1.
A paisagem de sofrimento, desdobrada aos nossos olhos, lembrava-me o
ambiente das Câmaras de Retificação.
2 Entendeu-se Aniceto com
Isidoro e falou, resoluto:
— Mãos à obra! Distribuamos alguns passes de reconforto!
— Mas, — objetei, — estarei preparado para trabalho dessa natureza?
3 — Por que não? — Indagou
o instrutor em voz firme, — toda competência e especialização no mundo,
nos setores de serviço, constituem o desenvolvimento da boa vontade.
Bastam o sincero propósito de cooperação e a noção de responsabilidade
para que sejamos iniciados, com êxito, em qualquer trabalho novo.
4 Semelhantes afirmativas
estimularam-me o coração.
Recordei Narcisa, a dedicada irmã dos infortunados, que permanecia,
em “Nosso Lar”, quase sempre sem repouso, como prisioneira do sacrifício.
Pareceu-me, ainda, ouvir-lhe a voz fraterna e carinhosa — “André, meu
amigo, nunca te negues, quanto possível, a auxiliar os que sofrem. 5
Ao pé dos enfermos, não olvides que o melhor remédio é a renovação da
esperança; 6 se encontrares
os falidos e os derrotados da sorte, fala-lhes do divino ensejo do futuro;
7 se fores procurado,
algum dia, pelos Espíritos desviados e criminosos, não profiras palavras
de maldição. Anima, eleva, educa, desperta, sem ferir os que ainda dormem.
8 Deus opera maravilhas
por intermédio do trabalho de boa vontade sincera!” Sem mais hesitação, dispus-me
ao serviço.
2.
Aniceto designou-me um grupo de seis enfermos espirituais, acentuando:
2 — Aplique seus recursos,
André. Com a nossa colaboração, os amigos em tarefa nesta casa poderão
atender a responsabilidades diferentes e também imperiosas.
3 Os mais apagados
trabalhadores do bem rejubilem-se pela exemplificação nas lutas comuns
e edifiquem-se no Senhor Jesus, porque nenhuma de suas manifestações
ficam perdidas no espaço e no tempo. 4
Naquele instante em que fora chamado a prestar auxílios reais, eu não
recorria aos meus cabedais científicos, não me reportava tão somente
à técnica da medicina oficial, a que me filiara no mundo, mas recordava
aquela Narcisa humilde e simples, das Câmaras de Retificação, ( † )
enfermeira devotada e carinhosa, que conseguia muito mais com amor do
que com medicações.
5 Aproximei-me duma senhora
profundamente abatida, lembrando o exemplo da generosa amiga de “Nosso
Lar”, entendendo que não deveria socorrer utilizando apenas a firmeza
e a energia, mas também a ternura e a compreensão.
6 — Minha irmã, — disse, procurando
captar-lhe a confiança, — vamos ao passe reconfortador.
— Ai! Ai! — Respondeu a interpelada, — nada vejo, nada vejo! Ah! O tracoma!
Infeliz que sou! E me falam em morte, em vida diferente… Como recuperar
a vista?! Quero ver, quero ver!…
7 — Calma, — respondi,
encorajado, — não confia no Poder de Jesus? Ele continua curando cegos,
iluminando-nos o caminho, guiando-nos os passos!
8 Somente mais tarde
lembrei que, naquele instante, olvidara a curiosidade doentia, não pensei
na impressão deixada pelo tracoma naquele organismo espiritual, nem
me preocupei com a expressão propriamente científica do fenômeno, vendo,
apenas, à minha frente, uma irmã sofredora e necessitada. 9
E, à medida que me dispunha a observar a prática do amor fraternal,
uma claridade diferente começou a iluminar e a aquecer-me a fronte.
10 Lembrando a influência
divina de Jesus, iniciei o passe de alívio sobre os olhos da pobre mulher,
reparando que enorme placa de sombra lhe pesava na fronte. Pronunciando
palavras de animação, às quais ligava a melhor essência de minhas intenções,
concentrei minhas possibilidades magnéticas de auxílio nessa zona perturbada.
11 Dentro de alguns
instantes, a desencarnada desferiu um grito de espanto.
— Vejo! Vejo! — Exclamou, entre o assombro e a alegria. — Grande Deus! Grande
Deus!
12 E ajoelhando-se, num movimento
instintivo para render graças, dirigia-me a palavra, comovidamente:
— Quem sois vós, emissário do bem?
13 Dominava-me profunda
emoção, que não conseguia sofrear. Confundia-me a bondade do Eterno.
Quem era eu para curar alguém? Mas a alegria daquela entidade, libertada
das trevas, afirmava a ocorrência, na qual não queria acreditar. 14
A luz daquela dádiva como que mostrava mais fortemente o fundo escuro
de minhas imperfeições individuais e o pranto inundou-me as faces, sem
que pudesse retê-lo nos recônditos mananciais do coração. 15
Enquanto a enferma espiritual se desfazia em lágrimas de louvor, também
eu me absorvia numa onda de pensamentos novos. O acontecimento surpreendia-me.
Desejava socorrer o doente próximo e, contudo, estava enlaçado em singular
deslumbramento íntimo. 16
Aniceto, porém, aproximou-se delicadamente e falou em voz baixa:
— André, a excessiva contemplação dos resultados pode prejudicar o
trabalhador. 17 Em
ocasiões como esta, a vaidade costuma acordar dentro de nós, fazendo-nos
esquecer o Senhor. Não olvides que todo o bem procede d’Ele, que é a
luz de nossos corações. Somos seus instrumentos nas tarefas de amor.
18 O servo fiel não
é aquele que se inquieta pelos resultados, nem o que permanece enlevado
na contemplação deles, mas justamente o que cumpre a vontade divina
do Senhor e passa adiante.
19 Aquelas palavras não poderiam
ser mais significativas. O generoso mentor voltou ao serviço a que se
entregara, junto de outros irmãos, e, valendo-me do amoroso aviso, dirigi-me
à reconhecida senhora, acentuando:
20 — Minha amiga, agradeça
a Jesus e não a mim, que sou apenas obscuro servidor. Quanto ao mais,
não se impressione em demasia com a visão dos aspectos exteriores; volte
o poder visual para dentro de si mesma, para que possa consagrar ao
Senhor da Vida os sublimes dons da visão.
3.
Notei que a ouvinte se surpreendia com as minhas palavras, que lhe pareceram,
talvez, inoportunas e transcendentes, mas, novamente firme na preensão
do dever, acerquei-me do enfermo próximo. 2
Tratava-se dum infeliz irmão que falecera na Gamboa, n vitimado pelo câncer. Toda
a região facial apresentava-se com horrífico aspecto. 3
Apliquei os passes de reconforto, ministrando pensamentos e palavras de bom ânimo, reparando que o pobrezinho se sentia tomado de considerável
melhora. Prometi-lhe interesse amigo, a fim de internar-se em alguma
casa espiritual de tratamento, recomendando que preparasse a vida mental
para colher semelhante benefício, oportunamente. 4
Em seguida, atendi a dois ex-tuberculosos do Encantado, n a uma senhora que desencarnara
em Piedade, em consequência de um tumor maligno, e a um rapaz de Olaria,
que se desprendera num choque operatório. 5
Nenhum destes quatro últimos, contudo, manifestou qualquer alívio. Persistiam
as mesmas indisposições orgânicas, os mesmos fenômenos psíquicos de
sofrimento.
6 Terminando a tarefa que me
fora cometida, reuni-me ao nosso instrutor e Vicente, que me esperavam
a um canto da sala.
— As atividades de assistência, — exclamou Aniceto, cuidadoso, — se processam
conforme observam aqui. Alguns se sentem curados, outros acusam melhoras,
e a maioria parece continuar impermeável ao serviço de auxílio. 7
O que nos deve interessar, todavia, é a semeadura do bem. A germinação,
o desenvolvimento, a flor e o fruto pertencem ao Senhor.
8 Vicente, que se mostrava
fortemente impressionado, observou:
— O número de entidades perturbadas espanta. Vemo-las, em diversos graus de desequilíbrio, desde “Nosso Lar” até a Crosta.
9 Aniceto sorriu e falou em
tom grave:
— Devemos esmagadora percentagem desses padecimentos à falta de educação religiosa. Não me refiro, porém, àquela que vem do sacerdócio ou que parte da boca de uma criatura para os ouvidos de outra. Refiro-me à educação religiosa, íntima e profunda, que o homem nega sistematicamente a si mesmo.
André Luiz
[1] [Gamboa: trata-se de um distrito da cidade do Rio de Janeiro.]
[2] [Encantado, Piedade, Olaria: distritos da cidade do Rio de Janeiro.]
[Os capítulos do n.º 43 ao 48, dizem respeito às observações e estudos efetuados por André Luiz em uma reunião de trabalhos espirituais na residência de Dona Isabel.]