1.
Após a oração silenciosa, Jerônimo fez Luciana compreender que atingíramos
o momento de ação.
2 A enfermeira clarividente,
evidenciando carinho fraterno, aproximou-se do infeliz e, depois de
fitar-lhe a fronte demoradamente, começou:
— Padre Domênico, vossa mente revela o passado distante e esse pretérito fala
muito alto diante de Deus e dos irmãos em humanidade! 3
Duvidais da Providência Divina, alegais que o vosso ministério não foi
devidamente remunerado com a salvação e imprecais contra o Pai de Misericórdia
Infinita… Vossa dor permanece repleta de blasfêmia e desespero, proclamais
que as Forças Celestes vos abandonaram ao tenebroso fundo do abismo!…
4 — E, porventura,
não é assim? — Gritou o desventurado, interrompendo-a, — compelido pelas
circunstâncias da vida humana a servir numa igreja que me enganou, negam-me
o direito de reclamar? O Evangelho não tem palavras de mel para o ato
de Judas. Deverei, por minha vez, louvar os que me traíram?
5 — Não, Domênico.
Vossos amigos não cogitam de criticar instituições. Desejam tão somente
amparar-vos. Não concordais no vosso desvio da conduta cristã? Teríeis,
de fato, agido como sacerdote fiel aos sagrados princípios esposados?
Esperaríeis um paraíso de vantagens imediatas, para cá dos túmulos,
tão só pelas insígnias exteriores que vos diferençaram dos outros homens?
não ponderastes a extensão das responsabilidades desassumidas?
6 — Oh! Que perguntas!
— Exclamou o interpelado, com indisfarçável azedume, — a organização
religiosa a que servi prometeu-me honras definitivas. Não era eu diretor
de grande coletividade social? não ministrava o Santíssimo Sacramento?
não fui recomendado ao Céu?…
7 Apesar de tais protestos,
o padre Domênico já acusava sinais de transformação íntima. Fizera-se-lhe
a voz mais triste, denunciando capitulação próxima. O fato de ele nos
sentir de mais perto, através da audição, facilitava-nos a atuação magnética
de auxílio.
8 Ao término de suas interrogações
reticenciosas, Luciana observou:
— As igrejas, meu amigo, são sempre elevadas e belas. Consubstanciam,
invariavelmente, o roteiro de nosso encontro divino com o Pai de Infinito
Amor. Ensinam a bondade universal, o perdão das faltas, a solidariedade
comum. 9 Mas, e os
nossos crimes, fraquezas e defecções? Em geral, todos nós, filiados
a correntes várias do pensamento religioso na Terra, exigimos que se
nos faça justiça, esquecidos, contudo, de que as noções de justiça envolvem
a existência da Lei. E como ludibriar a Lei, soberana e inalterável,
embora compassiva em suas manifestações? 10
Não concordais que é absurdo reclamar determinado procedimento dos outros,
esperando para o nosso “eu” tirânico e desequilibrado as compensações
somente devidas aos observadores das regras de purificação, das quais
não passamos de meros expositores no campo do ensinamento?
11 — Oh! Oh! E a
confissão? — Tornou Domênico, visivelmente impressionado com as palavras
ouvidas, — Monsenhor Pardíni ouviu-me, antes da morte, e absolveu-me…
12 — E confiastes em semelhante
medida? Vosso colega de sacerdócio poderia induzir-vos ao bom ânimo
e à coragem necessária ao serviço de reparação futura, mas não conseguiria
subtrair-vos à consciência os negros resíduos mentais dos atos praticados.
Vosso coração, padre, é um livro aberto aos nossos olhos. Envolvido
nas trevas, injuriais o nome de Deus e sua justiça; no entanto, a viva
descrição de vossas reminiscências são bastante expressivas…
13 Porque, Domênico se calasse
humilhado, sob a vigorosa influenciação magnética de Zenóbia, que o
mantinha nos braços, a clarividente prosseguiu:
— Vejo-vos a derradeira noite na existência carnal. Acompanho-vos em
noite fria, sob fortes rajadas do vento de céu sem lua. Desviastes o
passo de centro populoso e enveredais por estrada sombria de recanto
suburbano. 14 Não
somente vos observo a forma física. Sinto-vos igualmente o estado emocional.
Empolgado pela visão embriagante dos sentidos, penetrais um lar honesto,
cego por sentimento menos respeitoso para com alguém que vos ouviu,
inadvertidamente, as palavras finas de sedução e malícia. 15
Alijastes a batina escura, como quem despe incômoda capa. Envergais
agora, na intimidade de pequeno salão verde, perfumado costume de casimira
cinza-claro. Absorvida por vossas referências gentis, que apenas traduzem
propósitos de sensação, distantes de qualquer sentimento edificante,
certa mulher cede às vossas promessas. 16
Alguém, todavia, demora-se espreitando-vos. É um homem que se certifica
da ocorrência e afasta-se, alucinado, sem que lhe identificásseis a
presença. Trata-se do esposo ofendido, em dolorosa crise passional.
17 Distancia-se,
a caminho da pequena cidade próxima, tomado de dor selvagem. Penetra
grande empório de bebidas e adquire um litro de vinho antigo, por alto
preço. Afasta-se, angustiado, e, oculto à sombra de árvores acolhedoras,
adiciona ao conteúdo do frasco pequena porção de substância venenosa,
fulminante. 18 Em
seguida, espera-vos, de longe, acariciando a ideia do assassínio. Noite
alta, regressais ao presbitério; e o adversário, como quem volta de
ligeira viagem, saúda-vos, agradavelmente, com dissimuladas demonstrações
de estima e confiança. Paira o convite ao vinho reconfortante na madrugada
gélida e abris a porta da residência paroquial. Entrais calmo. 19
Na tepidez do interior doméstico, à frente de vasta mesa bem servida,
experimentais, honrado, o vinho velho misturado a veneno destruidor.
Não tivestes tempo para explicações. Ante vossos gemidos furiosos e
roucos, entre esgares de sofrimento, o assassino ri-se e pronuncia aos
vossos ouvidos feias palavras de maldição. 20
Quando a respiração se fez mais opressa, o homicida pediu socorro às
dependências da casa, depois de inutilizar a prova do crime, ante vossos
olhos assombrados. Precipitam-se, em vão, os servidores. 21
Velho eclesiástico aproxima-se, no intuito de ouvir-vos. Deve ser o
Monsenhor Pardíni, de vossas referências. Compreendendo-vos a dificuldade
para manter qualquer conversação, interroga o criminoso, que se declara
vosso amigo íntimo e esclarece, fingidamente, que regressava em vossa
companhia do próprio lar, onde havíeis entretido confortadora e longa
palestra, junto a ele e à esposa, demorando-se aí por insistência dos
dois. 22 O criminoso,
revelando piedade irônica, assegura que vos acompanhara à casa paroquial,
em vista da noite alta e que demandara o interior a vosso convite, para
reconfortar-se e que, em plena palestra amistosa, caístes fulminado
por síncope singular. 23
Debalde, intentais esclarecimento. Vossa destra levanta-se e o indicador
aponta o criminoso. Monsenhor Pardíni aproxima-se. O homicida toma-vos
a mão quase inerte e exclama: — “É preciso salvar o padre Domênico!
Minha esposa e eu não nos conformaríamos com semelhante perda!” 24
O eclesiástico que vos assiste permanece sob forte emoção. Supõe ser
o vingador o companheiro desvelado da vítima e inicia o serviço dos
moribundos. Endereçais supremo olhar de impassível desespero ao adversário
e compreendeis o próximo fim do corpo. Esfriam-se-vos os membros. Viscoso
suor vos corre, abundante, do rosto, e, num esforço tremendo, pronunciais,
de maneira quase ininteligível, uma frase: — “Eu, pecador, me… confesso…”
25 O religioso que
vos acompanha, porém, fecha-vos os lábios, no intuito de poupar-vos
e assevera: — “Domênico, descansa em paz! Ao sacerdote reto, não se
faz necessária a confissão, no alento derradeiro; ainda hoje, ministraste
a sagrada partícula! Pede a Deus por nós, no Céu!” Em seguida, concede-vos
plena absolvição de todos os pecados da existência humana, tratando-vos
a personalidade espiritual cheio de santa confiança. 26
A palavra do colega, porém, perturba-vos a consciência. No fundo, sabeis
que a morte vos surpreende em doloroso abismo. Em vão, tentais receber
a paz que Monsenhor Pardíni vos deseja; debalde procurais desviar o
olhar do envenenador que vos segue, mordaz. Vossas mãos tombam inertes.
O religioso amigo segura o crucifixo que não sentis. 27
Vossos olhos param na contemplação da última cena. Abre-se a porta da
alcova espaçosa e alguns servos ajoelham-se, em pranto. Não distante,
um sino toca fúnebre aviso. Amanhece. Entretanto, semi-inconsciente,
fustigado pela dor e pela desesperação, não vos vejo desfrutando as
claridades do novo dia que surge. 28
Cá fora, há círios acesos e atitudes respeitosas dos paroquianos que
se multiplicam, visitando-vos os despojos, após o laudo médico de bondoso
facultativo que, intimamente, vos crê suicida, fornecendo, porém, explicações
da “causa mortis”, como sendo fulminante ataque de angina, a fim de
evitar escândalos e perturbações no círculo sempre venerável da religião.
29 Há pessoas que
choram sinceramente e ouço comentários elogiosos ao vosso pastoreio
sacerdotal. Dentro de vós, todavia, prevalece imensa noite. Gritais
como o cego, ao abandono, no primeiro instante de cegueira inesperada.
Porém, ninguém vos ouve. 30
Relacionais o crime de que fostes vítima, rogais providências contra
o matador, mas os ouvidos humanos, agora, permanecem noutras dimensões.
Buscais o recurso de fugir, mas invencíveis grilhões vos ligam ao cadáver.
31 Ao crepúsculo, processa-se
o enterramento. Abre-se o templo suntuosamente ornamentado com flores
roxas. Cânticos tristes evolam-se do coro e toda a nave cheira a incenso.
Com grande pompa em todas as minudências das exéquias, vosso corpo desce
ao último abrigo. Entretanto, permaneceis ligado às vísceras decompostas…
32 A descrição da enfermeira
impressionava-me, profundamente. A entidade infeliz parecia tocada nas
mais recônditas fibras do ser. Após breve espaço, Luciana prosseguiu:
— Com o sepultamento do corpo, começaram para vossa alma infinitos
padecimentos. Permaneceis atormentado pela ansiedade, pela fome, pela
sede, pela dor… 33
Não posso precisar quanto tempo gastais em semelhante angústia. Sinto,
porém, que a entidade sofredora de certa mulher vos visita o sepulcro.
Estende-vos braços horrendos e, sob impressão de pavor, conseguistes
desatar o laço ainda restante que vos prende ao corpo disforme, fugindo
a praguejar. 34 Vosso
quadro consciencial modifica-se. Recordais o drama da infortunada que
vos apareceu, suplicante. Oh! Foi também vítima de vosso poder fascinador…
A leitura mental de vossas lembranças revela as particularidades da
experiência final da tresloucada. Pobre mulher crédula e confiante!
35 Vejo-a chegando
ao presbitério em tempestuosa noite. Experimentais a emoção inferior
do homem menos digno que sente o império absoluto sobre a presa… A pobrezinha,
todavia, chora e roga-vos auxílio. Pronuncia palavras de comover corações
de pedra, mostrando indefinível desalento. 36
Percebo o que diz… Confiou excessivamente em vossas promessas e cedeu
aos vossos caprichos de homem vulgar. A princípio, acreditou que não
adviriam desagradáveis consequências, certa da possibilidade de fugir
a quaisquer observações. 37
Sabíeis engodar-lhe a inexperiência em assuntos afetivos e proclamáveis
a inocência de semelhantes relações. Contudo, agora, anunciava-se um
filhinho, preocupando-lhe o coração. 38
Quem a socorreria? quem lhe restauraria a paz familiar? Não seria melhor
a legalização dos laços existentes? não deveriam esperar, honrados,
a dádiva de um filho abençoado por Deus? 39
Escutastes as rogativas sem abalo moral. Com a frieza dos homens de
fraseologia brilhante, invocastes o dever sacerdotal como justificativa
da impossibilidade, comentastes as convenções humanas e, por fim, propusestes
a conciliação do problema, com um casamento apressado e indigno entre
a vítima e o último de vossos servos. 40
A jovem soluça convulsivamente, afirmando justa repulsa. Continuais
na argumentação prudente e preciosa, mas, com evidentes sinais de loucura,
a infeliz abandona-vos, precipitada, ganhando a via pública, sob a chuva
torrencial… 41 Acompanho-a.
Regressa ao lar paterno, fundamente desequilibrada pelo vosso golpe
impiedoso. Ah! Que horror! Vale-se a desventurada da noite solitária
e bulhenta e ingere grande dose de formicida, tentando o ato final da
tragédia interior. Ninguém lhe escuta os rugidos de sofrimento selvagem,
porque os trovões ribombam no céu. 42
Ao amanhecer, todavia, um pai aflito corre ao vosso retiro repousante
e coloca-vos ao corrente do fato. Morrera-lhe a filha, misteriosamente.
Como aclarar a situação? não procedia com acerto, buscando o conselho
sacerdotal? Recebeis a notícia disfarçando dificilmente a emoção, repetindo
textos evangélicos para consolar o amigo confiante. 43
Preocupado, ponde-vos a caminho da residência enlutada. No entanto,
sinto-vos perfeitamente o estado mental. Não vos aflige a perda de alguém
que vos poderia estorvar a tranquilidade, preocupa-vos a descoberta
de algum recurso, aparentemente digno, que vos conserve a cavaleiro
da situação imprevista. 44
Pronunciando palavras confortadoras, montastes guarda ao cadáver e chamastes
médico amigo. Ei-lo que chega! Oh! É o mesmo que vos examinou, no último
dia, acreditando-vos suicida! Depois de longa conversação confidencial
convosco, o clínico assevera que houve morte natural, com a ruptura
de vasos do coração. 45
Recuperais o bem-estar que transparece, de novo, em vossa expressão
fisionômica. Vossas referências de consolação tornam-se mais vivas e
inteligentes e seguis os funerais, calmo e contrito, embora os olhos
esgazeados e terríveis da suicida vos contemplem do féretro, enquanto
outros vultos negros, do Plano invisível aos homens comuns, vos acompanham
no préstito! São almas vingadoras que vos seguem, tenazes!…
46 Interrompeu-se Luciana,
visivelmente comovida, e, dando-nos a entender que a paisagem mental
de Domênico se modificara ao influxo de outras lembranças que a narração
evocava, transferiu o curso das observações no tempo.
47 — Ah! Sim, vejo
bem, — continuou, alarmada, — destaca-se infeliz entidade que, certamente,
vos consagrou funda afeição. Contempla-vos com desespero e enternecimento
simultâneos. Parece-se extremamente convosco. Agora, compreendo. Não
foi apenas vosso amigo, foi vosso pai. Reclama, insistente, determinada
escritura que não apresentastes. 48
Que vejo? Em torno dele há imagens vivas de recordações angustiosas.
Contemplo-lhe a derradeira noite ao vosso lado. Fixa-vos, carinhoso
e confiante. A dispneia concede-lhe trégua mais longa e o moribundo
entrega-vos grande testamento, em que relaciona suas últimas vontades.
49 Fala-vos, afetuoso
e humilde, de seu passado oculto. Não foi simplesmente o genitor feliz
dum sacerdote e de filhos outros que lhe honram o nome, declara. Foi
moço arrojado, a comprometer-se em aventuras diferentes. Possuía alguns
filhos, a distância do lar, e não desejava partir sem legitimá-los devidamente.
Além disso, pretendia garantir-lhes futuro próspero. 50
Escutais com indisfarçável interesse. Em seguida, a pedido do genitor,
ledes a discriminação de pequenos legados a pupilos dele. O agonizante
acompanha-vos, atento, com o olhar. Tendes agora belas palavras nos
lábios, justificando-lhe os erros do passado. Sabeis consolar com primores
verbalísticos que lhe provocam admiração. 51
Por fim, prometeis ao coração paterno exato cumprimento de seus derradeiros
desígnios. Edificado, confessa-vos ele os deslizes que omitira, declara-vos
seu arrependimento “in extremis” e diz de sua esperança no Céu, onde
Jesus lhe receberá os sinceros desejos de reparação. 52
Palavras entrecortadas por suprema aflição, reitera-vos a súplica de
amparo constante a certa mulher, cercada de filhinhos, que esperam dele
o sustento necessário… 53
Ajudado por vós, abraça-se ao crucifixo, que contempla de olhos nevoados.
Recitais longa e comovente oração, acariciando-lhe a cabeça grisalha.
Mais alguns momentos, esforçando-se por ver-vos pela última vez, o moribundo
cerra os olhos no ato final do corpo. Estás sozinho com o cadáver. Conservais
o polegar e o indicador da mão direita sobre os olhos do morto, a fim
de imprimir-lhe boa postura fisionômica. 54
Antes, porém, de qualquer comunicado ao interior doméstico, sepultais
o documento em móvel pesado, com intenções francamente hostis aos retos
propósitos do desencarnado. Desde esse instante, parece-me que ele vos
seguiu, sempre de perto, reclamando, reclamando… Permanece, angustiado,
na tela mental de vossas lembranças vivas…
55 A clarividente para, de
novo, fixando particularidades diversas, enquanto o infeliz Domênico
entremostra insopitável comoção.
— Oh! Agora, — prosseguiu Luciana, dando conta da tarefa que lhe fora
cometida, — é outro perseguidor severo! Salienta-se à minha visão. 56
É um velho eclesiástico, que deixou o aparelho físico endereçando-vos
intensas vibrações de ódio. Vossas reminiscências esclarecem o fato.
Desejáveis, a qualquer preço, o curato que lhe pertencia. Variados interesses
pessoais prendiam-vos o pensamento à pequena cidade sob a orientação
do antigo pároco. 57
Intentais a realização do desejo por métodos suasórios. Em longo diálogo,
propondes a compra da paróquia, em caráter particular. Alegais dispor
de bastante influência política para efetuar a transferência, sem abalos,
remunerando-lhe a adesão incondicional ao projeto. 58
O velhinho, porém, recusa e justifica-se. Permanece junto àquele rebanho,
desde muitos anos. Além disso, está velho, doente. Servira à Igreja
com as melhores forças de seus bons tempos de saúde física e espera
a possibilidade de morrer ali, respirando o ar amigo do seu pequeno
pomar. 59 Reconhece
vossa superioridade na questão, considerando-vos as relações prestigiosas
no seio do clero e da administração pública e assegura que, se outras
fossem as condições, cederia o lugar sem qualquer remuneração ou relutância.
Os médicos, entretanto, recomendam-lhe a residência no litoral, para
que a atmosfera marinha lhe facilite o esforço do coração. 60
A rogativa comoveria a qualquer. Ouvistes, concordastes e apresentais
despedidas arquitetando novo plano. Dali mesmo, sem qualquer escrúpulo,
partis em visita pessoal ao bispo da diocese, a quem expondes, com fingida
humildade, a solicitação que vos preocupa. Enganado, o dignitário da
Igreja ouve, atenciosamente, e aceita o que propondes, recomendando,
porém, prévia audiência de seus assessores diretos. 61
Não tendes dúvidas ou ponderações de qualquer natureza. Gratificando
companheiros altamente colocados, conseguistes que o antigo sacerdote
fosse removido, compulsoriamente, para longínqua paróquia de montanha,
onde o ancião morreu, sem delongas, odiando-vos de morte. Intoxicado
pela cólera e pelos reiterados desejos de vingança, está cego às manifestações
da espiritualidade superior, cercando-vos com ira implacável…
62 Novo intervalo da clarividente.
Luciana, porém, recomeça a exposição, mais alarmada:
— Agora, surge determinada mulher. Parece-me que desencarnou depois
de melindrosa operação nos olhos. Sim, a vossa tela de reminiscências
fala bem alto. Foi vítima do vosso poder fascinante de homem dominador.
63 Ei-la ao vosso
lado no último encontro, ainda na Esfera carnal. Acabastes a refeição
lauta da manhã, quando alguém bate à porta paroquial. Trata-se de pobre
mulher, envelhecida prematuramente e quase cega, conduzida por anêmico
menino de nove a dez anos, que vos suplica auxílio. 64
Ante a frieza de vossa recepção, a infortunada, em palavras sentidas,
invoca o passado de leviandades e pergunta se esquecestes o filho que
lhe colocastes nos braços. Chora, gesticula e explica-se. 65
Trabalhara sinceramente pela própria reabilitação, mas, em toda parte,
acusavam-na de prostituição e ociosidade. Lutara heroicamente por manter
o filhinho, à custa do serviço honesto, mas adoecera, sem qualquer proteção,
e ali estava quase cega, implorando socorro… 66
Se pudesse, pouparia ao filho ainda criança a humilhação de conhecer
o pai desalmado; entretanto, o pequenino abeirava-se da morte. Surpreendera-o
a tuberculose devoradora e suplicava-lhe auxílio financeiro para o tratamento
indispensável. 67
A criança contempla-vos, triste e confiada. Ouvis, indiferente, e
ensaiastes resposta estranha. Ao vosso toque particular de campainha,
determinado servidor aparece conduzindo cães bravos que ameaçam os pobres
pedintes, forçando-os a fugir, espavoridos. 68
A criança, no último degrau da anemia, morre sem recursos e a mãe infeliz
desencarna em pavilhão da indigência, com o sinistro desejo de vingar-se
de vós, de qualquer modo.
69 Interrompera-se Luciana,
novamente, como para fixar minúcias apenas visíveis ao seu olhar. De
súbito, exclama:
— Oh! Que horror! Vejo mais!… Diferente mulher de olheiras fundas e negras vestes…
70 Não terminou a observação,
todavia.
Nesse instante, o desventurado proferiu um grito terrível, desfez-se em lágrimas e exclamou, alucinado de sofrimento moral:
— Basta! Basta!…
2.
Soluços atrozes lhe rebentaram do peito opresso, sem solução de continuidade.
Zenóbia, que lhe mantinha a cabeça no regaço amoroso, tranquilizou-nos
em tom discreto:
— Domênico melhora, graças ao Nosso Divino Médico. Para o Espírito culpado e sofredor, as lágrimas são também uma chuva benéfica que refrigera o coração.
2 Logo após, permaneceu silenciosa,
enquanto a seguíamos, enternecidos, de mente voltada para a prece.
Depois da longa crise de pranto de Domênico, a diretora da Casa Transitória solicitou ao padre Hipólito que semeasse novas ideias no terreno consciencial arado pela dor, notificando-nos que tomaria alguns minutos para convocar, mentalmente, a ex-genitora do antigo pároco desencarnado, para que o mísero fosse reconduzido à Esfera da Crosta, no processo inicial da reencarnação futura.
3 A orientadora entrou em
funda meditação, ao passo que Hipólito ergueu a voz, dirigindo-se ao
mendigo de luz:
— Irmão Domênico, o Senhor Misericordioso ouviu-nos a rogativa. Desejas, efetivamente, a redenção?
4 O interpelado, ao que deduzi,
despreocupou-se inteiramente da pergunta e, mantendo forte impressão,
relativamente às afirmações que ouvira, indagou a seu turno:
— Ah! Existe então a Justiça Divina, anotando-nos as faltas? Há cadastros tão minuciosos para os mais secretos feitos do Espírito?
5 — Trazemos na própria
consciência o arquivo indelével dos nossos erros, — comentou Hipólito,
com inflexão de piedade, — como os justos são portadores das notas íntimas
que os glorificam diante do Pai Altíssimo. Cerra, para sempre, meu amigo,
a porta do “ego inferior”! Cala a vaidade, o orgulho, a impenitência!
Não maldigas. 6 A igreja
que nos reunia, no Círculo carnal, é santa em seus fundamentos. Nós
é que fomos maus servos, desviando-lhe os princípios básicos para a
satisfação de instintos dominadores. Procurávamos o reino transitório
do poder temporal, através de puras manifestações do culto externo aliado
à política corruptora, olvidando, deliberadamente, o Reino de Deus e
Sua Justiça. 7 Poderemos
culpar, porventura, as mães devotadas pelos crimes voluntários dos filhos?
A igreja universal de Jesus-Cristo, que congrega todos os seus apóstolos,
servidores, discípulos e aprendizes, é mãe amorosa e fiel.
8 De novo, soluçante, o Espírito
infortunado revelava-se ferido nas fibras mais íntimas, provocando-nos
comoção e lágrimas.
— Não condenes, — prosseguiu o companheiro. — Quantos antigos superiores
nossos expiam nas regiões tenebrosas! Quantos se enganaram, honrando
no mundo a si mesmos, esquecendo o Senhor que “passou fazendo o bem”!
9 Muitos dos dignitários
orgulhosos que nos dirigiam as atividades, com o cálculo a presidir-lhes
as deliberações, baixaram ao sepulcro, em solenes exéquias, através
de fanfarras e esplendores, para comparecerem aqui em dolorosas necessidades
do coração, quais miseráveis mendigos! 10
Muitos aguardam dias melhores, no fundo de viscosos pântanos do ódio
destruidor; outros imploram socorro, ansiosos de paz e renovação. Por
que motivo não nos restaurarmos também, a fim de movimentarmos o necessário
serviço do amor que redime sempre? 11
Levantemo-nos, meu irmão, para sermos úteis aos companheiros de outro
tempo, reconduzindo-os ao porto de salvação! Recordemos Aquele, em cujo
nome augusto juramos fidelidade ao Céu, na Terra. Dói-te a penitência,
fere-te a humilhação? E Ele? Porventura não percorreu a Via Dolorosa,
como vulgar malfeitor? Não aceitou a cruz que o flagelaria até à morte?
— Sim, — concordou o interlocutor, tristemente, — tudo isso é verdade!…
12 Significativo gesto de
Zenóbia compeliu o padre Hipólito a suspender as considerações.
Dando-nos a certeza de que respondia ao chamamento silencioso da orientadora,
alguém compareceu perante a nossa reduzida assembleia. Era uma velhinha
simpática, que nos conquistou, de pronto, pela delicadeza e generosidade
irradiantes. Abraçou a irmã Zenóbia, como se o fizesse a uma filha muito
amada e cumprimentou-nos, cortês e reconhecida. Dispensávamos qualquer
apresentação. Tratava-se de Ernestina, a dedicada mãe. Ajoelhou-se junto
ao filho desventurado e, de mãos postas, rogou a proteção dos Céus.
13 Fosse pela renovação profunda
daquela hora que lhe modificara o padrão vibratório, fosse porque as
forças invisíveis de ordem superior manipulavam as nossas energias conjuntas
em benefício do infeliz, Domênico, que era cego perante nós outros,
conseguiu enxergar a recém-chegada.
Comoventes gritos alcançaram-nos o íntimo.
— Mamãe! Mamãe!…
14 Aquela criatura que se mostrara
tão rígida e indiferente, o eclesiástico que zombara de tantos corações
na Terra, segundo retrospecção do pretérito que Luciana levara a efeito,
igualmente invocava o nome de mãe, como se fora chorosa criança desviada
do lar. Abriu, ansioso, os braços, procurando-lhe o seio amigo, e Zenóbia,
com carinhoso cuidado, ajudou-o a refugiar-se no colo materno. Ernestina
apertou-o, então, de encontro ao peito e pareceu-me que o infortunado
sentia o contato maternal, como se houvera alcançado o repouso supremo.
15 — Mãe, minha
mãe! — Gritava, colando a cabeça ao tórax inclinado para a frente, a
fim de melhor fazer-se sentir, — ajuda-me! Perdoa-me! Perdoa-me! — E
recordando, talvez, o trabalho da clarividente que lhe alterara o ser,
acrescentou:
— A justiça divina descobriu-me; sou um réprobo sem perdão, um celerado infernal. Hediondo passado está vivo, dentro de mim. Oh! Mamãe, és capaz de suportar-me, quando todos me detestam?
16 Ernestina aconchegou-o mais
perto do coração e falou, comovida:
— Eu não sei, meu filho, se foste criminoso; sei que te amo com toda
a alma, sei que sentia profundas saudades de tua presença carinhosa,
no desejo enorme de sentir-te, de novo, junto de mim! Que haveria de
mais belo para meu coração que o doce enternecimento desta hora? 17
Deixa que nasçam em ti pensamentos de júbilo e reconhecimento ao Pai
de Inesgotável bondade que nos reúne compassivamente. Medita um instante,
Domênico, sobre a grandeza divina e certifica-te de que ninguém permanece
ao abandono. 18 O
pensamento de gratidão a Deus, dentro das sombras do sofrimento, é como
raio brilhante de aurora, preludiando a vitória plena do Sol sobre as
trevas densas da noite. 19
Qual de nós não terá sido defrontado pela tormenta da ignorância? Todos
tivemos pedras e espinhos na longa estrada da redenção. Muitas vezes
caímos; entretanto, a mão invisível do Senhor arrebatou-nos, misericordiosa,
do mergulho na lama ou das furnas do abismo! Tem coragem e levanta-te
intimamente para o novo dia.
20 O mísero contemplava-a,
enlevado, como se tivesse sob os olhos a mais formosa visão de sua vida.
— Sou, porém, um malfeitor, réu de crimes sem perdão! — Falou tristemente.
21 — Não, meu filho,
— alongou-se a palavra materna, — foste enfermo, como nós outros. Escutaste
as sugestões do mal e cultivaste úlceras dolorosas. Desequilibraste
o coração, resvalando no despenhadeiro. Não te esqueças, porém, de que
Jesus é o Divino Médico. Aceita a tua necessidade de medicação e dirige-te
a Ele na súplica sincera de quem deseja a cura real para a vida eterna.
22 Nós outros, os
que intentamos auxiliar-te, não chegamos ainda à posição dos que tudo
podem ou que muito sabem. Somos trabalhadores interessados em nossa
própria iluminação pelo trabalho incessante, na execução da vontade
do Altíssimo. Desenvolvemos nossas faculdades superiores, sem abalos
e sem milagres, adquirindo valores novos, ao preço de nosso próprio
esforço na paciente edificação de nosso Espírito para Deus. 23
Acreditarias, porventura, que tua mãe estivesse no paraíso, em gozo
beatífico, inteiramente esquecida de seus imensos débitos para com todos
aqueles que lhe partilharam o afeto e a luta, nos serviços salvadores
da carne terrestre? Admitirias, acaso, que apenas o carinho materno
me garantiria posição definitiva no campo celestial? 24
Não, Domênico. Horizontes diversos abrem-se para nossas almas, no Universo
Infinito. Nossas existências são dias abençoados de trabalho, em que,
ao sol do dever nobilitante e às chuvas da experiência construtiva,
desabrocham e crescem nossas faculdades divinas para a Eternidade. 25
É verdade que os erros deliberados turvam-nos a consciência, compelindo-nos
a gastar valiosas possibilidades de tempo na luta reparadora, mas o
Senhor jamais nega recursos de retificação aos que lhe rogam socorro,
no propósito fiel de reconquistar a harmonia divina. Após a travessia
do túmulo, continuamos trabalhando e edificando, iluminando e redimindo…
26 Não desejarias,
portanto, aderir ao nosso serviço de elevação? Não pretenderás fugir
ao Círculo de sombras, a fim de ganhar os caminhos bem-aventurados da
luz?
27 O olhar do infeliz adquirira
diferente expressão. A palavra incisiva e branda de Ernestina transformava-lhe
a mente, pouco a pouco. Reconhecendo o efeito de suas advertências salutares,
prosseguiu a devotada benfeitora:
28 — Não seja a
recordação angustiosa dos tempos idos obstáculo insuperável à realização
de que necessitas presentemente. Todos aqueles a quem feriste não desapareceram
para sempre. Prosseguem tão vivos, quanto nós, e poderás, na condição
de servo humilde, buscar os credores de outra época, atendendo, em teu
próprio benefício, a exigência do resgate necessário. 29
O êxito, entretanto, pede um coração ardente na fé viva e um cérebro
desassombrado, pronto a compreender o bem e a praticá-lo. Sem a esperança
arrojada e sem espírito de serviço, dificilmente saldarás o débito pesado
que te prende a alma a Esferas grosseiras e inferiores. 30
A fim de conquistares semelhantes valores, considera a Eternidade e
o infinito amor de Deus. Não te encarceres em ponderações de natureza
humana, vendo sacrifícios onde apenas palpitam sublimes oportunidades
de ventura e redenção. 31
Se a consciência te acusa, roga a Jesus orvalhe o teu íntimo de santificada
esperança! Basta uma gota desse rocio divino para que o deserto da alma
floresça e frutifique em bênçãos de paz e felicidade para sempre. 32
Não desanimes, Domênico! Deus permite que a alvorada siga a noite escura.
Porque não confiarmos, de maneira absoluta, no Supremo Poder? Somos
nada, meu filhinho, mas o Pai Misericordioso tudo pode.
3.
A presença reconhecida de sua mãe completara-lhe a modificação benéfica.
2 O sofredor, como
o náufrago desesperado atingindo porto amigo e reconfortante, esquecera
as palavras odientas e blasfemas de minutos antes e, conchegando-se
ao coração materno, rogava:
3 — Minha mãe, o infortúnio
colheu-me o Espírito desventurado!… Não me abandones! Não me abandones!…
— Nunca, — disse a nobre matrona desencarnada, sufocando as próprias lágrimas,
— peço-te, porém, meu filho, que jamais abandones a Jesus, nosso Mestre
e Senhor!…
— Sim, — retrucou Domênico em pranto forte, — Jesus, nosso Mestre,
nosso Senhor! — Fizeram-se longos instantes de silêncio, entre nós.
4 De olhos lacrimosos, perdidos
agora no espaço, a evocar, talvez, paisagens de muito longe, o ex-sacerdote
comentou:
— Oh! Mamãe, que saudade de minhas preces em criança!… Nesse tempo
que vai tão longe, ensinavas-me a ver o Criador do Universo em todas
as dádivas da Natureza. Meu coração banhava-se, feliz, na fonte cristalina
da confiança e o amor da simplicidade habitava minhalma venturosa!…
5 Depois, no torvelinho
do mundo, perverti-me ao contato dos homens ambiciosos e maus. Ao invés
da piedade, cultivei a indiferença; em lugar do amor fraterno, legítimo
e ativo, coloquei o ódio inexorável aos semelhantes; ocultei o coração
e exibi a máscara, fugi às verdades de Deus e fantasiei-me de humanas
ilusões! 6 Por que
fraquezas singulares pode o homem operar semelhante permuta? Porque
menosprezar tesouros de vida eterna e mergulhar-se em tão sinistros
enganos? 7 Oh! Tu que
conservaste a doce confiança do primeiro dia; que nunca sorveste o venenoso
absinto que me embebedou na Terra, faze-me esquecer, por piedade, o
homem cruel que eu fui!… Anseio retornar à serenidade ingênua do berço;
angustia-me a sede de tornar à verdadeira fé! Ajuda-me a dobrar os joelhos,
novamente, e a rezar de mãos postas para que o Pai do Céu me faça esperar
sem aflição e esquecer o mal sem olvidar o bem!…
8 Ernestina, extremamente
emocionada, auxiliou-o a prosternar-se, amparando-o, porém, com inexcedível
ternura.
Em seguida, copiando os gestos das mãezinhas cuidadosas e desveladas segurando criança tenra, uniu-lhe as mãos em súplica e, chorando para dentro de si mesma, disse-lhe:
— Repete, filho, as minhas palavras.
9 Numa cena comovedora, que
jamais me fugirá da recordação, a dedicada genitora orou pausadamente,
acompanhando-a Domênico, sentença por sentença:
— Senhor Jesus!
— Senhor Jesus!
— Eis-me aqui,
— Eis-me aqui,
— Doente e cansado aos teus pés,
— Doente e cansado aos teus pés,
10 — Compadece-te
de mim, bem-amado pastor, de mim, ovelha desgarrada de teu rebanho…
Ofuscou-me o brilho falso da vaidade humana, a ilusão terrestre embotou-me
o raciocínio, o egoísmo enrijeceu-me o coração e caí no precipício da
ignorância, como leproso do sentimento. 11
Tenho chorado e sofrido amargamente, Senhor, minha defecção espiritual.
Mas eu sei que és o Divino Médico, dedicado aos infelizes e transviados
do caminho… Por piedade, livra-me da prisão de mim mesmo, liberta-me
do mal resultante de minhas próprias ações, faze que meus olhos se abram
à luz divina! Nutre-me com a tua verdade soberana, ampara-me a esperança
de regeneração! 12 Senhor,
dá-me forças para ressarcir todas as dívidas, curar todas as chagas,
corrigir todos os erros que se acham vivos dentro de mim… Perdoa-me,
concedendo-me recursos para o resgate, não me deixes entregue aos resquícios
das paixões que eu mesmo criei impensadamente, favorecendo-me com as
tuas repreensões silenciosas nas situações disciplinares e, sobretudo,
Benfeitor Sublime, retribui aos teus servos que me auxiliam, nesta hora,
conferindo-lhes renovadas bênçãos de energia e paz, a fim de que auxiliem
a outros corações tão extenuados e caídos quanto o meu! Jesus, confiaremos
em tua compaixão para sempre! Assim seja!
13 Domênico repetira a oração,
frase por frase, à maneira de menino dócil e interessado em aprender a lição.
Ao que deduzimos, a rogativa fizera-lhe profundo bem. Abraçou-se à Ernestina,
mais calmo, e, enquanto a diretora da Casa Transitória lhe seguia os
mínimos gestos, sem que ele lhe percebesse a presença, perguntou, de
improviso:
— Minha mãe, já que a tua ternura veio ao meu encontro no Círculo das trevas,
dize-me: onde está Zenóbia? Ter-me-ia abandonado para sempre?
14 Fundamente surpreendido,
notei que a indagação era feita com inflexão dorida de saudade e desencanto.
— Certamente, meu filho, — apressou-se Ernestina em responder, — nossa amiga
acompanha-te de Esfera superior, implorando a Jesus te abençoe os propósitos
de redenção.
15 — Oh! — Tornou
ele, triste, — se a existência humana nos houvesse unido, outro teria
sido meu destino. Ela, porém, desposou outro homem quando era maior
minha confiança no futuro, compelindo-me ao celibato sacerdotal, que
se fez seguir de tão deploráveis consequências para mim. Se houvéssemos
organizado o ninho doméstico, não me faltaria a confiança em Deus, teria
sido talvez pai generoso e meus filhos ser-me-iam sagrada coroa de responsabilidade
e alegria. 16 Zenóbia,
minha mãe, era a lente milagrosa através da qual eu sabia ver o mundo
noutro prisma. Em companhia dela, teria adquirido o dom de ver as oportunidades
divinas que me cercaram o coração. Todavia, quando a sorte ma arrebatou,
esvaiu-se-me todo o sonho de construção equilibrada na Terra… 17
Dominado pela dor de perdê-la, acreditei que a Religião me ofereceria
refúgio inexpugnável contra as tentações. Que terrível engano! Sitiado
num mundo de convenções que me constringia o espírito e distanciado
da sublime influência da única mulher que, a meu ver, me poderia salvar,
despenhei-me, de abismo em abismo, convertendo-me num demônio insaciado,
a destruir e perverter… Teria ela compreendido, algum dia, como fui
infeliz? Apiedar-se-ia de minha dor cheia de miséria e ruínas?
18 Ernestina afagou-lhe a cabeça,
maternalmente, e exclamou:
— Cala-te, meu filho! Não te presumas o único sacrificado. Se houvesses aceitado
a Vontade Divina, o presente ser-nos-ia menos doloroso. Não te estribes
em fatos humanos, naturais e necessários, para justificar os desvarios
que te precipitaram nas sombras fatais! Zenóbia foi sempre verdadeiro
anjo entre nós. Não comentes com mágoa acontecimentos que se foram,
que lhe custaram uma existência inteira de renúncia santificante pelos
pais, pelo esposo, pelos filhos e por nós!
19 — Entretanto,
— atalhou ele, — tínhamos sublime compromisso, desde a infância, e a
nossa primeira mocidade foi um paraíso de promessas mútuas…
O carinho materno, todavia, não o deixou terminar. Colocando-lhe o indicador sobre os lábios, num gesto compassivo de mãe, Ernestina acentuou:
20 — Ouve, Domênico!
Quem teria sido a maior vítima? O homem jovem e forte, que se recolheu
livremente à organização religiosa a facultar-lhe mil processos diferentes
na prática do bem, ou a pobre menina forçada pelas circunstâncias da
luta terrestre a desposar um viúvo, rodeado de filhinhos aos quais deveria
dedicar-se na categoria de mãe? 21
Buscaste voluntariamente a ordenação sacerdotal, enquanto Zenóbia, constrangida
por situações angustiosas, aceitou um caminho de abnegação contrário
aos sonhos de sua juventude. Absolutamente entregue às tuas próprias
criações individualistas, não foste fiel aos princípios esposados, ao
passo que Zenóbia perseverou no sacrifício e na fé viva até ao fim,
embora esmagada ao peso das diárias humilhações ao seu ideal de mulher.
22 Erraste para satisfazer
a ti mesmo, incapaz de acalmar as paixões inferiores que te ardiam no
peito, enquanto nossa venerável amiga aceitava, humilde, as circunstâncias
que lhe atormentaram o ser, anos seguidos, em benefício de todos nós.
Pondera, pois, Domênico! Qual teria sido a verdadeira vítima? Poderemos
comparar a abnegação com a insensatez?
23 Percebia-se que a elevada
orientadora se ligava aos dois, através dos fios de doloroso romance
que não nos era dado conhecer. Domênico escutou compungidamente as observações,
calou-se longo tempo, internado talvez no plano de longínquas recordações
e concluiu, tristemente:
— É verdade!…
— Compete-nos, agora, — falou Ernestina, com brandura, — avançar para
alcançá-la.
24 Nesse instante, embora
discretamente, Zenóbia começou a chorar, contemplando-lhe o rosto, debruçada
sobre ele e, certo, em obediência ao vigoroso desejo da diretora da
Casa Transitória, Domênico sentiu que as gotas quentes de pranto lhe
caíam na face melancólica. Fixou os olhos maternais com expressão indagadora,
e, reconhecendo que semelhantes lágrimas não tinham aí sua origem, perguntou,
angustiado:
— Oh! Minha mãe, quem estará chorando sobre mim?
25 A benfeitora carinhosa,
cujo olhar descortinava todas as particularidades da cena comovente,
respondeu sob forte emoção:
— Os anjos choram de júbilo nas regiões celestes, quando um coração sofredor se levanta do abismo…
O ex-sacerdote meditou longos momentos, dando-nos a impressão de enorme
alívio.
26 Compreendendo a oportunidade
feliz, Ernestina convidou-o:
— Vamos, filho. Movido pela Misericórdia Divina, o relógio do tempo fez soar
para teu Espírito a hora abençoada da redenção. A porta do resgate abre-se
de novo à tua alma oprimida. Que o Céu nos abençoe!
— Irei contigo, mãe, aonde quiseres, — respondeu o infortunado, sem
amargura.
27 A venturosa mãe endereçou-nos
expressivo olhar de agradecimento, enlaçou-o nos braços, como se o fizesse
a uma criança enferma, e partiu, suportando o valioso fardo, em direção
à Crosta Planetária, a desafiar, jubilosa e feliz, as sombras densas…
28 Novamente a sós, reparei
que a Irmã Zenóbia se mantinha transfigurada, ditosa. Enxugou as lágrimas,
revelando nos olhos alegrias desconhecidas. Estendeu-nos a destra, em
sinal de gratidão e contentamento. E contemplando, talvez, a paisagem
do futuro, demorou-se em meditação, na qual, certamente, enviava seu
hino interior de reconhecimento ao Altíssimo.
29 Em seguida, fixou-nos, tranquila,
e falou:
— Irmãos, que o Senhor lhes recompense a colaboração fraternal, repartindo com todos a felicidade que me atingiu. Graças a Ele e aos dedicados amigos, acabo de vencer uma grande batalha na guerra do amor contra o ódio, da luz contra as trevas e do bem contra o mal, em que me encontro empenhada, desde muitos anos.
30 Logo após, atendendo ao
plano de trabalho organizado pela sábia orientadora, reuníamo-nos aos
diversos auxiliares que se detinham a distância, a fim de nos comunicarmos
com os filhos da ignorância e do infortúnio, temporários habitantes
do abismo.
André Luiz