1.
Observando e trabalhando sempre, Aniceto considerou:
— Aqui não comparecem apenas os desencarnados enfermos. Reparem os encarnados,
igualmente. 2 Entre
o nosso Círculo e a assembleia dos irmãos corporificados, a percentagem
de trabalhadores em relação ao número de doentes e necessitados é quase
a mesma.
3 Designando um cavalheiro
aprumado e bem posto, que se mantinha em palestra com o senhor Bentes,
doutrinador naquele grupo, acrescentou:
— Vejam este amigo rodeado de sombra, em conversação com o colaborador de nossa irmã Isabel. Ouçam-lhe a palavra e, depois, ajuízem.
4 Com efeito, o cavalheiro
indicado rodeava-se de pequenas nuvens, mormente ao longo do cérebro.
Fixando nele a atenção, ouvia-o distintamente:
— Há muito, — asseverava com ênfase, — frequento as reuniões espiritistas,
à procura dalguma coisa que me satisfaça; no entanto, — e sorriu irônico,
— ou a minha infelicidade é maior que a dos outros ou estamos diante
de mistificação mundial.
5 Atento à respeitosa atitude
do orientador encarnado, prosseguia, orgulhoso:
— Tenho estudado muitíssimo, não me furtando ao crivo da razão rigorosa.
Já devorei extensa literatura relativa à sobrevivência humana e, todavia,
nunca obtive uma prova. 6
O Espiritismo está onusto de teses sedutoras, mas o terreno está cheio de dúvidas. A obra de Kardec, inegavelmente, representa extraordinária
afirmação filosófica; entretanto, encontramos com Richet um acervo de
perspectivas novas. A metapsíquica corrigiu muitos voos da imaginação,
trazendo à análise pública observações mais profundas sobre os desconhecidos
poderes do homem. 7
No exame dessas verdades científicas, o mediunismo foi reduzido em suas
proporções. Precisamos dum movimento de racionalização, ajustando os
fenômenos a critério adequado. Todavia, meu caro Bentes, vivemos em
paisagem de mistificações sutis, distantes das demonstrações exatas.
8 A essa altura, o interlocutor,
muito calmo e seguro na fé, interveio, considerando:
— Concordo, Dr. Fidélis, em que o Espiritismo não deva fugir a toda
espécie de considerações sérias; contudo, creio que a doutrina é um
conjunto de verdades sublimes, que se dirigem, de preferência, ao coração
humano. 9 É impossível
auscultar-lhe a grandeza divina com a nossa imperfeita faculdade de
observação, ou recolher-lhe as águas puras com o vaso sujo dos nossos
raciocínios viciados nos erros de muitos milênios. 10
Ao demais, temos aprendido que a revelação de ordem divina não é trabalho
mecânico em leis de menor esforço. Lembremos que a missão do Evangelho,
com o Mestre, foi precedida por um esforço humano de muitos séculos.
Antes de morrerem os cristãos nos circos do martírio, quantos precursores
de Jesus foram sacrificados? 11
Primeiramente, devemos construir o receptáculo; em seguida, alcançaremos
a bênção. 12 A Bíblia,
sagrado livro dos cristãos, é o encontro da experiência humana, cheia
de suor e lágrimas, consubstanciada no Velho Testamento, com a resposta
celestial, sublime e pura, no Evangelho de Nosso Senhor.
13 O cavalheiro, que respondia
pelo nome de Dr. Fidélis, sorria de modo vago, entre a ironia e a vaidade
ofendida.
Bentes, contudo, não perdeu a oportunidade e continuou:
— Se todo serviço sério da existência humana é alguma coisa de sagrado
aos nossos olhos, que dizer da expressão divina no trabalho planetário?
14 E considerando
a essência do serviço na organização do mundo, que seria de nós se um
punhado de Espíritos amigos e sábios nos arrebatassem à visão ampla
de orbes superiores, impelindo-nos para eles, precipitadamente, tão
só pelo fato de nos dispensarem, como indivíduos, uma estima santa?
15 Estaríamos preparados
para a mudança radical? Saberemos o que venha a ser a vida num orbe
superior? Teremos trabalhado bastante para entender os divinos desígnios?
E a Terra? E as nossas milenárias dívidas para com o planeta que nos
tem suportado as imperfeições? Como residir nos andares mais altos,
sem drenar os pântanos que jazem em baixo? 16
Estas considerações tornam-se imprescindíveis no exame de argumentação
como a sua, porquanto não poderemos ajuizar, com precisão, as correntes
generosas de um rio caudaloso, observando tão somente as gotas recolhidas
no dedal das nossas limitações.
17 O pesquisador renitente
acentuou a expressão irônica do rosto e revidou:
— Você fala como homem de fé, esquecendo que meu esforço se dirige à razão
e à ciência. Quero referir-me às ilações inevitáveis da consulta livre,
às farsas mediúnicas de todos os tempos. 18
Você está informado de que cientistas inúmeros examinaram as fraudes
dos mais célebres aparelhos do mediunismo, na Europa e na América. Ora,
que esperar de uma doutrina confiada a mistificadores continentais?
19 Bentes respondeu, muito
sereno e ponderado:
— Está enganado, meu amigo. Estaríamos laborando em erro grave, se
colocássemos toda a responsabilidade doutrinária nas organizações mediúnicas.
20 Os médiuns são
simples colaboradores do trabalho de espiritualização. Cada um responderá
pelo que fez das possibilidades recebidas, como também nós seremos compelidos
a contas necessárias, algum dia. 21
Não poderíamos cometer o absurdo de atribuir a concentração de todas
as verdades divinas somente na cabeça de alguns homens, candidatos a
novos cultos de adoração. A doutrina, Dr. Fidélis, é uma fonte sublime
e pura, inacessível aos pruridos individualistas de qualquer de nós,
fonte na qual cada companheiro deve beber a água da renovação própria.
22 Quanto às fraudes
mediúnicas a que se refere, é forçoso reconhecer que a pretensa infalibilidade
científica tem procurado converter os mais nobres colaboradores dos
desencarnados em grandes nervosos ou em simples cobaias de laboratório.
23 Os pesquisadores,
atualmente batizados como metapsiquistas, são estranhos lavradores que
enxameiam no campo de serviço sem nada produzirem de fundamentalmente
útil. Inclinam-se para a terra; contam os grãos de areia e os vermes
invasores, determinam o grau de calor e estudam a longitude, observam
as disposições climáticas e anotam as variações atmosféricas, mas, com
grande surpresa para os trabalhadores sinceros, desprezam a semente.
24 O interlocutor deixou de
sorrir e observou:
— Vamos ver, vamos ver… Espero a mensagem dos meus com os sinais iniludíveis da sobrevivência, após a morte…
25 Aniceto nos tocou de leve,
e falou:
— Repararam como este homem traz a mente enfermiça? É um dos curiosos
doentes, encarnados. Tem vasta cultura e, todavia, como traz o sentimento
envenenado, tudo quanto lhe cai nos raciocínios participa da geral intoxicação.
É pesquisador de superfície, como ocorre a muita gente. Tudo espera
dos outros, examina seu semelhante, mas não ausculta a si mesmo. 26
Quer a realização divina sem o esforço humano; reclama a graça, formulando
a exigência; quer o trigo da verdade, sem participar da semeadura; espera
a tranquilidade pela fé, sem dar-se ao trabalho das obras; estima a
ciência, sem consultar a consciência; prefere a facilidade, sem filiar-se
à responsabilidade, e, vivendo no torvelinho de continuadas libações,
agarrado aos interesses inferiores e à satisfação dos sentidos físicos,
em caráter absoluto, está aguardando mensagens espirituais…
27 Estávamos admirados, ante
as conclusões interessantes do instrutor amigo.
Vicente, que se mantinha sob forte impressão, perguntou:
— Afinal de contas, que deseja este homem?
28 Aniceto sorriu e
respondeu:
— Também ele teria imensas dificuldades para responder. Para nós outros, Vicente, o Dr. Fidélis é um desses enfermos que ainda não se dispuseram a procurar o alívio, pelo demasiado apego à sensação.
André Luiz
[Os capítulos do n.º 43 ao 48, dizem respeito às observações e estudos efetuados por André Luiz em uma reunião de trabalhos espirituais na residência de Dona Isabel.]