1.
Embora os resultados de nossa visita ao abismo fossem aparentemente
mínimos, sentíamo-nos confortados e satisfeitos.
2 De volta, ladeando pântanos
e guardando a mesma severa atitude de vigilância, ao considerar possíveis
surpresas do caminho, fizemos todo o trajeto em profundo silêncio.
3 Aproximando-nos, porém,
do instituto, após atravessar a zona perigosa, a Irmã Zenóbia tomou
a palavra, agradecendo-nos em tom comovedor. Depois de carinhosas expressões
de reconhecimento, acentuou, jubilosa:
— Felizmente, nosso trabalho foi abençoado e profícuo. 4
Os cooperadores novos estranharão, talvez, a minha afirmativa, lembrando,
sem dúvida, que as faixas de salvamento voltaram vazias. No entanto,
algo ocorreu de mais importante que a eventualidade de trazermos compulsoriamente
conosco alguns irmãos infelizes. Refiro-me à semeadura das verdades
eternas nos corações ignorantes, à ministração da esperança aos desalentados
e tristes. 5 Não somos
apologistas da violência, mas semeadores do bem, e a base natural da
colheita segura é a sementeira cuidadosa. Os ensinos edificantes lançados
ao solo do entendimento abrem horizontes novos e claros à investigação
mental dos necessitados e sofredores. Muitos deles, ainda esta noite,
cultivarão os princípios renovadores recebidos, em processo intensivo
no campo interno, e amanhã, provavelmente, estarão em condições vibratórias
adequadas à internação em nosso asilo. 6
Mais desejável para nós é que todos caminhem, utilizando os próprios
pés, para que, de futuro, em meio dos serviços naturais da regeneração,
não se declarem vitimados por ações de arrastamento. Em todos os lugares
encontraremos a compaixão e a justiça de Deus.
7 Sorriu, benevolente, e acrescentou:
— A compaixão, filha do Amor, desejará estender sempre o braço que salva, mas a justiça, filha da Lei, não prescinde da ação que retifica. Haverá recursos da misericórdia para as situações mais deploráveis. Entretanto, a ordem legal do Universo cumprir-se-á, invariavelmente. Em virtude, pois, da realidade, é justo que cada filho de Deus assuma responsabilidades e tome resoluções por si mesmo.
2.
O esclarecimento era lógico e reconfortador. Desejaríamos a continuidade
da argumentação; no entanto, acercávamo-nos da Casa Transitória, então
à nossa vista. Alcançáramos as vizinhanças do átrio e admirei-me da
movimentação em torno.
2 Entidades numerosas iam
e vinham. Quase todas penetravam a organização socorrista ou dela saíam,
em grupos reduzidos. Velhos amparavam jovens que me pareciam indecisos,
titubeantes. Crianças nimbadas de luz guiavam adultos de rosto sombrio,
figurando-se carinhosos e pequeninos condutores de cegos.
3 O quadro era formoso e enternecedor.
Possivelmente, examinando a estranheza que se apossara de mim, adiantou-se
a orientadora da instituição, explicando, atenciosa:
— Nossos amigos da Crosta, parcialmente libertos da carne pela atuação do sono, afluem até aqui, todas as noites, trazidos por companheiros espirituais, com o fim de receberem socorros ou avisos necessários. A Casa oferece recursos aos encontros oportunos.
4 Não consegui disfarçar
a surpresa, ante a cena maravilhosa, contemplando, embevecido, o cuidado
terno dos benfeitores desencarnados com todos aqueles que vinham dos
Círculos terrestres mais densos.
5 Atravessada a zona magnética
de defesa, confundimo-nos com os passantes. Não longe de mim, interessante
menino, que aparentava nove a dez anos de idade, revestido de gracioso
halo de luz, guiava uma senhora de passos incertos. Parecia enferma,
incapaz de autocontrole. O pequeno, porém, segurava-lhe firmemente a
destra e, após saudar a Irmã Zenóbia, respeitoso, exclamou para a matrona
hesitante:
— Por aqui, mamãe! Por aqui! Venha sem medo.
6 Ouvindo-o, a interpelada
parecia acordar num sonho bom e gritava, semi-inconsciente:
— Meu filhinho, meu filhinho! Não me deixes voltar. Quero-te sempre, sempre!…
7 As expressões de
meiguice misturavam-se a copioso pranto. Fixei-lhe os traços fisionômicos.
A pobre mãe não nos enxergava. Seguia, acanhada e insegura de si. Seus
olhos, que vertiam grossas lágrimas, permaneciam presos na contemplação
da criança, revelando a suprema ternura de mãe, exausta de saudade,
a reencontrar o objeto de seu amor, que parecera perdido para sempre.
— Mamãe, caminhe! Não desfaleça! — Clamava o rapazinho, exultando de
júbilo.
— Já vou, meu filho! Eu te seguirei, leva-me contigo! — Tornava a palavra maternal, afogada em sublime emoção.
8 Meus companheiros, habituados
talvez, desde muito, ao espetáculo, conversavam, descuidados, entre
si; todavia, segui, de olhos umedecidos, a criança carinhosa que amparava
a sua mamãe, até que desapareceram através de uma das portas laterais.
9 Não contive a surpresa
que me dominava. Tocando o braço do padre Hipólito, indaguei:
— Meu amigo, com que fim seguiriam a senhora e o menino?
Esboçou ele significativo gesto de espanto e observou:
— Não os vi.
10 Falei-lhe, então,
do quadro que tanto me enternecera, bordando meus informes de considerações
afetivas.
O ex-sacerdote sorriu compassivo e acrescentou:
— Ora, André, são tantas mães e tantas crianças a transitarem por aqui!… Certamente, o filhinho, como tantos outros, conduz a genitora a gabinetes de auxílio.
3.
Não tive tempo para emitir novas impressões.
2 Nosso grupo atingiu a porta
de ingresso e dois amigos acercaram-se, solícitos. Tratava-se de Gotuzo
e outro irmão com quem não havia entrado em contato pessoal.
Saudaram-nos cortesmente.
3 Logo após, dirigiu-se Gotuzo
à diretora, informando-a de que os serviços de colaboração na Crosta,
junto dos técnicos que organizavam algumas reencarnações expiatórias,
haviam sido executados satisfatoriamente.
Zenóbia agradeceu e convidou-os a partilhar das orações de louvor e gratidão ao Todo-Poderoso.
4 Penetramos a Sala Consagrada,
onde a orientadora tomou conhecimento das medidas levadas a efeito em
sua rápida ausência e certificou-se de que todos os abrigados haviam
comparecido à reunião geral de preces e auxílios magnéticos, realizada
minutos antes.
5 Sinais sonoros convocaram
colaboradores à ação de graças.
Zenóbia, delicada e ativa, dispôs-nos em torno de vasta mesa, ao fundo da qual se erguia uma tela transparente de grandes proporções.
6 Admirável a comunhão da
casa! Todos os dirigentes das variadas seções em que se subdividiam
as atividades do instituto, encontravam-se presentes para a tarefa gratulatória.
7 A diretora informou-nos,
afável, que todas as noites se verificavam trabalhos de oração para
os asilados e para o pessoal administrativo, salientando que, nesses
últimos, se reunia em pessoa com todos os subchefes da organização que
não se encontrassem inibidos por motivos de serviço. Naquela oportunidade,
éramos ali trinta e cinco criaturas, presas ao doce magnetismo daquela
mulher que tão bem sabia desempenhar a excelsa missão educativa. 8
À cabeceira do grande móvel referido, cercado pelas poltronas confortáveis
que ocupávamos em duas filas, sentou-se Zenóbia, radiante, mantendo-se
de frente para a tela constituída de tecido diáfano, semelhando tenuíssima
gaze. Trinta e cinco mentes, interessadas na aquisição de luz divina,
uniam-se à dela, para as vibrações de reconhecimento e paz.
Gotuzo, próximo de mim, entregou-se a profunda meditação.
9 Solicitando-nos acompanhar-lhe
mentalmente as palavras, a instrutora iniciou a oração comovente e sublime:
— “Senhor da Vida: nossos corações transbordantes de júbilo te agradecem as bênçãos de cada dia!
“Permite que nos reunamos, em teu nome, nesta noite bendita de felicidade
e esperança, para manifestar-te nossa gratidão imperecível.
10 “Não te rogamos, Senhor,
vantagens e benefícios para nós outros, ricos que somos de tua luz e
misericórdia, mas suplicamos ao teu coração augusto nos sejam concedidos
os dons do equilíbrio e da equidade, para que saibamos distribuir nossa
divina herança e não dissipemos, em vão, a glória de tuas dádivas. Fortifica-nos
a noção de harmonia para sermos cooperadores leais de teus santos desígnios.
11 “Erguemo-nos do abismo do
passado, por tua bondade vigilante, e aqui nos encontramos para servir-te!
Entretanto, Pai, vergados ao peso das inclinações humanas, por nós cultivadas
com desvarios emotivos, durante milênios, não prescindimos de tua disciplina
e de tua força paternal. Dá-nos o clima sadio da libertação de nós mesmos!
Magnetizados pelas nossas recordações do pretérito, nem sempre te compreendemos
a vontade soberana e criteriosa. Anula-nos o personalismo inferior para
que a consciência do Universo nos esclareça o coração. Levanta-nos o
raciocínio para mais alto entendimento; faze-nos vibrar no campo de
teus Divinos Pensamentos!
12 “Puseste em nossa boca o
verbo construtivo, encheste-nos a alma de luz e tranquilidade, a fim
de colaborarmos em tua obra. Deste-nos, neste pouso de amor fraterno,
companheiros dedicados ao bem, e, em torno de nossa tarefa pequenina,
colocaste a multidão dos aflitos e sofredores.
13 “Ó Senhor! Como somos felizes
pela possibilidade de ministrar em teu nome consolações e esclarecimentos!
Contudo, nós te imploramos inspiração e roteiro, considerando as responsabilidades
dos que te recebem a mordomia da salvação! Ensina-nos a agir desapaixonadamente;
infunde-nos respeito pela autoridade que nos deste; ajuda-nos a desprender
a mente das criações individuais, para que te sintamos mais de perto
no esforço coletivo da elevação comum! E toda vez que nossos atos traduzam
interferência indébita do livre arbítrio na execução de tuas leis, repreende-nos,
severamente, para que não persistamos no desvio impensado. Somos teus
filhos frágeis e confiantes! Todas as tuas resoluções, a nosso respeito,
são excelentes e belas. Concede-nos, pois, bastante visão, de modo a
enxergarmos nossa ventura em teus desígnios, sejam quais forem!
14 “Somos servos humildes de
tua sabedoria gloriosa!
“Neste celeiro de paz consoladora, recebemos a tua presença indireta, através de mil recursos diferentes com que atender os que choram e padecem.
“Ó Pai Compassivo! Que felicidade maior que esta, a de espalhar, com Nosso
Senhor Jesus-Cristo, as tuas bênçãos redentoras e carinhosas? Que escola
mais rica, além da que se localiza nesta casa, onde aprendemos, jubilosos,
a exercer o dom sublime de dar?”
15 A instrutora interrompeu-se,
de voz afogada na emoção com que se dirigia a Deus, e, aludindo à realização
particular que efetuara naquela noite, prosseguiu, depois de longa pausa,
comovendo-nos a todos:
— “Dilatando-nos a alegria, estimulando-nos a coragem, santificando-nos a esperança, tu permites ainda, Senhor, que possamos atender ao coração interessado em lenir e confortar Espíritos queridos, que se perderam de nossa companhia no curso incessante do tempo!”
16 Nova pausa da orientadora.
Em seguida, imprimindo suave entono às palavras que pronunciava, a Irmã
Zenóbia concluiu:
— “De alma voltada para a tua magnanimidade, endereçamos-te reconhecimento sem termo!
“Sê louvado por todos os milênios dos milênios, sê glorificado por todos os seres da Criação! Teus servidores nesta casa de edificação agradecem-te as oportunidades preciosas de trabalho e esperam a continuidade de tuas bênçãos. Que a tua infinita luz seja refletida em todo o Universo Infinito! Assim seja.”
17 As últimas sentenças da
oração inesquecível foram cunhadas em profunda emoção misturada de júbilo.
Aquela prece constituía ato de louvor dos mais formosos que eu escutara,
até então. Zenóbia regozijava-se pelo ensejo de serviço, pela fortuna
de contribuir com alguma coisa de útil, pela ventura de repartir o bem.
4.
Os minutos de adoração elevaram-nos. Suave luz irradiava-se de nossas
frontes sincronizadas nos mesmos pensamentos.
2 Finda a manifestação gratulatória,
a diretora recomendou-nos observação e silêncio. Não se passou muito
tempo e a tela, desdobrada diante de nós, como se fora instrumento de
resposta ao esforço devocional, iluminou-se de súbito, expelindo raios
de brilho maravilhosamente azul, que se espargiram sobre a diminuta
assembleia, quais minúsculas safiras eterizadas. Davam-me a ideia de
energias divinas a eclodirem sobre nós, penetrando-nos o íntimo e revitalizando-nos
o ser.
3 Transcorridos alguns minutos,
Zenóbia, agradeceu, sensibilizada, interpretando o sentimento geral.
4 Nova quietude pairou em
toda a sala. Contudo, após longos instantes de expectativa mais intensa,
Luciana tomou a palavra e dirigiu-se à Diretora, nestes termos:
— Neste momento, vejo na tela das bênçãos respeitável ancião, cercado de luz verde-prateada. Estende-lhe a destra, abençoando-a, e me recomenda dizer-lhe tratar-se de Bernardino.
— Ah! Já sei, — respondeu, contente, a instrutora, — é mensageiro da Casa Redentora
de Fabiano. Que Jesus o recompense pelo contentamento que nos traz.
5 — Assegura o iluminado
visitante, — tornou a clarividente prestimosa, — que as vibrações ambienciais
inclinam-se, agora, para as Esferas inferiores e que não conseguirá
fazer-se visível a todos, não obstante o seu desejo. Acrescenta que
os amigos da instituição velam pela marcha harmoniosa dos serviços e
que a fonte da Bondade Divina suprirá sempre de paz e recursos a todos
os corações de boa vontade, na semeadura do bem.
6 Em seguida a ligeiro intervalo,
que Luciana parecia aproveitar em meticulosa observação, informou, comovida:
— O emissário contempla-nos, silencioso, e, erguendo os olhos para o Alto, pede para nós a luz da compreensão divina.
7 Vimos profusa emissão de
raios brilhantes de luz verde, por intermédio de diáfana substância,
como nova chuva de pequeninas gotas celestes.
8 Terminada a exteriorização
da sublime energia, portadora de bem-estar, e findos alguns minutos
de novo silêncio, Luciana voltou a comunicar-se com a diretora:
— Irmã, ilumina-se a tela novamente. Desta vez, temos a visita de uma bem-aventurada celeste. Oh! Sua fisionomia deslumbra! Tem no colo soberbo ramalhete de lírios nevados a exalar inebriante perfume.
9 A informante não havia completado
a notificação e, em meio da alva claridade que se evolava da tela, sentíamos
todos o aroma característico das flores mencionadas, envolvendo-nos
em ondas de alegria e paz indescritíveis.
10 Impressionada por sua vez,
Luciana prosseguiu:
— A mensageira traja veludosa túnica, talhada em delicado tecido semelhante a escumilha de neve, e parece em oração de agradecimento…
— Agora, fixa-nos, bondosa, — continuou, retomando a palavra, — e atira-nos
as flores que traz consigo, revelando inexcedível carinho! Diz alguma
coisa… Oh! Sim, com permissão dos nossos Maiores, deseja comunicar-se
com o irmão Gotuzo e solicita-nos cooperação!
11 Não pude ocultar a surpresa,
em face do desdobramento dos trabalhos naquele ofício de gratidão e
louvor.
A Irmã Zenóbia, naturalmente experimentada nas atividades de intercâmbio, interveio, acrescentando:
— Sim, Luciana, tanto quanto estiver em suas possibilidades, ceda o seu veículo
de manifestação, já que o ambiente permanece pesadíssimo. 12
Noutras circunstâncias, a providência não seria necessária, mas as substâncias
densas do Plano, carregado de forças negativas, incidem sobre o aparelho
das bênçãos, forçando-nos ao concurso pessoal mais direto. Estamos prontos
para receber a devotada emissária nesta casa de paz. Gotuzo e nós outros
colocamo-nos à disposição dela, a fim de ouvir-lhe a mensagem de amor.
13 A enfermeira, com a possibilidade
de quem enxergava mais que nós, observou comovidamente:
— Identifica-se por Letícia, declara que desencarnou há trinta e dois anos e assevera que foi mãe do companheiro referido.
14 Mais emocionada e reverente,
acentuou:
— Ah! Desloca-se agora da tela e vem ao nosso encontro. Adianta-se. De suas mãos desprendem-se raios de sublime luz. Abraça-me! Oh! Como sois generosa, abnegada benfeitora!… Sim! Estou pronta, cederei com prazer!…
5.
Nesse instante, a fisionomia de Luciana transformou-se. Beatífico sorriso
estampou-se-lhe nos lábios. De sua fronte irradiava-se formosa luz.
Com a voz altamente modificada, começou a exprimir-se a emissária por
seu intermédio:
2 — Irmãos, seja conosco a
paz do Cordeiro Divino! Não desejamos perturbar a reunião que vos congrega
no serviço impessoal da verdade e do bem; todavia, com a permissão dos
nossos Orientadores, venho ao encontro de alguém que nos é muito caro,
buscando despertar-lhe a consciência para horizontes mais altos da vida.
3 Sorriu, benévola, e continuou:
— Relevem-nos, pois, dedicados amigos! Nossas experiências mais elevadas resultam
da permuta incessante de valores comuns. 4
O coração que ama em Cristo é operosa abelha que recolhe o mel de sabedoria
em todas as flores de amor e trabalho. Colherei, contente, na alma fraterna
desta assembleia de cooperadores da Vontade Divina, elementos de tolerância
e compreensão e sentir-me-ei feliz se puder oferecer-lhes algo do carinho
materno que mantenho no coração faminto de vida superior.
5 Fez reduzido intervalo entre
a saudação e o objetivo de sua permanência entre nós. Em seguida, dirigindo-se,
em particular, ao colega que lhe recebia a visita, expressou-se com
acentuada inflexão de ternura:
— Gotuzo, meu filho, serei breve. Antes de adverti-lo, já roguei ao
Senhor o abençoe e inspire sempre. Ouça, desapaixonadamente, a palavra
de sua mãe e velha amiga. 6
Desprenda-se das ideias antigas para compreender melhor. As concepções
inferiores de nosso “eu” também se cristalizam, impedindo a penetração
da luz em nosso campo interno. 7
Escute, filho meu, como pode menosprezar a santa oportunidade de elevação?
Como pode permanecer em repouso, perante as necessidades primordiais
do espírito? 8 O Mestre
aproveita as qualidades utilizáveis do discípulo, em determinado setor
do aprendizado, adiando, por misericórdia, a melhoria e o aprimoramento
de certas zonas obscuras da personalidade. Por vezes, o aprendiz retarda-se
meses, anos, séculos… 9
Jesus não é senhor da violência e nunca impõe drásticos à obra evolutiva.
É cultivador do trabalho, da esperança. Aguardará sempre, compassivo
e bondoso, nossas decisões de colaborar no apostolado redentor, suportará
nossas faltas muitas vezes; entretanto, em nosso próprio interesse,
deveremos atentar, vigilantes, para os seus ensinamentos, com a sincera
disposição de aplicá-los. 10
Sem dúvida, não nos fulminará com raios destruidores pela nossa demora
em desculpar alguém; no entanto, recomendou perdoemos setenta vezes
sete vezes; ( † ) naturalmente, não nos perseguirá pela nossa dificuldade
em simpatizar com irmãos atualmente menos felizes que nós. Esforçou-se,
contudo, para que nos amemos uns aos outros. 11
Não virá em pessoa obrigar-nos a assumir determinada atitude evangélica,
mas traçou todas as disposições necessárias ao estabelecimento de roteiros
para a prática do bem. 12
Seu esforço médico, nesta casa, é, de fato, apreciável. Companheiros
dignos seguem-no com amizade e admiração. Multiplicam-se os valores
que o cercam; amontoa você preciosidades e bênçãos, na parte das aquisições
afetivas, porém… e o seu próprio destino? 13
Seus amigos, não obstante a luz que lhes brilha no caráter santificado,
não podem substituí-lo nas realizações que o esperam. Suas manifestações
de natureza exterior instruem e confortam. Seus pensamentos mais íntimos,
entretanto, dilaceram-nos o coração. 14
Como conduzirá doentes à cura, se prossegue magoado com aqueles que
o feriram aparentemente? Como dará lições de bom ânimo aos tristes,
se se demora tanto tempo na ilusão do desalento? 15
Ó filho amado, ninguém serve à obra do Pai com a mente toldada pelo
vinho amargoso das paixões! Abra o entendimento à passagem das bênçãos
divinas! Não guarde vermes venenosos no jardim da esperança… Estragariam
as mais belas flores, aniquilando a promessa dos frutos…
16 Interrompeu-se a mensageira,
por um momento, parecendo coordenar a argumentação, e prosseguiu:
— É razoável que você demore neste asilo de amor, colaborando na cura
de desequilibrados mentais, longe dos Círculos mais densos. Contudo,
não pretende ganhar o Mais Além? Admite, satisfeito, o cárcere do estacionamento,
malgrado o caráter do trabalho edificante? Não desejará libertar-se
para libertar, efetivamente, os prisioneiros da ignorância? Não demandará
o Plano superior para ser mais útil aos que intentam galgar a escada
reveladora da luz imortal? 17
Não falo a você, agora, dentro da afetuosa impertinência de mãe. Nossos
laços, presentemente, em relação ao passado, são muito diversos. Somos,
ambos, filhos do Pai Altíssimo, e creia que minha devoção por você não
é menor. 18 Não o
abandonarei às inclinações menos elevadas, não obstante justificáveis
na tabela das convenções puramente humanas. E, em razão disso, venho
ouvi-lo sobre os seus propósitos. Você tem cooperado, espontâneo e assíduo,
nas tarefas do bem. É um trabalhador com direito a descobrir os próprios
erros e a retificar o caminho que lhe compete. 19
Ouça, porém, meu filho, e compreenda-me: venho intercedendo, junto às
autoridades que nos regem os destinos, para que a sua consciência desperte
para a divina luz. O grupo doméstico, amado e inesquecível, espera por
você na preparação da felicidade porvindoura!…
20 As palavras pronunciadas
exprimiam enorme bagagem de considerações que ficariam por dizer. Cada
conceito envolvia-se em significativa onda de pensamentos, que evidenciavam,
de modo indireto, os sagrados fins da visita materna.
21 Após longa pausa, Letícia
indagou delicadamente:
— Que responde, filho meu?
Fez-se comovedor silêncio; percebemos que Gotuzo chorava, entre a respiração opressa e os soluços mal-contidos. Ao termo de alguns instantes, replicou, humilde:
— Minha mãe! Minha boa mãe! Estou pronto!…
22 A comunicante, cuja presença
sentíamos sem ver, tornou, visivelmente emocionada:
— Rendo graças ao Senhor pela sua compreensão. Sim, meu filho, organizaremos
todas as medidas indispensáveis. Voltará, em breve, ao agrupamento familiar.
Prepare-se, considerando a luta imprescindível à iluminação. 23
O instituto doméstico, legitimamente considerado, é celeiro de supremos
valores educativos para quantos procurem os interesses divinos, acima
das cogitações humanas. 24
O lar terrestre é bendita forja de redenção. Reencontrará as simpatias
e antipatias de outro tempo, oferecendo possibilidades felizes de reajustamento
emocional. 25 Recapitule
mentalmente as lições aprendidas, peça a inspiração de Jesus e disponha-se
a partir, tranquilo. Não desanime diante do serviço a fazer. Somos milhões
de criaturas, disputando o ensejo de santificar sentimentos. 26
No passado, raras vezes procedíamos em obediência aos ditames da Lei.
Se exteriorizávamos estima, perdíamo-nos em excessos de paixão, como
perdulários do afeto; se manifestávamos atitudes de corrigenda, cedíamos
à cegueira do ódio, como cultores do exclusivismo feroz. É necessário regressar
ao curso, para conquistar o equilíbrio espiritual necessário à elevação.
27 Gotuzo, em lágrimas, não
conseguia falar. A ex-genitora, todavia, deixando-nos perceber que lhe
captava os mais íntimos pensamentos, acentuou, depois de mais longo
interregno:
— A esposa dedicada que deixou na Crosta não poderá servir-lhe de mãe;
entretanto, ser-lhe-á carinhosa e experiente avó. 28
Seu adversário gratuito, pobre homem que se entregou à inveja e à ambição
destruidoras, receberá seus beijos infantis e com eles os eflúvios de
seu perdão renovador. 29
Que coração enganado pelos maus sentimentos não se dobrará entre as
mudanças da vida? O ex-inimigo penetra, agora, no declínio das ilusões.
Sua alma atravessa atualmente o pórtico que dá acesso à velhice do corpo
temporário. Ao invés de lembranças doces que lhe afaguem o espírito,
curtirá aflitivas reminiscências. 30
Sua presença atenuar-lhe-á os pesares. Enquanto as doenças do desequilíbrio
lhe vergastarem a carne e as recordações penosas lhe castigarem a mente,
será você o neto consolador, mensageiro de paz em forma de criança.
31 Ajudá-lo-emos a consagrar-lhe
atenção e carinho. No desencanto do corpo cansado e na ternura infantil,
o Espírito consegue sublimes realizações para a vida eterna.
32 Novo intervalo da visitante,
que continuou, em seguida:
— Seu futuro pai, na efêmera existência humana, coração particularmente
amado do seu, receberá concurso amoroso e decisivo dum filho muito caro,
elevando-se a nobilitante altura moral, pelo sagrado estímulo de sua
companhia. 33 Sua
volta infundir-lhe-á mais respeito ao mundo e aos semelhantes. Desejará
cultivar virtudes e valores, a fim de que você lhe abençoe a paternidade.
Chorará com as suas dores, rir-se-á com as suas alegrias. Sentir-se-á
novo homem, ao contacto de suas mãos pequeninas. 34
Seu esforço futuro, após as realizações que vem levando a efeito, beneficiará
todo o grupo familiar, em abençoada tarefa que não pôde realizar na
condição que passou. Ó meu filho! Haverá ventura maior que a de liquidar
nossos débitos e partir unidos para os júbilos do cântico imortal de
integração com a Divindade? Outras escolas mais belas esperam por nós,
outras glórias nos felicitarão para sempre! Sigamos para Deus!…
6.
Nesse ponto, interrompera-se-lhe a palavra, talvez absorvida pela emoção
profunda.
Respeitoso e humilde, Gotuzo rogou à Irmã Zenóbia lhe permitisse aproximar-se. Obtido o consentimento, avançou para a poltrona em que Luciana traduzia a personalidade materna, e ajoelhou-se, beijando-lhe as mãos:
2 Letícia, bondosa, recomendou:
— Levante-se, meu filho… Sei que você me ama, intensamente. Todavia, há irmãos
nossos que lhe esperam a estima e a compreensão. 3
Não venho sozinha ao seu encontro. Enquanto me dispunha a visitá-lo,
solicitei o comparecimento de alguém dos Círculos mais densos, para
colher a certeza de suas disposições. Para a nossa felicidade completa
não basta que você me beije e admire. É indispensável que se aproxime
fraternalmente daqueles a quem ainda não sabe amar. Alguém confabulará
conosco, dentro de minutos breves. Abrir-se-ão as portas desta casa
de bênçãos, em benefício de nossa congregação familiar. Espere.
4 Mantinha-se Gotuzo em ansiosa
expectativa, em face das singulares observações.
Surpreendendo-nos a todos, poucos segundos após, duas senhoras penetraram o
recinto. A que apresentava maior número de anos, revelava alta posição
de orientadora, na luz que a circundava, mas a segunda mostrava a obscura
condição de alma encarnada, em temporário afastamento do corpo, através
do sono físico. 5 Reconheceu
Gotuzo, de longe, e, evidenciando incontestável deficiência de disciplina
emotiva, estendeu-lhe os braços, descontrolada e inquieta, bradando:
— Gotuzo! Gotuzo! Que felicidade, este reencontro!
6 Parecendo, porém, perturbada
pelo choque das lembranças relativas à diferente situação que o desprendimento
do primeiro esposo lhe trouxera, acrescentava, aflita:
— Não me queira mal! Ajude-me por amor de Deus! Não me abandone, não me abandone!…
Dolorosos soluços rebentavam-lhe do peito.
7 O interpelado quedou silencioso,
atendendo, talvez, à íntima angústia que o dominava, mas Letícia interveio,
generosa. Erguendo-se, firme, recolheu a nora nos braços e tranquilizou-a:
— Venha, Marília, venha ao meu coração. Sabemos quanto tem sofrido, na silenciosa depuração espiritual. Nunca fomos surdos aos seus rogos e conhecemos, de perto, a extensão das provas amargurosas que lhe colheram a alma sensível.
8 A visitante da Crosta
Terrestre contemplava a benfeitora, enlevada e feliz, sentindo-se na
presença dum anjo bom, já que não conseguia coordenar raciocínios para
compreender o fenômeno em curso. Através da luminosidade de seu olhar,
observávamos a ventura que lhe banhava o Espírito, jubilosa ao contacto de tão belo entendimento. 9
Depois de acariciá-la com meiguice materna, a venerável amiga dirigiu-se
ao nosso companheiro, acentuando:
— Meu filho, não queria você abraçar-me e beijar-me? Acredita que a esposa
terrestre mereça menos que eu? Admite, ainda, que a mãe de seus filhinhos
estremecidos, saudosa e devotada, tenha sido ingrata ao seu desvelado
amor? Continuará esquecido do bem para agravar o mal? 10
A viúva, na Crosta, em muitas ocasiões, deve aceitar o segundo matrimônio
como sacrifício necessário, por supremo respeito ao consorte que partiu.
Retire dos olhos a venda do egoísmo que lhe vem interceptando a visão
e interprete com naturalidade as exigências da vida terrena.
11 Num gesto conciliador, confiou-lhe
a esposa, acrescentando:
— Ajude-a para que você possa ser ajudado. Não recuse a lição, porque o futuro virá aclará-la inteiramente.
12 Magnetizado, talvez, pela
carinhosa advertência materna, Gotuzo abriu os braços e recolheu-a,
solícito, na atitude de irmão compadecido e desvelado.
Marília observava-o, em êxtase.
— Oh! Que sonho bom! — Exclamou, sob indefinível expressão de ventura.
13 E, relanceando o olhar pelo
salão em luz, dirigia-se a nós outros, comovedoramente:
— Tenho medo de minha velha habitação! Ah! Por favor, enviados divinos, não me deixeis voltar nunca! Nunca mais!…
14 Compreendendo que a nora,
temporariamente liberta do corpo, entrava num domínio vibratório prejudicial
à organização psíquica, em virtude dos deveres que lhe cabiam na Esfera
carnal, Letícia considerou, retomando-a a si:
15 — Ouça, filha:
é preciso que você não se detenha por mais tempo. Não pode permanecer
entre nós, antes que os Eternos Desígnios se manifestem nesse sentido.
Volte, porém, ao lar distante, convencida de nossa afeição sem mácula.
Nossa tranquilidade seguir-lhe-á os dias terrenos. Não lhe faltará cooperação.
16 Se não pode acompanhar
o esposo querido, pela inoportunidade de semelhante desejo, alegre-se
e confie no Poder Divino, pois Gotuzo irá ao seu encontro. Em breve,
Marília, seus beijos orvalharão de amor e ventura um rosto pequenino,
que sintetizará, para as suas esperanças de avó, verdadeiro mundo de
felicidade redentora.
17 Emocionada pela alegria,
interrogou a pobre alma:
— Gotuzo perdoou-me?
— Ele nunca sofreu ofensa alguma de seu coração dedicado, — adiantou-se Letícia,
bondosa, — e lembrar-se-á sempre, com desvelo e ternura, da companheira
fiel que lhe amparou os filhinhos amados e lhe honrou o nome, entre
renúncias e sacrifícios ignorados.
— Oh! Oh! Que felicidade! — Repetia a interlocutora, afogada em pranto de júbilo e reconhecimento.
18 Afagando a fronte do filho,
que também chorava sob forte emoção, Letícia rogava-lhe:
— Diga-lhe, meu filho, quanto a amamos! Tranquilize-lhe a alma sensível e afetuosa!
19 Tal como uma criança vencida,
nosso irmão assegurou:
— Marília, nunca resgatarei minha dívida para com seu devotamento. Regresse,
confiante, enquanto preparo minha própria volta. Brevemente, com o auxílio
de Deus e de nossa abençoada mãe, estaremos, de novo, reunidos na Terra!
Peça energias para mim, em suas orações de serva incompreendida. 20
Está você em vias de terminar dolorosa prova de resgate, ao passo que
vou recomeçá-la. Sou eu, portanto, agora, quem suplica auxílio e proteção…
Espere-me! Não desfaleça! Aprenderemos a refundir sentimentos, purificar
laços afetivos, santificar impulsos e, sobretudo, abençoaremos quem
nos feriu aparentemente, amparando suposto inimigo, a fim de que nos
convertamos em sinceros irmãos uns dos outros…
Ambos choravam enternecedoramente.
21 Em seguida, Letícia restituiu
a nora aos braços amigos da orientadora que a reconduziu de volta ao
corpo físico, no mesmo silêncio dentro do qual se mantivera até então.
A ex-genitora de Gotuzo recomendou-lhe que retomasse o primitivo lugar e, recompondo o ambiente, solicitou o concurso de Zenóbia para a futura realização filial.
22 A Diretora da Casa, rememorando
talvez o esforço que levara a efeito naquela mesma noite, em benefício
dum coração que lhe era particularmente amado, acusava funda emoção.
— Gotuzo conta nesta instituição com amigos que lhe são infinitamente reconhecidos,
— falou Zenóbia, sensibilizada. — É companheiro a quem devemos muito.
Realizaremos, de bom grado, tudo quanto esteja ao nosso alcance para
que a experiência nova lhe seja portadora de luzes e bênçãos. 23
A felicidade dele, em outro setor, minha irmã, será igualmente a felicidade
desta casa. Segui-lo-emos na recapitulação terrestre, atenciosos e vigilantes,
não por obséquio, mas em obediência ao preito de gratidão de que somos
devedores, pelos vários anos em que cooperou conosco, devotada e assiduamente.
24 Letícia agradeceu e partiu,
deixando-nos preciosos eflúvios de paz e encantamento.
Outro iluminado mentor da organização socorrista, identificado por Luciana, então reintegrada na própria personalidade, ditou-nos, por ela, algumas palavras elevadas e santas de estímulo, endereçando-nos copiosa chuva de raios luminosos através da tela das bênçãos, recomendando a Zenóbia que encerrasse os serviços da prece, na paz do Senhor.
25 A diretora pronunciou enternecida
oração de reconhecimento e júbilo, encerrando a tarefa. Abraçando-nos,
esclarecidos e satisfeitos pelo êxito da hora, vimos que a Irmã Zenóbia
encaminhou-se para Gotuzo, enlaçando-o maternalmente:
— Oh! Minha venerável irmã! — Disse ele, enternecido, — como é grande o prêmio
da Misericórdia Divina!… Não mereço tanto! Auxilie-me a agradecer a
Deus!…
26 — Regozijemo-nos,
Gotuzo! — Respondeu a interlocutora, — e louvemos o Pai que tanto nos
engrandece o esforço obscuro e pequenino! O agraciado de hoje não foi
apenas você. Também eu aumentei, de muito, meus grandes débitos para
com o Altíssimo!…
De voz quase embargada pela comoção, concluiu:
— Também eu recebi divina concessão nesta grande noite!
André Luiz