1.
No salão acolhedor de Dona Isabel, permanecíamos em plena atividade.
Lá fora, começara o aguaceiro forte, mas tínhamos a nítida impressão
de grande distância da chuva torrencial.
2 Logo às primeiras horas
da madrugada, o movimento intensificou-se. Muita gente ia e vinha.
— Numerosos irmãos, — explicou o orientador, — encontram-se neste pouso de trabalho
espiritual, na esfera a que os encarnados chamariam sonho. 3
Não é fácil transmitir mensagens de teor instrutivo, nessa tarefa, utilizando
lugares comuns, contaminados de matéria mental menos digna. Nas oficinas
edificantes, porém, onde conseguimos acumular maiores quantidades de
forças positivas da espiritualidade superior, é possível prestar grandes
benefícios aos que se encontram encarnados no planeta.
4 Acentuei minhas
observações, verificando que muitas das pessoas recém-chegadas pareciam
convalescentes, titubeantes… Algumas se mantinham de pé, sob o amparo
de braços carinhosos. Eram os amigos encarnados a se valerem do desprendimento
parcial, pelo sono físico, que se reuniam a nós, aproveitando o auxílio
de entidades generosas e dedicadas. 5
Reconhecia, entretanto, que a maior parte não entendia, com precisão,
o que se lhes desejava dizer. Muitos pareciam doentes, incompreensivos.
Sorriam infantilmente, revelando boa vontade na recepção dos conselhos,
mas grande incapacidade de retenção. Eu estudava os quadros ambientes,
com justa estranheza. 6
Sempre cuidadoso, Aniceto veio ao encontro de nossa perplexidade.
— Os Espíritos encarnados, — disse, — tão logo se realize a consolidação
dos laços físicos, ficam submetidos a imperiosas leis dominantes na
Crosta. 7 Entre eles
e nós existe um espesso véu. É a muralha das vibrações. 8
Sem a obliteração temporária da memória, não se renovaria a oportunidade.
Se o nosso campo lhes fora francamente aberto, olvidariam as obrigações
imediatas, estimariam o parasitismo, prejudicando a própria evolução.
9 Eis porque raramente
estão lúcidos ao nosso lado. Na maioria dos casos, junto de nós, permanecem
vacilantes, enfraquecidos… Vejam aquela jovem senhora encarnada, em
conversa com a vovozinha que trabalha conosco, em “Nosso Lar”.
Assim dizendo, Aniceto indicou um grupo mais próximo.
2.
A anciã, de olhos brilhantes e gestos decididos, abraçava-se à neta,
lânguida e palidíssima.
— Niêta, — exclamava a velhinha, em tom firme, — não dês tamanha importância
aos obstáculos. 2 Esquece
os que te perseguem, a ninguém odeies. Conserva tua paz espiritual,
acima de tudo. Tua mãe não te pode valer agora, mas crê na continuidade
de nossa vida. A vovó não te esquecerá. 3
A calúnia, Niêta, é uma serpente que ameaça o coração; entretanto, se
a encararmos de frente, fortes e tranquilas, vemos, a breve tempo,
que a serpente não tem vida própria. É víbora de brinquedo a se quebrar
como vidro, pelo impulso de nossas mãos. E, vencido o espantalho, em
lugar da serpente, temos conosco a flor da virtude. 4
Não temas, querida! Não percas a sagrada oportunidade de testemunhar
a compreensão de Jesus!…
5 A jovem senhora
não respondia, mas seus olhos semilúcidos estavam cheios de pranto.
Demonstrava no gesto vago uma consolação divina, recostada ao seio carinhoso
da devotada velhinha.
6 — Esta irmã se lembrará
de tudo, ao despertar no corpo físico? — Perguntei, intrigado, ao nosso
orientador.
Aniceto sorriu e esclareceu:
— Sendo a avó superior e ela inferior, e, examinando ainda a condição
dos Planos de vida em que ambas se encontram, a jovem encarnada está
sob o domínio espiritual da benfeitora. 7
Entre ambas, portanto, há uma corrente magnética recíproca, salientando-se,
porém, que a vovó amiga detém uma ascendência positiva. 8
A neta não vê o ambiente com precisão, nem ouve as palavras integralmente.
Não esqueçamos que o desprendimento no sono físico vulgar é fragmentário
e que a visão e a audição, peculiares ao encarnado, se encontram nele
também restritas. O fenômeno, pois, é mais de união espiritual que de
percepções sensoriais, propriamente ditas. 9
A jovem está recebendo consolações positivas, de Espírito a Espírito.
Não se recordará, despertando nos véus materiais mais grosseiros, de
todas os detalhes deste venturoso encontro que acabamos de presenciar.
10 Acordará, porém,
encorajada e bem disposta, sem poder identificar a causa da restauração
do bom ânimo. Dirá que sonhou com a avó num lugar onde havia muita gente,
sem recordar as minudências do fato, acrescentando que viu, no sonho,
uma cobra ameaçadora, que logo se transformou em serpente de vidro,
quebrando-se ao impulso de suas mãos, para transformar-se em perfumosa
flor, da qual ainda conserva a lembrança agradável do aroma. 11
Afirmará que soberano conforto lhe invadiu a alma e, no fundo, compreenderá
a mensagem consoladora que lhe foi concedida.
12 — Não se lembrará, contudo,
das palavras ouvidas? — Indagou Vicente, curioso.
— Precisaria ter adquirido profunda lucidez no campo da existência
física, — prosseguiu Aniceto, explicando, — e devo esclarecer que recordará
as imagens simbólicas da víbora e da flor, porque está em relação magnética
com a veneranda avozinha, recebendo-lhe a emissão de pensamentos positivos.
A benfeitora não fala apenas. Está pensando fortemente também. 13
A neta, todavia, não está ouvindo ou vendo pelo processo comum, mas
está percebendo claramente a criação mental da anciã amiga, e dará notícia
exata dos símbolos entrevistos e arquivados na memória real e profunda.
14 Desse modo, não terá
dificuldade para informar-se quanto à essência do que a bondosa avó
deseja transmitir-lhe ao coração sofredor, compreendendo que a calúnia,
quando fere uma consciência tranquila não passa de serpente mentirosa,
a transformar-se em flor de virtude nova, quando enfrentada com o valor
duma coragem serena e cristã.
3.
A lição fora profundamente significativa para mim. Começava a adquirir
amplas noções do intercâmbio entre as duas Esferas. Pensei no longo
esforço dos que indagam o mundo dos sonhos. 2
Quanta riqueza psíquica, suscetível de conquista, se os pesquisadores
conseguissem deslocar o centro de estudo, das ocorrências fisiológicas
para o campo das verdades espirituais! Lembrei a psicanálise, a tese
freudiana, as manifestações instintivas, inferiores.
3 Percebendo-me as elucubrações,
o devotado mentor dirigiu-me a palavra de maneira especial:
— Freud, — asseverou Aniceto, — foi um grande missionário da Ciência;
no entanto, manteve-se, como qualquer Espírito encarnado, sob certas
limitações. Fez muito, mas não tudo, na esfera da indagação psíquica.
4 Pela pausa do nosso instrutor,
percebi que ele não desejava entrar em minucioso exame da teoria famosa.
Lembrando, porém, a extraordinária importância atribuída pelo grande
cientista às tendências inferiores, indaguei, um tanto tímido:
— Haverá, porém, centros de reunião para os Espíritos desequilibrados no mal, como acontece, aqui, aos amigos interessados no bem?
5 O generoso mentor sorriu,
benévolo, e falou:
— Não haja dúvidas quanto a isto. Através das correntes magnéticas suscetíveis
de movimentação, quando se efetua o sono dos encarnados, são mantidas
obsessões inferiores, perseguições permanentes, explorações psíquicas
de baixa classe, vampirismo destruidor, tentações diversas. 6
Ainda são poucos, relativamente, os irmãos encarnados que sabem dormir
para o bem…
E, fazendo um gesto por demais expressivo, concluiu:
— Livre-nos o Senhor de cair novamente…
André Luiz