1.
Poucas vezes, no Círculo carnal, tivera o prazer de assistir a reunião
tão seleta.
Todos os lustres estavam magnificamente acesos e, lá fora, as grandes
árvores, docemente agitadas pelo vento brando, pareciam refletir o clarão
lunar. 2 Pares graciosos
passeavam ao longo da varanda e das escadarias extensas. O castelo enchera-se
de alegria, com a crescente multiplicação de convidados. 3
O administrador mostrava-se orgulhoso de confraternizar com os colaboradores
diretos da sua obra, na recepção condigna aos amigos da colônia próxima.
4 O júbilo transparecia
em todos os rostos, e eu, observando a beleza do espetáculo, meditava
na ventura da vida social, no ambiente daqueles que começavam a compreender
e praticar o “amai-vos uns aos outros”, ( † )
distanciados da hipocrisia e das convenções aviltantes.
5 Conversávamos, animadamente,
quando Alfredo nos convidou para o Salão de Música.
Houve geral contentamento. A senhora Bacelar, dando o braço à nobre Ismália, parecia encantada com a lembrança.
6 Dirigimo-nos para
o grande recinto, prodigiosamente iluminado por luzes de um azul doce
e brilhante. Deliciosa música embalava-nos a alma. Observei, então,
que um coro de pequenos musicantes executava harmoniosa peça, ladeando
um grande órgão, algo diferente dos que conhecemos na Terra. 7
Oitenta crianças, meninos e meninas, surgiam, ali, num quadro vivo,
encantador. Cinquenta tangiam instrumentos de corda e trinta conservavam-se,
graciosamente, em posição de canto. Executavam, com maravilhosa perfeição,
uma linda barcarola que eu nunca ouvira no mundo.
8 Comovidíssimo, ouvi o administrador
explicar:
— As crianças do Posto são as nossas flores vivas. Dão-nos perfume, encantamento, alegria, suavizando-nos todos os trabalhos.
2.
Abeiramo-nos do órgão, sentando-nos todos em confortáveis poltronas.
Quando as crianças terminaram, sob aplausos calorosos, Ismália pediu à Cecília executasse alguma coisa.
2 — Eu? — Disse a jovem, corando,
— se a senhora vem das altas Esferas, onde a harmonia é santificada
e pura, como poderei executar para os seus ouvidos?
— Não diga isso, Cecília, — tornou, sorridente, a generosa esposa do administrador,
— a música elevada é sublime em toda parte. Vá, minha filha! Lembre-me
o lar terreno nos dias mais belos!…
3 E, antes que a jovem Bacelar
perguntasse qual a peça preferida, Ismália continuou:
— Os serviços musicais do Posto levam-me a recordar a velha Fazenda, quando voltava do Internato… Meus pais estimavam as composições europeias e, quase todas as noites, ensaiava ao piano..
4 E, fixando em Cecília os
olhos úmidos e brilhantes, rematou:
— Sua mamãe deve lembrar comigo a música predileta de meu velho e carinhoso pai…
5 Notei que a senhora
Bacelar disse alguma coisa à filha, em voz baixa, e vimos Cecília caminhar
para o grande instrumento, sem hesitação. Com emoção indizível, ouvimo-la
executar, magistralmente, a “Tocata e Fuga em Ré Menor”, de Bach, ( † )
acompanhada pelas crianças exultantes.
6 Fixei o rosto de Ismália,
notando, pela luz do seu olhar, que seus pensamentos vagueavam longe,
talvez em torno do antigo ninho doméstico. Vi-a enxugar as lágrimas
discretas e abraçar Cecília carinhosamente, ao findar a execução.
7 — Agora, Cecília, cante
alguma canção da própria alma! — Falou a nobre senhora com ternuras
de mãe, — mostre-nos seu coração…
Os senhores Bacelar estavam satisfeitos e emocionados. Lia-se-lhes nos gestos o carinho com que acompanhavam os menores movimentos da filha.
8 A jovem sorriu,
voltou ao teclado, mas permanecia, agora, fundamente transfigurada.
Seu belo semblante parecia refletir alguma luz diferente, que vinha
de Mais Alto. Começou a cantar, de maneira misteriosa e comovedora.
A música parecia sair-lhe das profundezas do coração, mergulhando-nos
em sublime emotividade. 9
Procurei guardar as palavras da maravilhosa canção, mas seria impossível
repeti-las integralmente no Círculo dos encarnados na Terra. A sombra
da meia-noite não poderia traduzir o revérbero da aurora. Mas de algo
me lembro, para registar aqui, com a fidelidade de que é suscetível
minha memória imperfeita.
10 Como se fora rodeada de
claridades diversas daquela em que nos banhávamos, Cecília cantou com
voz veludosa e cariciante:
“Guardei para os teus olhos
As estrelas brilhantes do céu calmo…
Guardei para tua alma
Todos os lírios puros dos caminhos!…
Amado meu, amado meu,
Como é longa a viagem entre escolhos
Neste oceano imenso da saudade,
Ao sublime luar da eternidade!…
Em vão, a fada Esperança
Acende a luz dentro de mim…
Porque te foste ao mundo, assim?!
Volta, amado!
Ainda mesmo
Que as tuas mãos estejam frias
E que teus pés sangrem de dor.
Trago comigo o bálsamo, a ternura,
Volta a mim,
Vem respirar, de novo, no jardim
Da imortal união!…
Curarei tuas chagas de amargura,
Dar-te-ei o roteiro para a estrada,
Amarei os que amas,
Para que me abençoes com o teu sorriso.
Volta, amado!
Esquece a dor e a sombra do passado,
Volta, de novo, ao nosso paraíso!…”
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11 Quando desferiu
as últimas notas, vi-lhe o semblante lavado em lágrimas, como se fora
banhado em pérolas de luz. Observei que a senhora Bacelar, muitíssimo
comovida, tocou de leve a mão de Ismália, e falou:
— Cecília nunca o esquece.
12 A esposa do administrador,
mostrando-se extremamente sensibilizada, indagou:
— Não têm vocês novas notícias de Hermínio?
— O pobrezinho tem vivido de queda em queda, — esclareceu a nobre interlocutora,
— e Cecília sabe que não poderá contar com ele, por muito tempo ainda,
guardando, por esse motivo, muita mágoa íntima. Entretanto, nossa filha
não desanima e trabalha, incessantemente, cheia de esperança.
13 Nesse momento, porém, a
jovem regressava ao círculo familiar, enxugando os olhos.
A esposa de Alfredo abraçou-a e falou:
— Minhas felicitações! Não sabia que você progredira tanto na arte divina! E que bela canção!…
14 Cecília fez um gesto de
timidez, beijou a mão da carinhosa amiga e retrucou:
— Perdoe-me, querida Ismália, meu coração permanece ainda muito ligado à Terra!…
15 Ismália, porém, de olhos
úmidos e compreendendo-lhe o sofrimento íntimo, conchegou-a ao peito
e murmurou:
— Devotar-se não é crime, minha boa Cecília. O amor é luz de Deus, ainda mesmo quando resplandeça no fundo do abismo.
André Luiz