1.
Num gesto nobre, Aniceto pediu a Ismália que executasse algum motivo
musical de sua elevada Esfera.
A esposa de Alfredo não se fez rogada. Com extrema bondade, sentou-se ao órgão, falando, gentil:
— Ofereço a melodia ao nosso caro Aniceto.
2 E, ante nossa admiração
comovida, começou a tocar maravilhosamente. Logo às primeiras notas,
alguma coisa me arrebatava ao sublime. Estávamos extasiados, silenciosos.
3 A melodia, tecida
em misteriosa beleza, inundava-nos o espírito em torrentes de harmonia
divina. Penetrava-me o coração num campo de vibrações suavíssimas, quando
fui surpreendido por percepções absolutamente inesperadas. 4
Com assombro indefinível, reparei que a esposa de Alfredo não cantava,
mas no seio caricioso da música havia uma prece que atingia o sublime
— oração que eu não escutava com os ouvidos mas recebia em cheio
na alma, através de vibrações sutis, como se o melodioso som estivesse
impregnado do verbo silencioso e criador. 5
As notas de louvor alcançavam-me o âmago do espírito, arrancando-me
lágrimas de intraduzível emotividade:
6
“Ó Senhor Supremo de Todos os Mundos
E de Todos os Seres,
Recebe, Senhor,
O nosso agradecimento
De filhos devedores do teu amor!
7
Dá-nos tua bênção.
Ampara-nos a esperança,
Ajuda-nos o ideal
Na estrada imensa da vida…
8
Seja para o teu coração,
Cada dia,
Nosso primeiro pensamento de amor!
9
Seja para tua bondade
Nossa alegria de viver!…
10
Pai de amor infinito
Dá-nos tua mão generosa e santa.
11
Longo é o caminho.
Grande o nosso débito,
Mas inesgotável é a nossa esperança.
12
Pai Amado,
Somos as tuas criaturas,
Raios divinos
De tua Divina Inteligência.
13
Ensina-nos a descobrir
Os tesouros imensos
Que guardaste
Nas profundezas de nossa vida,
Auxilia-nos a acender
A lâmpada sublime
Da Sublime Procura!
14 Senhor,
Caminhamos contigo
Na eternidade!…
Em Ti nos movemos para sempre.
15 Abençoa-nos a senda,
Indica-nos a Sagrada Realização.
E que a glória eterna
Seja em teu eterno trono!…
16 Resplandeça contigo a Infinita Luz,
Mane em teu coração misericordioso
A Soberana Fonte do Amor,
Cante em tua Criação Infinita
O sopro divino da eternidade.
17 Seja a tua bênção
Claridade aos nossos olhos,
Harmonia ao nosso ouvido,
Movimento às nossas mãos,
Impulso aos nossos pés.
18 No amor sublime da Terra e dos Céus!…
Na beleza de todas as vidas,
Na progressão de todas as coisas,
Na voz de todos os seres,
Glorificado sejas para sempre, Senhor.”
|
19 Que melodia era
aquela que se ouvia através de sons inarticulados? Não pude conter as
lágrimas abundantes. Cecília comovera-nos a sensibilidade, lembrando
as harmonias terrenas e os afetos humanos. Ismália, no entanto, arrebatava-nos
o Espírito, elevando-nos ao Supremo Pai. 20 Nunca ouvira oração de louvor como aquela! Além disso, a esposa de Alfredo
glorificava o Senhor de maneira diferente, inexprimível na linguagem
humana. A prece tocara-me as recônditas fibras do coração e reconhecia
que nunca meditara na grandeza divina, como naquele instante em que
uma alma santificada falava de Deus, com a maravilha de suas riquezas
espirituais.
21 E não era só eu a chorar
como criança. Aniceto enxugava os olhos, de maneira discreta, e algumas
senhoras levavam o lenço ao rosto.
2.
Compreendi que a oração terminara, porque a música mudou de expressão.
O caráter heroico cedeu lugar a lirismo encantador. 2
Experimentando a profunda serenidade ambiente, vi que luzes prodigiosas
jorravam do Alto sobre a fronte de Ismália, envolvendo-a num arco irisado
de efeito magnético 3
e, com admiração e enlevo, observei que belas flores azuis partiam do
coração da musicista, espalhando-se sobre nós. Desfaziam-se como se
feitas de cariciosa bruma anilada, ao tocar-nos, de leve, enchendo-nos
de profunda alegria. 4
A maior parte caía sobre Aniceto, fazendo-nos recordar as palavras amigas
da dedicatória. Impressionavam-me profundamente aquelas corolas fluídicas,
de sublime azul-celeste, multiplicando-se, sem cessar, no ambiente,
e penetrando-nos o coração como pétalas constituídas apenas de colorido
perfume. 5 Sentia-me
tão alegre, experimentava tamanho bom ânimo que não conseguiria traduzir
as emoções do momento.
Mais alguns minutos e Ismália terminou a magistral melodia.
6 A esposa do administrador
desceu até nós, coroada de intensa luz.
Alfredo avançou, beijando-a no rosto, ao mesmo tempo que Aniceto lhe estendia a destra, agradecido.
— Há muito tempo não ouvia músicas tão sublimes como as desta noite, — exclamou
nosso orientador, sorrindo. — 7
Cecília falou-nos do sublime amor terrestre, Ismália arrebatou-nos ao
divino amor celestial. Ideia feliz a de permanecermos no Posto! Fomos
igualmente socorridos pela luz da amizade, que nos revigorou o bom ânimo!
8 Aproximaram-se os Bacelar,
eminentemente comovidos.
— Que maravilhosas flores nos deste, querida amiga! — Disse a mãezinha de Cecília, abraçando a esposa de Alfredo.
— Voltaremos ao trabalho, repletos de energia nova! — Acrescentou o senhor Bacelar, sorridente.
9 A extensa sala estava cheia
de notas de reconhecimento e júbilo sincero. A melodia de Ismália constituíra
singular presente do Céu. A alegria e o bom ânimo transpiravam em todos
os rostos.
10 Observando que Aniceto se
retirava para um canto do salão, procurei-o, ansioso. Desejava esclarecer
o fenômeno da prece sem palavras, das harmonias, das luzes e das flores.
Antes, porém, das interpelações do aprendiz, o orientador amigo sorriu
generoso e explicou:
11 — Conheço a sua
sede, André. Não precisa perguntar. Impressionou-se você com a grandeza
espiritual da nobre companheira do nosso amigo. Não precisarei alinhar
esclarecimentos. 12
Recorda-se de Ana, a infeliz criatura que dorme nos pavilhões, entre
pesadelos cruéis? Lembra-se de Paulo, o caluniador? Não os viu carregando
pesados fardos mentais? 13
Cada um de nós traz, nos caminhos da vida, os arquivos de si mesmo.
Enquanto os maus exibem o inferno que criaram para o íntimo, os bons
revelam o paraíso que edificaram no próprio coração. 14
Ismália já amontoou muitos tesouros que as traças não roem. ( † )
Ela já pode dar da infinita harmonia a que se devotou pela bondade e
pelo divino amor. 15
A luz que vimos é a mesma que jorra do Plano superior, de maneira incessante,
inundando os caminhos da vida, 16
mas a melodia, a prece e as flores constituem sublime criação dessa
alma santificada. Ela repartiu conosco, neste momento, uma parte dos
seus tesouros eternos! 17
Peçamos ao Senhor, meu amigo, que não tenhamos recebido em vão as sublimes
dádivas!
André Luiz