1.
Em vista de apresentação mais íntima de Aniceto, que deixara as jovens
em nossa companhia, entramos a conversar animadamente com Cecília e
Aldonina. 2 A primeira
tinha sido filha dos Bacelar, quando na Crosta; a segunda era uma sobrinha
do chefe da família, que aguardava a volta da mãezinha para a organização
de um lar na cidade próxima.
3 Ambas demonstravam magnífico
desenvolvimento mental, robusta inteligência e notável capacidade de
expressão.
E, enquanto os nossos maiores se conservavam afastados, cogitando de assunto privado, Vicente e eu ouvíamos as jovens, encantados com a sua nobreza e vivacidade.
4 Verificava que o quadro
era idêntico à paisagem social da Terra, apenas diferindo quanto aos
sentimentos reais. Não havia qualquer nota de falsa apresentação. Em
tudo a alegria pura, a simplicidade fiel, a sinceridade sem mácula.
5 No desenvolvimento espontâneo
da palestra, falou Cecília, com graça:
— Estou trabalhando, há muito, por alcançar um prêmio de visita a “Nosso Lar”. Minhas superioras prometeram-me semelhante satisfação para o ano próximo…
5 E, sorrindo, rematou expressivamente:
— Entretanto, para consegui-lo, tenho de atender a umas tantas obrigações importantes.
— Pois quê? — Perguntou Vicente, admirado, — é preciso tanto?
— Sem dúvida, — tornou a jovem, bem humorada, — o meu amigo talvez não esteja
convencido, quanto ao brilho de sua atual posição. Viver em “Nosso Lar”
é uma grande bênção. Acaso não o terá compreendido ainda?
6 Sorrimos todos. E, reafirmando
o conceito, Cecília continuou:
— Segundo os instrutores que nos visitam em “Campo da Paz”, os seus Ministérios são verdadeiras universidades de preparação espiritual. O ensejo educativo, neles, é imenso. E chego a crer que, para avaliarem a extensão da benesse que Jesus lhes concedeu, seria necessário viverem alguns anos em nossa colônia, onde o trabalho ativo de vigilância e assistência é mais imperioso, mais exigente.
7 — Em “Nosso Lar”,
porém, — objetei, — temos igualmente grande número de sofredores. A
Regeneração é uma colmeia de milhares.
8 A interlocutora, todavia,
revelando profunda acuidade nas observações, considerou:
— Você diz muito bem, quando se refere a colmeia, significando possibilidades
de trabalho. Creia que os sofredores que atingem o seu núcleo já se
encontram a caminho de excelentes realizações. 9
Naturalmente que os irmãos desequilibrados, que por lá existem, já se
torturam pelo vagaroso despertar da consciência, já sentem remorsos
e arrependimentos indicativos de renovação. São sofredores que melhoram
progressivamente, porque o ambiente da cidade é de elevação positiva.
10 Onde a maioria vive
com a bondade, a maldade da minoria tende sempre a desaparecer. “Nosso
Lar”, portanto, mesmo para os que choram, possui soberanas vantagens
espirituais.
11 Impressionado com o que
ouvia, lembrei:
— Eu mesmo trabalhei algum tempo, em cooperação, nas câmaras retificadoras.
— Já ouvi diversas referências a essa instituição, — exclamou Cecília, senhora
do assunto, — mas, baseando-me nos informes de mentores amigos, continuo
a manter minha opinião.
12 E, como se já conhecesse
nossos processos de serviço, asseverou, sorridente:
— Vocês conhecem lá muitos Espíritos sofredores, mas, em “Campo da Paz”, conhecemos
muitos Espíritos obsessores. Lá poderá existir muita gente que ainda
chora; mas em nosso meio há muita gente que se revolta. É mais fácil
remediar ao que geme, que atender ao revoltado. 13
Nas câmaras a que se refere, vocês retificam erros que já apareceram,
dores que já se manifestaram; mas aqui, meu amigo, somos compelidos
a lutar com irmãos ignorantes e perversos, que se sentem absolutamente
certos nas fantasias perigosas que esposaram, e vemo-nos obrigados a
atender a doentes que não acreditam na própria enfermidade.
14 Começava a entender a lógica
daquela argumentação, e, reconhecendo a impossibilidade de qualquer
contradita, a jovem continuou, segura de si:
— Aliás, é natural que assim seja. Estamos a pouca distância dos homens, nossos
irmãos na carne. E sabemos que, na Crosta, a situação não é diferente.
15 Quantos materialistas
se fantasiam, por lá, de filósofos? Quantos demônios com capa de santos?
Quanta má fé a fingir generosidade e boas intenções? A influência da
Humanidade encarnada em nosso núcleo de serviço é vigorosa e inevitável.
2.
Vicente, que ouvia atencioso, obtemperou:
— Deduzo de tudo isso manifestações sacrificiais muito grandes, mas o trabalho em “Campo da Paz” deve ser altamente meritório.
— Incontestavelmente, — respondeu a jovem. — 2
A história da fundação é interessante. Alguns benfeitores, reconhecidos
a Jesus, resolveram organizar, em nome dele, uma colônia em plena região
inferior, que funcionasse como instituto de socorro imediato aos que
são surpreendidos na Crosta com a morte física, em estado de ignorância
ou de culpas dolorosas. O projeto mereceu a bênção do Senhor e o núcleo
se criou, há mais de dois séculos. 3
Nem todos os Espíritos evolvidos, no entanto, estimam o serviço nesse
órgão de assistência constante. A maioria dos missionários vitoriosos,
ao se ausentarem da Terra, necessitam refazer energias, por direito
natural do trabalhador fiel, e os mentores de nobre posição hierárquica
têm seus programas de serviço, que não devem quebrar, em obediência
aos desígnios do Senhor. 4
Desse modo, nosso serviço é ativo, mas nossas aquisições são lentas
e devemos sempre esperar por cooperadores que se eduquem na própria
colônia, em benefício geral. 5
Ganha-se excelente compensação, temos direito a grandes valores intercessórios,
mas, por isso mesmo, nossas responsabilidades não são pequenas. Conhecendo
a utilidade dos que servem em nossa colônia, não passamos nunca sem
instrutores abnegados, que procedem da zona superior, alentando-nos
o bom ânimo. 6 O que
pedimos, com fundamentação legítima, nunca é negado; e, se tarda o recurso,
beneméritos orientadores de nossas atividades enviam explicações que
nos libertam de qualquer angústia na espera. Por isso, nosso grupo está
sempre coeso e muitos preferem adiar certas realizações sublimes, para
permanecer ao lado de companheiros antigos, aos quais se unem com desvelado
amor.
7 Os esclarecimentos da jovem
encantavam-me. Naquelas poucas palavras estava todo um resumo de lições
sobre o sacrifício e o merecimento, o compromisso fraterno e a solidariedade
compensadora.
3.
— A sua família sempre viveu lá? — Perguntei com interesse.
A jovem sorriu e explicou:
— Meu pai, há mais de cinquenta anos, foi socorrido pelos benfeitores de “Campo
da Paz” e, restabelecida a saúde espiritual, fixou-se na colônia, com
razoável impulso de amizade e gratidão. 2
Mais tarde, minha mãe reuniu-se a ele e, faz precisamente vinte anos,
Aldonina e eu fomos atraídas amorosamente por ambos, a fim de continuarmos,
ali, no santuário familiar. Desse modo, trabalhamos junto deles, desde
a primeira hora.
— E tem muitos programas para o futuro? — Indaguei.
3 Cecília fez um gesto que
lhe caracterizava o coração de moça sonhadora, e redarguiu:
— Tenho muitos projetos e problemas a resolver, mas estou aguardando a chegada de alguém que ainda se encontra na Terra.
André Luiz