1.
Quando Aniceto retirou a destra da minha fronte, perdi a possibilidade
de prosseguir nas observações do infinitesimal. 2
Minha visão abrangia detalhes muito importantes ao interesse comum;
entretanto, estava longe daquele poder de apreensão que me transmitira
o mentor amigo, ao contato do seu elevado potencial magnético.
3 Centralizando minhas energias
visuais, analisava ainda o sistema ósseo, o sangue, os tecidos, os humores,
mas aquelas batalhas microscópicas haviam desaparecido como por encanto.
De qualquer modo, porém, minha surpresa era enorme, porque agora identificava,
em mim mesmo, a potencialidade do raio X.
4 Aniceto, depois de proporcionar
a Vicente o mesmo estudo, movimentava providências novas.
2.
No aposento, conservava-se determinado número de parentes aflitos. Um
médico encarnado examinava o moribundo, com atenção.
2 Foi aí que as duas entidades
que se mantinham no quarto, e que apenas nos haviam dispensado a usual
saudação, se aproximaram do nosso instrutor, solicitando-lhe uma cooperação
mais enérgica.
— Por favor, nobre amigo, — disse a irmã que havia sido genitora do
moribundo, — ajude-nos a retirar meu pobre filho do corpo esgotado.
3 Há muitas horas,
estamos à espera de alguém que nos possa auxiliar neste transe. Tenho
procurado confortá-lo, mas em vão! — Acentuou a nobre senhora em tom
lastimoso, — ele continua num estado de incompreensão dolorosa e terrível.
Está absolutamente preso às sensações de sofrimento físico, como esteve
ligado, no curso da existência, às satisfações do corpo.
4 Aniceto concordou, acrescentando:
— Notam-se, de fato, grandes lacunas na expressão mental do moribundo. Vê-se que atravessou a vida humana obedecendo mais ao instinto que à razão. Observam-se-lhe no mundo celular vastos complexos de indisciplina. Poderemos, contudo, ajudá-lo a desvencilhar-se dos laços mais fortes, no que se refere ao Círculo carnal.
5 — Será um caridoso
obséquio, — redarguiu a genitora, aflita.
— A irmã está incumbida de encaminhá-lo? perguntou o instrutor, compreendendo a magnitude da tarefa. — Precisamos ponderar, quanto a isto, porque o desprendimento integral se verificará dentro de poucos minutos.
6 Ela esboçou um gesto triste
e respondeu:
— Desejaria sacrificar-me ainda um pouco por meu desventurado Fernando,
mas apenas obtive permissão para socorrê-lo nos seus últimos instantes.
Meus superiores prometem ajudá-lo, mas aconselharam-me a deixá-lo entregue
a si mesmo durante algum tempo. 7
Fernando precisa reconsiderar o passado, identificar os valores que,
infelizmente, desprezou. As lágrimas e os remorsos, na solidão do arrependimento,
serão portadores de calma ao seu espírito irrefletido. 8
Grande é o meu desejo de conchegá-lo ao coração, regressando aos dias
que já se foram; todavia, não posso prejudicar, com a minha ternura
materna, a marcha do serviço divino. Fernando, em verdade, é filho do
meu afeto e, contudo, tanto ele como eu, temos contas com a Justiça do
Eterno e, no que respeita a mim, estou cansada de agravar os meus débitos.
Não devo contrariar os desígnios de Deus.
9 A essa altura do diálogo,
interveio o clínico espiritual que nos encaminhara até ali, exclamando,
atencioso:
— Nossa amiga tem razão. Fernando não poderá acompanhá-la, mas tão nobre tem
sido a intercessão materna que tenho instruções para conduzi-lo a lugar
seguro, 10 a uma casa
de socorro, onde poderá colher o melhor proveito do sofrimento, porquanto
será asilado em zona vibratória inacessível às influências inferiores
e criminosas, embora situada em regiões baixas.
— Já sei, — murmurou Aniceto com grave entono, — trata-se de medida muito acertada.
3.
Em seguida, acentuou como quem não tinha tempo a perder:
— A aflição dos familiares encarnados, aqui presentes, poderá dificultar-nos a ação. Observem como todos eles emitem recursos magnéticos em benefício do moribundo.
2 De fato, uma rede de fios
cinzentos e fracamente iluminados parecia ligar os parentes ao enfermo
quase morto.
— Tais socorros, — tornou Aniceto, — são agora inúteis para devolver-lhe
o equilíbrio orgânico. Precisamos neutralizar essas forças, emitidas
pela inquietação, proporcionando, antes de tudo, a possível serenidade
à família.
3 E, aproximando-se ainda
mais do agonizante, tomou a atitude do magnetizador, exclamando:
— Modifiquemos o quadro do coma.
4 Após alguns minutos em que
nosso mentor operava, secundado pelo nosso respeitoso silêncio, ouvimos
o médico encarnado anunciar aos parentes do moribundo:
— Melhoram os prognósticos. A pulsação, inexplicavelmente, está quase normal. A respiração tende a calmar-se.
5 Três senhoras suspiraram
aliviadas.
— Dona Amanda, — dirigiu-se o assistente à esposa do moribundo, — convém que
vá repousar, levando as suas cunhadas. O senhor Fernando está muito
tranquilo e a situação é francamente favorável. Ficaremos velando, o
senhor Januário e eu.
6 As senhoras e mais dois
cavalheiros, que se prontificavam a retirar, agradeceram satisfeitos
e comovidos. Permaneceram no aposento somente o médico e um irmão do
agonizante. A melhora súbita tranquilizara a todos. E, aos poucos, os
fios cinzentos que se ligavam ao enfermo desapareceram sem deixar vestígios.
4.
— Abramos a janela, — disse o médico satisfeito, — o ar talvez acelere
as melhoras do nosso amigo.
O senhor Januário atendeu, abrindo a ampla vidraça.
2 Fundamente espantado, reparei
que três rostos horríveis pela expressão diabólica surgiram, de repente,
no peitoril, e interrogaram em voz alta:
— Como é? Fernando vem ou não vem?
3 Ninguém respondeu. Notei,
porém, que Aniceto lhes dirigiu significativo olhar, compelindo-os,
tão só com essa medida, a desaparecerem.
4 Meia hora passou, dentro
da qual o médico e o senhor Januário, quase despreocupados do agonizante,
pelas melhoras havidas, encetaram uma conversação animada, relativamente
a problemas do mundo.
5 Aproveitou Aniceto
a serenidade ambiente e começou a retirar o corpo espiritual de Fernando;
desligando-o dos despojos, reparando eu que iniciara a operação pelos
calcanhares, terminando na cabeça, à qual, por fim, parecia estar preso
o moribundo por extenso cordão, tal como se dá com os nascituros terrenos.
Aniceto cortou-o com esforço. 6
O corpo de Fernando deu um estremeção, chamando o médico humano ao novo
quadro. A operação não fora curta e fácil. Demorara-se longos minutos,
durante os quais vi o nosso instrutor empregar todo o cabedal de sua
atenção e talvez de suas energias magnéticas.
7 A família do morto,
informada pelo senhor Januário, aflita penetrou no quarto, ruidosamente.
A genitora do desencarnado, porém, auxiliada por Aniceto e pelo facultativo
espiritual que nos levara até ali, prestou ao filho os socorros necessários.
8 Daí a instantes,
enquanto a família terrena se debruçava em pranto sobre o cadáver, a
pequena expedição constituída por três entidades, as duas senhoras e
o clínico, saía conduzindo o desencarnado ao instituto de assistência,
reparando eu, contudo, que não saíam utilizando a volição, mas caminhando
como simples mortais.
9 Sentia-me fortemente impressionado.
Intrigava-me, sobretudo, o aparecimento daqueles rostos satânicos quando
se abrira a janela. Porque semelhante menosprezo a um agonizante?
10 Retirando-nos da residência,
o instrutor me fitou atento, e, antes que formulasse qualquer pergunta,
esclareceu, generoso:
— Não se preocupe tanto, André, com os vagabundos que esperavam nosso irmão infeliz. Só não penetraram na câmara de dor porque a nobre presença maternal impedia tal assédio.
11 E, depois de calar-se por
momentos, acrescentou:
— Cada criatura, na vida, cultiva as afeições que prefere. Fernando
estimava os companheiros desregrados. Não é, pois, estranhável, que
tenham vindo esperá-lo na estação de volta à existência real. 12
Paulo de Tarso, no capítulo
12 da Epístola aos Hebreus, afirma que o homem está cercado de uma
grande “nuvem de testemunhas”. Ora, essa informação foi endereçada ao
espírito humano há quase vinte séculos. 13
Cada um, pois, tem o séquito invisível a que se devota na Terra. Mais
tarde, quando a coletividade apreender a grandeza das lições evangélicas,
todo homem terá cuidado na escolha de suas testemunhas.
André Luiz