a verdade dos
fatos. 7 Você sabe
agora, mais que nunca, que a imortalidade é sublime. Nunca houve adeus
para sempre, na sinfonia imorredoura da vida. Abstenha-se, pois, de
responder, por enquanto, às arguições que sua mulher e seus filhos dirigem
ao cadáver. Quando você estiver refeito, voltará a auxiliá-los, consagrando-lhes,
ainda e sempre, inestimável amor.
8 Dimas procurou conter-se,
ante a perturbação geral do ambiente doméstico, e, vacilante, debruçou-se,
sobre o ataúde, vertendo grossas lágrimas. Via-se-lhe o inaudito esforço
para manter serenidade naquela hora. Rente a ele, a esposa proferia
frases de intensa amargura. Todavia, em obediência às recomendações
maternas, ele guardava discreta atitude de tristeza e enternecimento.
9 Notei que Dimas sentia dificuldade
para concatenar raciocínios, porque tentou em vão articular uma prece,
em voz alta. Percebendo-lhe o intenso desejo, aproximou-se Jerônimo
de sensível irmão encarnado, então presente, tocou-lhe a fronte com
a destra luminosa e o companheiro, declarando sentir-se inspirado, levantou-se
e pediu permissão para pronunciar breve súplica, no que foi atendido
e acompanhado por todos.
10 Sob a influência do orientador
espiritual, o companheiro orou sentidamente. Verifiquei que Dimas experimentava
imensa consolação, graças ao gesto amigo de Jerônimo.
3.
Logo após, ante as exclamações dolorosas dos familiares, o ataúde foi
cerrado e iniciou-se o préstito silencioso.
2 Seguíamos, ao fim do cortejo,
em número superior a vinte entidades desencarnadas, inclusive o irmão
recém-liberto.
3 Abraçado à genitora, Dimas,
em passos incertos e vagarosos, ouvia-lhe discretas exortações e sábios
conselhos.
Entre os muitos afeiçoados do Círculo carnal, reinava profundo constrangimento, mas, entre nós, imperava tranquilidade efetiva e espontânea.
4 Prosseguíamos com as melhores
notas de calma, quando nos acercamos do campo-santo.
Estranha surpresa empolgou-me de súbito. Nenhum dos meus companheiros, exceção
de Dimas, que fazia visível esforço para sossegar a si mesmo, exteriorizou
qualquer emoção, diante do quadro que víamos. Mas não pude sofrear o
espanto que me tomou o coração. 5
As grades da necrópole estavam cheias de gente da Esfera invisível,
em gritaria ensurdecedora. Verdadeira concentração de vagabundos sem
corpo físico apinhava-se à porta. Endereçavam ditérios e piadas à longa
fila de amigos do morto. No entanto, ao perceberem a nossa presença,
mostraram carantonhas de enfado, e um deles, mais decidido, depois de
fitar-nos com desapontamento, bradou aos demais:
— Não adianta! É protegido…
6 Voltei-me, preocupado, e
indaguei do padre Hipólito que significava tudo aquilo.
O ex-sacerdote não se fez rogado.
— Nossa função, acompanhando os despojos, — esclareceu ele, afavelmente, —
não se verifica apenas no sentido de exercitar o desencarnado para os
movimentos iniciais da libertação. Destina-se também à sua defesa. Nos
cemitérios costuma congregar-se compacta fileira de malfeitores, atacando
vísceras cadavéricas, para subtrair-lhes resíduos vitais.
7 Ante a minha estranheza,
Hipólito considerou:
— Não é para admirar. O Evangelho, descrevendo o encontro de Jesus com endemoninhados, ( † ) refere-se a Espíritos perturbados que habitam entre os sepulcros.
8 Reconhecendo-me a inexperiência
no trato com a matéria religiosa, Hipólito continuou:
— Como você não ignora, as igrejas dogmáticas da Crosta Terrena possuem erradas noções acerca do diabo, mas, inegavelmente, os diabos existem. Somos nós mesmos, quando, desviados dos divinos desígnios, pervertemos o coração e a inteligência, na satisfação de criminosos caprichos…
9 — Oh! Mas que paisagem repugnante!
— Exclamei, surpreendido, interrompendo a instrutiva explanação.
— É verdade, — concordou o interlocutor, — é quadro deveras ascoroso; todavia,
é reflexo do mundo, onde, também nós, nem sempre fomos leais filhos
de Deus.
A observação me satisfez integralmente.
10 Entramos.
Logo após, ante meus olhos atônitos, Jerônimo inclinou-se piedosamente sobre o cadáver, no ataúde momentaneamente aberto antes da inumação, e, através de passes magnéticos longitudinais, extraiu todos os resíduos de vitalidade, dispersando-os, em seguida, na atmosfera comum, através de processo indescritível na linguagem humana por inexistência de comparação analógica, para que inescrupulosos entidades inferiores não se apropriassem deles.
4.
Completada a curiosa operação, tive minha atenção voltada para gemidos
lancinantes, emitidos de zonas diversas daquela moradia respeitável,
agora semelhante a vasto necrotério de almas.
2 Jerônimo entrara em conversação
com vários colegas, enquanto a maioria dos companheiros encarnados,
em obediência à tradição, atiravam a clássica pazinha de cal ou poeira
sobre o envoltório entregue à profunda cova.
3 Impressionado com os soluços
que ouvia em sepulcro próximo, fui irresistivelmente levado a fazer
uma observação direta.
Sentada sobre a terra fofa, infeliz mulher desencarnada, aparentando trinta e seis anos, aproximadamente, mergulhava a cabeça nas mãos, lastimando-se em tom comovedor.
4 Compadecido, toquei-lhe
a espádua e interroguei:
— Que sente, minha irmã?
— Que sinto? — Gritou ela, fixando em mim grandes olhos de louca, —
não sabe? Oh! O senhor chama-me irmã… Quem sabe me auxiliará para que
minha consciência torne a si mesma? Se é possível, ajude-me, por piedade!
Não sei diferençar o real do ilusório… Conduziram-me à casa de saúde
e entrei neste pesadelo que o senhor está vendo.
5 Tentava erguer-se, debalde,
e implorava, estendendo-me as mãos:
— Cavalheiro, preciso regressar! Conduza-me, por favor, à minha residência!
Preciso retornar ao meu esposo e ao meu filhinho!… Se este pesadelo
se prolongar, sou capaz de morrer!… Acorde-me, acorde-me!…
6 — Pobre criatura!
— Exclamei, distraído de toda a curiosidade, em face da compaixão que
o triste quadro provocava. — Ignora que seu corpo voltou ao leito de
cinzas! Não poderá ser útil ao esposo e ao filhinho, em semelhantes
condições de desespero.
7 Olhou-me, angustiada, como
a desfazer-se em ataque de revolta inútil. Mas, antes que explodisse
em rugidos de dor, acrescentei:
— Já orou, minha amiga? Já se lembrou da Providência Divina?
— Quero um médico, depressa! Só ouço padres! — Bradou irritadiça, — não posso
morrer… Despertem-me! Despertem-me!…
— Jesus é nosso Médico Infalível, — tornei, — e indico-lhe a oração
como remédio providencial para que Ele a assista e cure.
8 A infeliz, entretanto, parecia
distanciada de qualquer noção de espiritualidade. Tentando agarrar-me
com as mãos cheias de manchas estranhas, embora não me alcançasse, gritou
estentoricamente:
— Chamem meu esposo! Não suporto mais! Estou apodrecendo!… Oh! Quem me despertará?!
9 Da fúria aflita,
passou ao choro humilde, ferindo-me a sensibilidade. Compreendi, então,
que a desventurada sentia todos os fenômenos da decomposição cadavérica
e, examinando-a detidamente, reparei que o fio singular, não com a luz prateada que o caracterizava em Dimas, pendia-lhe da cabeça, penetrando chão
a dentro.
10 Ia exortá-la, de novo, recordando-lhe
os recursos sublimes da prece, quando de mim se aproximou simpática
figura de trabalhador, informando-me, com espontânea bondade:
— Meu amigo, não se aflija.
11 A advertência
não me soou bem aos ouvidos. Como não preocupar-me, diante de infortunada
mulher que se declarava esposa e mãe? Como não tentar arrancá-la à perigosa
ilusão? Não seria justo consolá-la, esclarecê-la? Não contive a série
de interrogações que me afloraram do raciocínio à boca.
12 Longe de o interpelado perturbar-se,
respondeu-me tranquilamente:
— Compreendo-lhe a estranheza. Deve ser a primeira vez que frequenta um cemitério como este. Falta-lhe experiência. Quanto a mim, sou do posto de assistência espiritual à necrópole.
13 Desarmado pela serenidade
do interlocutor, renovei a primeira atitude. Reconheci que o local,
não obstante repleto de entidades vagabundas, não estava desprovido
de servidores do bem.
14 — Somos quatro companheiros,
apenas, — prosseguiu o informante, — e, em verdade, não podemos atender
a todas as necessidades aparentes do serviço. Creia, porém, que zelamos
pela solução de todos os problemas fundamentais. Apesar de nosso cuidado,
não podemos, todavia, esquecer o imperativo de sofrimento benéfico para
todos aqueles que vêm dar até aqui, após deliberado desprezo pelos sublimes
patrimônios da vida humana.
15 Atingi o sentido oculto
das explicações. O cooperador queria dizer, naturalmente, que a presença,
ali, de malfeitores e ociosos desencarnados se justificava em face do
grande número de ociosos e malfeitores que se afastam diariamente da
Crosta da Terra. Era o similia similibus em ação, cumprindo-se
os ditames da lei do progresso. Castigando-se e flagelando-se, mutuamente,
alcançariam os desviados a noção do verdadeiro caminho salvador.
16 Fitei a infeliz e expus
meu propósito de auxiliá-la.
— É inútil, — esclareceu o prestimoso guarda, equilibrado nos conhecimentos
de justiça e seguro na prática, pelo convívio diário com a dor, — nossa
desventurada irmã permanece sob alta desordem emocional. Completamente
louca. 17 Viveu trinta
e poucos anos na carne, absolutamente distraída dos problemas espirituais
que nos dizem respeito. Gozou, à saciedade, na taça da vida física.
Após feliz casamento, realizado sem qualquer preparo de ordem moral,
contraiu gravidez, situação esta que lhe mereceu menosprezo integral.
Comparava o fenômeno orgânico em que se encontrava a ocorrências comuns,
e, acentuando extravagâncias, por demonstrar falsa superioridade, precipitou-se
em condições fatais. 18
Chamada ao testemunho edificante da abelha operosa, na colmeia do lar,
preferiu a posição da borboleta saltitante, sequiosa de novidades efêmeras.
O resultado foi funesto. Findo o parto difícil, sobrevieram infecções
e febre maligna, aniquilando-lhe o organismo. 19
Soubemos que, nos últimos instantes, os vagidos do filhinho tenro despertaram-lhe
os instintos de mãe e a infortunada combateu ferozmente com a morte,
mas foi tarde. 20
Jungida aos despojos por conveniência dela própria, tem primado aqui
pela inconformação. Vários amigos visitadores, em custosa tarefa de
benefício aos recém-desencarnados, têm vindo à necrópole, tentando libertá-la.
21 A pobrezinha,
porém, após atravessar existências de sólido materialismo, não sabe
assumir a menor atitude favorável ao estado receptivo do auxílio superior.
Exige que o cadáver se reavive e supõe-se em atroz pesadelo, quando
nada mais faz senão agravar a desesperação. 22
Os benfeitores, desse modo, inclinam-se à espera da manifestação de
melhoras íntimas, porque seria perigoso forçar a libertação, pela probabilidade
de entregar-se a infeliz aos malfeitores desencarnados.
23
Indiquei, porém o laço fluídico que a ligava ao envoltório sepulto e
observei:
— Vê-se, entretanto, que a mísera experimenta a desintegração do corpo grosseiro em terríveis tormentos, conservando a impressão de ligamento com a matéria putrefata. Não teremos recursos para aliviá-la?
24 Tomei atitude espontânea
de quem desejava tentar a medida libertadora e perguntei:
— Quem sabe chegou o momento? Não será razoável cortar o grilhão?
— Que diz? — Objetou, surpreso, o interlocutor, — não, não pode ser! Temos
ordens.
25 — Porque tamanha exigência,
— insisti.
— Se desatássemos a algema benéfica, ela regressaria, intempestiva, à residência
abandonada, como possessa de revolta, a destruir o que encontrasse.
Não tem direito, como mãe infiel ao dever, de flagelar com a sua paixão
desvairada o corpinho tenro do filho pequenino e, como esposa desatenta
às obrigações, não pode perturbar o serviço de recomposição psíquica
do companheiro honesto que lhe ofereceu no mundo o que possuía de melhor.
26 É da lei natural
que o lavrador colha de conformidade com a semeadura. Quando acalmar
as paixões vulcânicas que lhe consomem a alma, quando humilhar o coração
voluntarioso, de modo a respeitar a paz dos entes amados que deixou
no mundo, então será libertada e dormirá sono reparador, em estância
de paz que nunca falta ao necessitado reconhecido às bênçãos de Deus.
27 A lição era dura, mas
lógica.
A infortunada criatura, alheia a nossa conversação, prosseguia gritando, qual demente hospitalizada em prisão dolorosa.
28 Tentei ampliar as minhas
observações, mas o servidor chamou-me a outras zonas, de onde partiam
gemidos estridentes.
— São vários infelizes, na vigília da loucura, — disse calmo.
29
E designando um velhote desencarnado, de cócoras sobre a própria campa,
acrescentou:
— Venha e escute-o.
Acompanhando meu novo amigo, reparei que o sofredor mantinha-se igualmente em ligação com o fundo.
— Ai, meu Deus! — Dizia, — quem me guardará o dinheiro? Quem me guardará
o dinheiro?
30 Observando-nos a
aproximação, rogava, súplice:
— Quem são? Querem roubar-me! Socorram-me, socorram-me!…
Debalde enderecei-lhe palavras de encorajamento e consolação.
— Não ouve, — informou o sentinela, obsequioso, — a mente dele está cheia das
imagens de moedas, letras, cédulas e cifrões. Vai demorar-se bastante
na presente situação e, como vê, não podemos em sã consciência facilitar-lhe
a retirada, porque iria castigar os herdeiros e zurzi-los diariamente.
31 Porque não pudesse dissimular
o espanto que me tomara o coração, o servidor otimista acentuou:
— Não há motivo para tamanho assombro.
Estamos diante de infelizes, aos quais não falecem proteção e esperança, porquanto outros existem tão acentuadamente furiosos e perversos que, do fundo escuro do sepulcro, se precipitam nos tenebrosos despenhadeiros das Esferas subcrostais, n tal o estado deplorável de suas consciências, atraídas para as trevas pesadas.
32 Sem fugir ao padrão de tranquilidade
do colaborador cônscio do serviço a realizar, acrescentou:
— Segundo concluímos, se há alegria para todos os gostos, há também sofrimento para todas as necessidades.
33 Nesse instante, Jerônimo
chamou-me a postos.
Agradeci ao amável informante, profundamente emocionado pelo que vira, e despedi-me incontinente. Esvaziara-se de companheiros encarnados a necrópole e o próprio coveiro dirigia-se à saída.
5.
Foi comovente o adeus entre Dimas e a genitora, que prometeu visitá-lo,
sempre que possível.
2 Após agradecimentos mútuos
e recíprocos votos de paz, sentimo-nos, enfim, em condições de partir
por nossa vez.
3 Antes, porém, minha
curiosidade inquiridora desejava entrar em ação. Como se sentiria Dimas,
agora? Não seria interessante consultar-lhe as opiniões e os informes?
Testemunho valioso poderia fornecer-me para qualquer eventualidade futura
de esclarecer a outrem.
4 Em minha esfera pessoal
de observação, não pudera colher pormenores, uma vez que a morte me
surpreendera em absoluto alheamento das teses
de vida eterna e minha inconsciência, no derradeiro transe carnal, fora completa.
5 Nosso dirigente percebeu-me
o propósito e falou, bem humorado:
— Pode perguntar a Dimas o que você deseja saber.
6 Manifestei-lhe reconhecimento,
enquanto o recém-liberto aquiescia, bondoso, aos meus desejos:
— Sente, ainda, os fenômenos da dor física? — Comecei.
— Guardo integral impressão do corpo que acabei de deixar, — respondeu ele,
delicadamente. — Noto, porém, que, ao desejar permanecer ao lado dos
meus, e continuar onde sempre estive durante muitos anos, volto a experimentar
os padecimentos que sofri; entretanto, ao conformar-me com os superiores
desígnios, sinto-me logo mais leve e reconfortado. Apesar da reduzida
fração de tempo em que me vejo desperto, já pude fazer semelhante observação.
7 — E os cinco sentidos?
— Tenho-os em função perfeita.
8 — Sente fome?
— Chego a notar o estômago vazio e ficaria satisfeito se recebesse algo de comer, mas esse desejo não é incômodo ou torturante.
— E sede?
— Sim, embora não sofra por isso.
9 Ia continuar o curioso inquérito,
mas Jerônimo, sorridente, desarmou-me a pesquisa, asseverando:
— Você pode intensificar o relatório das impressões, quanto deseje, interessado em colaborar na criação da técnica descritiva da morte, certo, porém, de que não se verificam duas desencarnações rigorosamente iguais. O plano impressivo depende da posição espiritual de cada um.
10 Sorrimos todos, ante meus
impulsos juvenis de saber, e, amparando Dimas, carinhosamente, efetuamos,
satisfeitos, a viagem de volta.
André Luiz
[1]
[Vide o capítulo 17 do livro “No
Mundo Maior”.]