1.
A diferença de atmosfera, entre o dia e a noite, na Casa Transitória
de Fabiano, era quase inalterável. Não conseguiria estabelecer comparações
apreciáveis, mesmo porque, durante todo o tempo de nossa permanência
no instituto, estiveram acesas as luzes artificiais. 2
Denso nevoeiro abafava a paisagem, sob o céu de chumbo e, ao que fui
informado, grandes aparelhos destinados à fabricação de ar puro funcionavam
incessantemente, na casa, renovando o ambiente geral. n 3
Víamos o Sol, fundamente diferençado, em pleno crepúsculo. Semelhava-se
a um disco de ouro velho, sem qualquer irradiação, a perder-se num oceano
de fumo indefinível. Cotejando a situação com os quadros primaveris
da Crosta Planetária, os ocasos da Esfera carnal parecem verdadeiras
decorações do paraíso.
4 Permanecíamos em região
onde a matéria obedecia a outras leis, interpenetrada de princípios
mentais extremamente viciados. Congregavam-se aí longos precipícios
infernais e vastíssimas zonas de purgatório das almas culpadas e arrependidas.
5 Na verdade, muita vez viajara
entre a nossa colônia feliz e o Plano crostal do planeta, atravessando
lugares semelhantes, mas nunca me demorara tanto em círculo desagradável
e escuro como esse. A ausência de vegetação, aliada à neblina pesada
e sufocante, infundia profunda sensação de deserto e tristeza.
6 Os amigos, porém, com a
Irmã Zenóbia à frente, faziam quanto possível por converter o pouso
socorrista num oásis confortador. Alguém chegou à gentileza de lembrar
a oportunidade do quadro externo para que nos voltássemos para dentro
de nós, com o proveito necessário.
— Sim, — assentiu o Assistente Jerônimo num abrigo de pronto socorro espiritual,
é conveniente que não haja facilidade para distrações prejudiciais aos
nossos deveres.
7 Estampou riso franco nos
lábios e acentuou:
— Por isso mesmo, quando na Crosta da Terra, nunca tivemos descrições de infernos floridos ou de purgatórios sob árvores acolhedoras. Nesse ponto, os escritores teológicos foram exatos e coerentes. Aos culpados e penitentes confessos não convém a fuga mental. Em favor deles próprios, é mais razoável sejam mantidos em regiões desprovidas de encanto, a fim de permanecerem a sós com as criações mentais inferiores a que se ligaram intensivamente.
8 A conversação, rica de particularidades
interessantes, compensava a aspereza exterior, valorizando o tempo,
acerca do qual não se conseguia fazer nenhum cálculo, a não ser pela
observação dos cronômetros que eram, aí, aparelhos preciosos n e indispensáveis.
9 Ao soar das dezenove horas,
orientados pela administradora da casa, preparamo-nos para pequena jornada
ao abismo.
Convocou Zenóbia vinte cooperadores para as tarefas de colaboração eventual
e imediata, três mulheres e dezessete homens, que, à primeira vista,
não pareciam pessoas de cultura e sensibilidade extremamente apuradas,
mas que mostravam, no olhar sereno e firme, boa vontade, dedicação leal
e caráter resoluto no espírito de serviço. 10
Mais tarde, vim a saber que o instituto asila constantemente variados
grupos de entidades, repletas de característicos humanos primitivistas,
mas portadoras de virtudes e valores apreciáveis, que colaboram na execução
das tarefas gerais e se educam ao mesmo tempo, preparando-se para reencarnações
e experiências de mais elevada expressão.
11 Dirigindo-se ao subalterno
que recebera atribuições de subchefia, indagou Zenóbia, serena:
— Ananias, temos o material de serviço devidamente arregimentado? Não devemos esquecer, principalmente, as faixas de socorro, as redes de defesa e os lança-choques.
— Tudo pronto, — respondeu, satisfeito, o colaborador.
Voltou-se, em seguida, para o nosso orientador e disse, bem-humorada:
— Irmão Jerônimo, convirá, desse modo, iniciar a marcha.
12 E detendo-se, ao nosso
lado, acrescentou:
— De antemão, rogo desculpas a todos se lhes tomar tempo para atendermos ao desventurado irmão a que me referi, satisfazendo a interesse que me é particular. A clarividência de Luciana e a oração de todos os amigos, porém, constituirão fatores decisivos em benefício da renovação dele, a fim de que aceite as providências redentoras do futuro. É serviço que prestarão a mim própria, pelo qual serei devedora reconhecida.
13 Ligeiro véu de melancolia
inexplicável toldou-lhe repentinamente o olhar, mas, cobrando ânimo
novo, considerou:
— Além disso, o padre Hipólito endereçará apelos cristãos aos infelizes que choram na zona abismal. O fogo purificador passará amanhã e poderemos ministrar-lhes aviso edificante.
O ex-sacerdote comentou, confortado:
— A cooperação será para nós um prazer.
2.
Dirigindo-se, então, a grande número de companheiros e subordinados
de serviço, a Irmã Zenóbia consolidou a atenção de todos para o desempenho
do mapa de trabalhos que havia planejado para tão significativa noite.
2 A casa deveria permanecer
atenta à contribuição que receberia dos institutos congêneres, no dia
imediato, pela manhã; 3
alguns servidores seguiriam para a Crosta, prestando apoio à expedição
Fabrino, n nalguns casos difíceis de reencarnação compulsória; 4
certos departamentos abrir-se-iam à visitação dos encarnados parcialmente
libertos da Crosta, em momentos de sono físico, para receberem benefícios
magnéticos, de conformidade com as solicitações autorizadas; 5
determinadas dependências seriam preparadas devidamente para a eventual
recepção de missionários do bem, procedentes das Esferas elevadas; 6
organizar-se-iam leitos para alguns desencarnados prestes a serem trazidos,
segundo notificação anteriormente recebida; 7
duas enfermeiras, orientadoras de colônias espirituais para regeneração,
trariam vinte crianças recém-libertas dos laços carnais, no sentido
de se avistarem com as mães que viriam da Crosta, amparadas por amigos
para reencontro confortador, em caráter temporário; 8
variadas delegações de trabalho espiritual, junto a instituições piedosas,
encontrar-se-iam no abrigo para combinar providências; 9
duas novas missões de socorro alcançariam o asilo, dentro de breves
horas, e demorar-se-iam até pela manhã, conforme aviso prévio; 10
todos os trabalhos preparatórios da mudança assinalada para o dia seguinte
deveriam ser levados a efeito; 11
medidas outras de menor significação foram recomendadas e, por fim,
a diretora notificou que o recinto de orações deveria aguardá-la, em
posição de iniciar a prece de reconhecimento da noite, sem nenhuma delonga.
12 Não conseguia disfarçar
a surpresa, examinando semelhante quadro de obrigações, porque, segundo
cálculo efetuado momentos antes, a Irmã Zenóbia estaria ausente apenas
quatro horas.
3.
Ultimando providências, acenou para nós, convidando-nos a acompanhá-la.
E ao transpormos o limiar, explicou-nos, cuidadosa:
2 — Convém manter apagado,
no trajeto, todo o material luminoso. — E fitando-nos, resoluta, informou:
— Quanto a nós, sigamos silenciosos, a pé. Não será razoável utilizar
a volitação em distância tão curta. Mais justo assemelharmo-nos aos
pobres que habitam estes sítios, perante os quais, enquanto perdure
a pequena caminhada, deveremos guardar a maior quietude. Qualquer desatenção
prejudicar-nos-á o objetivo.
3 Decorridos alguns instantes,
atravessávamos as barreiras magnéticas de defesa e púnhamo-nos a caminho.
Noutras circunstâncias e noutro tempo, não conseguiria eu dominar o pavor que
nos infundia a paisagem escura e misteriosa, à nossa frente. Vagavam
no espaço estranhos sons. Ouvia perfeitamente gritos de seres selvagens
e, em meio deles, dolorosos gemidos humanos, emitidos, talvez, a imensa
distância… 4 Aves de
monstruosa configuração, mais negras do que a noite, de longe em longe
se afastavam de nosso caminho, assustadiças. E embora a sombra espessa,
observava alguma coisa da infinita desolação ambiente.
5 Após alguns minutos de marcha,
surgiu-nos a Lua, como bola sangrenta, através do nevoeiro, espalhando
escassos raios de luz.
Poderíamos identificar, agora, certas particularidades do terreno áspero.
6 A Irmã Zenóbia colocara adestrado auxiliar diante de nós, especialista na travessia daquelas
sendas estreitas, e, conforme recomendação inicial, guardávamos rigoroso
silêncio, em fila móvel, ganhando a estrada hostil.
Atingimos zona pantanosa, em que sobressaía rasteira vegetação. Ervas mirradas e arbustos tristes assomavam indistintamente do solo.
7 Fundamente espantado,
porém, ao ladear imenso charco, ouvi soluços próximos. Guardava a nítida
impressão de que as vozes procediam de pessoas atoladas em repelentes
substâncias, tais as emanações desagradáveis que pairavam no ar. 8
Oh! Que forças nos defrontavam, ali! A treva difusa não deixava perceber
minudências; todavia, convencera-me da existência de vítimas vizinhas
de nós, esperando-nos amparo providencial. Estaríamos ante o abismo
a que se referia a administradora da Casa Transitória? Optei pela negativa,
porque a expedição não se deteve em tão angustioso lugar.
9 Jerônimo seguia rente aos
meus passos e não contive a indagação que me escapou, célere:
— Jazem aqui almas humanas?
O interpelado, em atitude discreta, somente respondeu num gesto mudo, em que me pedia calar.
10 Bastaram, no entanto, minhas
quatro palavras curtas para que os lamentos indiscriminados se transformassem,
de súbito, em rogativas tocantes e estertorosas:
— Ajude-nos, quem passa, por amor de Deus!
— Salvai-nos, por caridade!…
— Socorro, viandantes! Socorro! Socorro!…
11 Verificou-se,
então, o imprevisto. Certamente, as entidades em súplica permaneciam
jungidas ao mesmo lugar, mas figuras animalescas e rastejantes, lembrando
sáurios de descomunais proporções, avançaram para a nossa caravana,
ausentando-se da zona mais funda dos charcos. Eram em grande número
e davam para estarrecer o ânimo mais intrépido. 12
Experimentei o instinto de utilizar a volitação e fugir à pressa. Entretanto,
a serenidade dos companheiros contagiava e esperei firme. Quase imperceptível
estalido partiu da destra da Irmã Zenóbia, e dez auxiliares, aproximadamente,
utilizaram minúsculos aparelhos, emitindo raios elétricos de choque,
através de insignificantes explosões. Não obstante ser fraca a detonação,
a descarga de energia revelava vigoroso poder, tanto que os atacantes
monstruosos recuavam, precipitados, recolhendo-se ao pântano, em queda
espetacular sobre a lama grossa.
13 Multiplicavam-se as lamentações
dos prisioneiros invisíveis da substância viscosa.
— Libertai-nos! Libertai-nos!…
— Socorro! Socorro!…
Cortavam-me a sensibilidade aquelas imprecações pungentes e dolorosas, mas ninguém parou.
14 Seguia a expedição, diligente
e muda.
Compreendi que estavam em jogo maiores interesses de trabalho e não insisti. Minha posição era a do subalterno chamado a cooperar.
15 Mais alguns minutos e havíamos
varado a região dos charcos. Penetrando terreno de configuração diferente,
aliviou-se-me, de algum modo, o coração condoído. Entretanto, agora,
vultos negros de entidades humanas esgueiravam-se junto de nós. Aproximavam-se
com a visível disposição de atacar, recuando, porém, inesperadamente.
Supus, por minha vez, que o movimento de recuo ocorria logo que eles
observavam a extensão do nosso grupo de vinte e cinco pessoas. Temiam-nos
a expressão numérica e fugiam, pressurosos.
16 Prosseguindo a marcha, penetramos
escarpada região e, atendendo ao sinal da Irmã Zenóbia, os vinte auxiliares
que nos seguiam postaram-se em determinado ponto, com a recomendação
de nos aguardarem a volta.
17 A diretora da Casa Transitória,
então, conduziu-nos os quatro, caminho a dentro, acentuando que encetaríamos
isoladamente a primeira parte do programa de serviço. Em semelhante
paragem, a atmosfera rarefazia-se de maneira sensível. A Lua pareceu
menos rubra, a relva mais doce, o ar mais tranquilo.
18 — Estamos em
reduzido oásis de paz, em meio de extenso deserto de sofrimentos, —
esclareceu Zenóbia quebrando o longo silêncio. — Agora podemos falar
e atender aos objetivos de nossa vinda.
19 Logo após, evidenciando
preocupação em sossegar-nos o íntimo, referentemente aos sofredores
anônimos que encontráramos no caminho, explicou-nos delicadamente:
— Não somos impermeáveis às rogativas dos nossos irmãos que ainda gemem
no charco de dor a que se atiraram voluntariamente. Dilaceram-nos o
espírito as imprecações dos infelizes. 20
No entanto, a Casa Transitória de Fabiano tem-lhes prestado o socorro
possível, ajuda essa que, até hoje, vem sendo repelida pelos nossos
irmãos infortunados. 21
Debalde libertamo-los, periodicamente, dos monstros que os escravizam,
organizando-lhes refúgio salutar. Fogem de nossa influenciação retificadora
e tornam espontaneamente ao charco. É imprescindível que o sofrimento
lhes solidifique a vontade, para as abençoadas lutas do porvir.
4.
Estabelecida a ressalva, que percebi especialmente formulada de modo
indireto para mim, Zenóbia continuou, bastante emocionada:
2 — Compete-me, agora,
alguns esclarecimentos. Neste instante, deve esperar-nos, na orla do
abismo, o irmão a que aludi, devotado amigo para mim, noutro tempo,
e pelo qual devo trabalhar, na atualidade, através de todos os recursos
legítimos, ao meu alcance. Infelizmente, o pobrezinho mantém-se em padrão
vibratório dos mais inferiores. 3
Creio precisas estas explicações preliminares, facilitando-lhes a obsequiosa
colaboração desta noite. Muitas vezes, a surpresa dolorosa compele-nos
à solução de continuidade no serviço a fazer. Daí minha preocupação
justa em prestar-lhes os informes devidos. Trata-se do padre Domênico,
entidade a quem muito devo. 4
Foi ele clérigo menos feliz, incapaz de manter-se fiel ao Senhor até
ao fim de seus dias. Iniciou-se nas lutas humanas, tocado de sublimes
esperanças, na primeira mocidade; entretanto, porque os desígnios do
Pai eram diversos dos caprichos que alimentava no coração de homem apaixonado
e voluntarioso, em breve caía em despenhadeiros que lhe valem os amargosos
padecimentos, depois do túmulo. 5
Aproveitou-se das casas consagradas à fé viva para concretizar propósitos
menos dignos, conspurcando a paz de corações sensíveis e amorosos. Recebeu
todas as advertências e avisos salutares tendentes a modificar-lhe a
conduta criminosa e desvairada. Todavia, internou-se fundamente no lamaçal
escuro dos erros voluntários, desprezando toda espécie de assistência
salvadora. 6 Colaborei
durante anos consecutivos nos serviços de orientação que lhe eram ministrados,
mas, pela expressão intensa de fragilidade humana que ainda conservava
em minha alma, abandonei-o, também, à própria sorte, absorvida por sentimentos
de horror. 7 Minha
deliberação estabeleceu comprida pausa de tempo em nossas relações diretas.
Mais de quarenta anos rolaram, entre nós. De tempos a esta parte, porém,
seus sofrimentos acentuaram-se de maneira terrível, obrigando-me a mobilizar
minhas humildes possibilidades em seu favor. 8
Desencarnado, desde muito, voltou da Crosta em angustiosas circunstâncias.
Ocasionou desastres morais de reparação muito difícil. E ainda permanece
insensível às nossas exortações de amor e paz, conservando-se em posição
psíquica negativa. Precipitou-se em temível aridez do coração, envolvendo-se
em forças que o aniquilam e entorpecem cada vez mais. 9
Para que males maiores não lhe ocorram fui, a meu pedido, autorizada
a incluí-lo entre os tutelados externos de nossa instituição. Consegui,
desse modo, que alguns de nossos cooperadores lhe atenuassem o movimento
fácil, sem que pudesse ele dar conta de nossas operações fluídico-magnéticas,
nesse sentido. 10
Tem sofrido muito. No entanto, apesar da prostração, ainda não modificou
a mente, mantendo-se em pesadas trevas interiores e subtraindo-se, sistematicamente,
a qualquer esforço de autoexame, que lhe facilitaria, sem dúvida, algum
repouso espiritual. 11
Além desse alívio, que lhe é sumamente indispensável, o padre Domênico
necessita regressar à experiência construtiva na Crosta Planetária,
recapitulando o pretérito em serviço expiatório. Entretanto, a situação
mental em que se demora cria-lhe empecilhos de vulto, dificultando-nos
a ação intercessória. 12
Urge, porém, que regresse à reencarnação. Amigos nossos, devotados e
solícitos, amparam-me o pedido em benefício dele e Domênico voltará
a unir-se, como filho sofredor de uma das suas vítimas de outro tempo,
vítima e verdugo, porque, num gesto de vingança cruel, o ofendido eliminou
o ofensor com a morte. 13
Para reintegrar-se nas correntes carnais, preciosas e purificadoras,
deve o infortunado adquirir, pelo menos, a virtude da resignação, de
modo a não aniquilar o organismo daquela que, desempenhando sublime
tarefa de mãe, lhe conferirá, carinhosamente, a nova personalidade.
14 Pela obtenção desse
resultado, é imprescindível que melhore interiormente. Se conseguirmos
que um raio de luz lhe penetre o íntimo, se possibilitarmos a eclosão
de algumas lágrimas que lhe desabafem o coração, dilatando-lhe o entendimento,
experimentará novas percepções visuais e, provavelmente, conseguirá
enxergar aquela que lhe foi desvelada genitora, na derradeira romagem
dos Círculos carnais. 15
Conseguida essa providência, creio será ele conduzido facilmente à indispensável
conformação e às medidas iniciais da recapitulação terrestre.
16 Estabeleceu-se natural intervalo
nas considerações de Zenóbia. Nenhum de nós ousou formular qualquer
interrogativa. Ela, porém, prosseguiu, humilde:
— Desde alguns dias, ouve-nos Domênico a voz, tal como o cego que não
consegue ver. 17
Não posso identificar-me perante ele, a fim de não lhe prejudicar o
trabalho de redenção, mas espero que, nesta noite, muito possamos fazer
em seu favor, com os valores da prece, aguardando, ainda, que os informes,
detalhados e instrutivos, a serem prestados pela clarividência de Luciana,
lhe possam elevar o tônus vibratório, e, ocorrendo isso, como espero
em Nosso Senhor, chamarei mentalmente a nossa irmã Ernestina, que lhe
foi mãe dedicada e compassiva, com o fim de o recolher e conduzir à
Crosta para as providências cabíveis. 18
Estou convencida de que, podendo ver a genitora, Domênico se transformará
em breves dias, preparando-se para a reencarnação próxima, com o valor
desejado.
5.
Indicando determinado ponto da paisagem, informou:
— Em vista do serviço a realizar, recomendei que dois auxiliares o trouxessem a local adequado, onde possamos orar livremente e auxiliá-lo com as nossas palavras, sem interferências estranhas.
2 Em seguida, rogou, comovidamente:
— E agora que iniciaremos o trabalho de tanta significação para minhalma, insisto
para que me perdoem o caráter pessoal da tarefa. 3
É que a oportunidade de nos reunirmos, cinco irmãos tão bem sintonizados,
não é bastante comum e, em vista da providência assinalada para amanhã,
sinto que não devo adiá-la, porquanto a desintegração de resíduos inferiores
pelo fogo etérico se faz acompanhar de muita renovação nestes sítios.
Poderíamos, desse modo, Ernestina, Domênico e eu perder sagrado ensejo,
de repetição problemática.
4 Calou-se, de súbito, a orientadora,
conservando-se na atitude de quem medita, em silêncio, de coração voltado
para o Todo-Poderoso. Decorridos alguns momentos, prosseguiu, acentuando:
— Estejam certos de que serão meus credores para sempre.
5 Tendo-se em conta a elevada
posição da diretora da Casa Transitória, n comovia-nos semelhante demonstração de humildade.
Constrangidos quase, diante de seu exemplo cristão, seguimo-la a pequena eminência
do solo, vagamente iluminada, onde dois companheiros velavam diante
de alguém estendido em decúbito dorsal. 6
A mentora benevolente dispensou ambos os auxiliares, recomendando-lhes
integrar a comissão de serviço, que se postara distante. Em seguida,
Zenóbia aproximou-se, maternalmente, e, deixando-nos surpresos, sentou-se
na erva rasteira, colocando a cabeça do infeliz no regaço carinhoso.
7 Aquele homem, trajando
burel esfarrapado e negro, exibia horripilante fácies. Não obstante
a sombra, viam-se-lhe os traços fisionômicos, que inspiravam compaixão.
Cabelos em desalinho, olhos fundos na caverna das órbitas, boca e nariz
tumefactos em horrível máscara de ódio e indiferença, dava ele a impressão
de celerado comum, que só a enfermidade conseguira imobilizar para a
prestação de contas com a justiça. 8
Não acusou emoção alguma ao contato daquele colo amoroso e nem se apercebeu
de nossa presença amiga. De olhar parado no espaço, num misto de desespero
e zombaria, semelhava-se a uma estátua de insensibilidade, vestida de
farrapos hediondos.
— Domênico! Domênico! — Chamou a Irmã Zenóbia, com ternura fraternal.
9 Deveria o interpelado experimentar
extrema dificuldade na audição, porque só depois de pronunciado o seu
nome, diversas vezes, foi que, como alguém que registrasse sons de muito
longe, exclamou irritadiço:
— Quem chama? Quem chama? Oh! poderes orgulhosos que desconheço, deixai-me
no inferno! Não atenderei a ninguém, não desejo o Céu reservado a prediletos…
pertenço aos demônios do abismo! Não me perturbem!… Odeio, odiarei para
sempre!…
— Quem te chama?! — Considerou a diretora, delicada e afetuosamente,
— somos nós que te desejamos o bem.
10 O infeliz, entretanto,
ao que observei, não se apercebeu da frase confortadora, porque continuou
praguejando, insensível:
— Malvados! Gozam no paraíso, enquanto sofremos dores atrozes! Hão de pagar-nos! Deram-me direitos no mundo, prometeram-me a paz celestial, conferiram-me privilégios sacerdotais e precipitaram-me nas trevas! Desalmados! Satã é mais benigno!…
11 Nossa venerável irmã, no
entanto, longe de irritar-se, falou pacientemente:
— Pediremos a Jesus te restitua, ainda que por alguns momentos, o dom de ouvir. Solicitando-nos acompanhar-lhe a rogativa, invocou:
12 — Senhor, dá
que possamos amparar teu infeliz tutelado! Tens o pão que extingue a
fome de justiça, a água eterna que sacia a sede de paz, o remédio que
cura, o bálsamo que alivia, o verbo que esclarece, o amor que santifica,
o recurso que salva, a luz que revela o bem, a providência que retifica,
o manto acolhedor que envolve a esperança em tua misericórdia!… 13
Mestre, tu, que fazes descer a bendita luz de teu reino aos que ainda
choram no vale das sombras, concede que o teu discípulo transviado possa
ouvir aqueles que o amam!… Pastor Divino, compadece-te da ovelha desgarrada
do aprisco de teu coração! Permite que aos seus ouvidos tenham acesso
os ecos suaves de teu infinito amor!… Concede-nos semelhante alegria,
não por méritos que não possuímos, mas por acréscimo de tua inesgotável
bondade!…
14 Oh! Mais uma vez, reconheci
que a prece é talvez o poder máximo conferido pelo Criador à criatura!
Em seguida à súplica, sensibilizado, observei que de todos nós se irradiavam forças brilhantes que alcançavam o tórax de Zenóbia, como a reforçar-lhe as energias, e de suas mãos carinhosas e beneméritas, então iluminadas de claridade doce e branda, emanavam raios diamantinos. A amorável amiga colocou-as sobre a fronte do desventurado; oferecendo-nos a certeza de que maravilhosas energias se haviam improvisado em benefício dele.
15 Chamou-o, novamente, grave
e terna.
O interpelado, agora, revelando capacidade auditiva diferente, fez imenso esforço por levantar-se, tateou em torno de si, e bradou:
— Quem está aqui?
16 — Somos nós — respondeu
Zenóbia, desvelada, — que trabalhamos em teu favor, a fim de que obtenhas
paz e luz.
— Quimeras! — Gritou o infortunado, acusando alguma transformação íntima,
— fui traído em meu ministério sacerdotal, negaram-me os direitos prometidos,
fui espezinhado e ferido! Que desejais de mim? Lastimar-me? Não necessito
da compaixão alheia. Aconselhar-me? Impossível. Estou cego e atormentado
no inferno por deliberado menosprezo das forças divinas que me desampararam
totalmente!
17 — Domênico, —
falou-lhe, então, Hipólito, a pedido da orientadora, que lhe fez silencioso
gesto de solicitação, nesse sentido, dando-nos a ideia de que não desejava
empregar a própria voz, na conversação que se iniciava, — não te rebeles
contra a determinação da Justiça Divina.
— Justiça? — Replicou ele, vibrando de emotividade, — e não tenho fome do direito?
não possuía eu prerrogativas no apostolado? não fui sacerdote fiel à
crença? Há muitos anos padeço nas trevas e ninguém se lembrou de fazer-me
justiça.
18 — Acalma-te!
— disse o nosso companheiro com voz firme, — a consciência é juiz de
cada um de nós. Possivelmente envergaste a batina fiel à crença, mas
desleal ao dever. 19
Temos conosco alguém com bastante poder de penetração nos escaninhos
de tua vida mental. Espera! Vamos orar em silêncio para que a bênção
do Senhor se faça sentir em teu coração e, em seguida, passaremos a
auxiliar-te para que releias, com a serenidade precisa, o livro de tuas
próprias ações, compreendendo a longa permanência nos despenhadeiros
fatais.
20 O infeliz emudeceu por momentos
e, tomados do forte desejo de auxílio, endereçamos fervorosa súplica
à Esfera Superior, rogando lenitivo para o sofredor e bastante luz para
a nossa irmã Luciana, a fim de que pudesse ver aquela consciência culpada
com a eficiência precisa.
André Luiz
[1] [Vide: Algumas referências ao uso de itens materiais no Mundo Invisível do Plano Espiritual, como edificações providas dos mais diversos objetos, aparelhos, veículos de transporte, etc.]
[2] [No original: “organizações preciosas e indispensáveis.”]
[3] [No original: “expedição Fabiano,”]
[4] [No original: “Casa Planetária,”]