1.
À noite, surpreendiam-me os sublimes aspectos do firmamento no Posto
de Socorro. O luar safirino envolvia todas as coisas. O céu era qual
infinita colcha de azul muito límpido, pontilhado de astros fulgurantes.
As nuvens da tarde haviam desaparecido.
2 Contemplando a beleza da
noite, Alfredo acentuou:
— Felizmente, os fenômenos magnéticos foram deslocados do nosso círculo. Os aparelhos, porém, continuam registrando enorme conflito de forças inferiores.
3 Ia comentar a beleza do
céu, ante a observação do administrador, quando a campainha retiniu
suavemente.
Chamavam à entrada. Alfredo e Ismália sorriram.
Muito gentil, o chefe do Posto asseverou:
— Temos a visita de amigos do “Campo da Paz”.
4 E, convidando-nos à recepção
no baluarte avançado, acrescentou jovialmente:
— Temos, também, aqui, a nossa vida social. Como não? É preciso saber viver.
5 Encantado com essa
nota alegre, acompanhei os donos da casa, verificando, com indizível
surpresa, que tínhamos sob os olhos um belo carro tirado por dois soberbos
cavalos brancos. Tratava-se de veículo confortável e interessante, quase
idêntico aos velhos carros de serviço público, do tempo de Luís XV,
que reparara, mais de uma vez, em publicações antigas. 6
Nele chegara pequena família da colônia próxima, que, pelas informações
de Aniceto, demorava a três léguas do Posto, aproximadamente.
Alfredo apresentou-nos, cavalheirescamente, com exceção de nosso orientador, que era velho amigo dos recém-chegados.
7 Constituíam-se os visitantes
do casal Bacelar e duas filhas jovens. O chefe do grupo mostrava idade
avançada, revelando, porém, excelentes disposições. A senhora dava impressão
de madureza, aparentando, contudo, maravilhosa vivacidade, assim como
as duas moças.
8 A alegria era enorme. Não
se observava qualquer nota de convencionalismo menos digno, como na
Terra. Os gestos de cada um, a simplicidade, a despreocupação, as frases
afetuosas, demonstravam sinceridade pura. Permanecíamos num quadro social
inacessível ao fingimento.
9 Voltando ao interior doméstico,
entre grandes manifestações de júbilo familiar, observei que os recém-chegados
eram amigos de muito tempo, que vinham ao encontro de Ismália. A nobre
senhora pareceu-me contentíssima. Expediu recados afetuosos para algumas
famílias do Posto e, em breves minutos, o castelo recebia inúmeras pessoas
que concorriam ao brilhantismo da seleta reunião.
Sentindo-me assaz insignificante, ao lado dos novos amigos, limitava-me a ouvir e observar.
2.
Logo aos primeiros instantes de conversação particularizada, ouvi Aniceto
perguntar ao senhor Bacelar:
— Como corre o serviço?
2 O velho bondoso respondeu
num sorriso largo:
— Bem, sempre bem. Apenas não podemos fixar demasiada atenção nos companheiros encarnados.
E ajuntou com graça:
— É indispensável aprender a servir e passar.
3 Nosso instrutor sorriu igualmente
e observou:
— Compreendo, compreendo. Aliás, o progresso humano não é uma questão de dias. Não tenhamos ilusões.
4 E, percebendo que Vicente
e eu poderíamos aproveitar com a palestra, Aniceto indicou o novo hóspede
de Alfredo, explicando solícito:
— Nosso amigo Bacelar é chefe de turmas de assistência aos nossos irmãos do Círculo carnal. Tem longa experiência dos homens e conhece-os como ninguém. Há muito que aproveitar nas suas observações.
5 — Não tanto, meus
caros, — exclamou o senhor Bacelar, de bom humor, — não tanto. Sou simples
companheiro de vocês, cumprindo deveres por acréscimo da misericórdia
divina. Não posso fazer muito, em razão de minhas deficiências naturais.
6 — Estamos certos do grande
proveito da sua palavra, — objetou Vicente, até então calado.
— Tudo o que nos disser sobre o problema de assistência constituirá, para nós,
ensinamento precioso, — disse por minha vez.
7 O novo amigo fitou-nos com
inteligência, e perguntou:
— Foram médicos no mundo?
— Sim. — Respondemos a um só tempo.
8 O senhor Bacelar pensou
alguns momentos e acentuou:
— Sempre gostei de conversar com os amigos, recorrendo aos símbolos sugeridos pela profissão que exercem. Mas, no tocante às minhas atividades, não teria muito o que dizer a médicos militantes.
— Pelo contrário, — aduzi, — seus esclarecimentos enriquecerão nossas experiências.
9 O interlocutor sorriu,
otimista, e declarou:
— Não creia. Recorde os seus doentes comuns. Muito raramente lembram
a medicina preventiva. De modo quase invariável, esperam a positivação
das moléstias para buscarem o recurso preciso. Necessitam de anestésicos
para o socorro do bisturi. Fogem ao regímen tão logo surja a primeira
melhora. Confundem o método de tratamento, apenas se registe o primeiro
sinal de cura. Detestam a dor que restabelece o equilíbrio. Descontentam-se
com a indicação de purgativos. Preferem a medicação de sabor agradável.
E, sobretudo, quase sempre querem saber muito mais que os médicos. 10
Esta síntese aplicável a corpos doentes representa, em nosso campo de
serviço, o resumo do programa de assistência aos Espíritos enfermos,
encarnados na Terra, e com agravantes de vulto, porque, em nosso setor,
não podemos manipular a alma, à maneira do cirurgião que opera as amídalas.
11 Somos forçados
à preparação do campo mental conveniente, a proceder à semeadura de
pensamentos novos, velar pela germinação, ajudar os rebentos minúsculos
e aguardar a obra do tempo. 12
Nossa luta não é simples, porque, se o clínico do mundo encontra sempre
familiares generosos, dispostos a cooperar com ele em benefício do doente,
encontramos, por nossa vez, enormes legiões de elementos adversos
à nossa atividade restauradora e curativa. 13
Em geral, o médico do mundo presta socorro a quem deseja recebê-lo,
pelo menos nas ocasiões de graves perigos; nós, porém, meus amigos,
muitas vezes temos de prestar assistência aos que não a desejam, por
viverem sob véus de profunda ignorância.
3.
— Tem razão, — murmurei, ouvindo comparações tão lógicas; — entretanto,
vale por conforto a certeza de que há muitos cooperadores encarnados
no mundo, prontos a colaborar na tarefa.
2 O senhor Bacelar teve uma
expressão fisionômica muito significativa, e revidou:
— Nem sempre. A cooperação é outro problema. A maioria dos irmãos que
se propõem ao serviço, partem daqui prometendo, mas gostam de viver
descansados, no planeta. Poucos fogem ao estalão comum. 3
Raramente encontramos companheiros encarnados com bastante disposição
para amar o trabalho pelo trabalho, sem ideia de recompensa. A maioria
está procurando remuneração imediata. Nessas condições, não percebem
que a mente lhes fica como aposento escuro, atulhado de elementos inúteis.
4 À força de viciarem
raciocínios, confundem igualmente a visão. Enxergam tormentas onde há
paisagens celestes, montanhas de pedra onde o caminho é gloriosa elevação.
De pequenos enganos a pequenos enganos, formam o continente das grandes
fantasias. 5 Daí por
diante, a recapitulação das experiências terrenas inclina-os, mais fortemente,
para a exigência animal e, chegados a esse ponto, raros voltam ao dever
sagrado, para considerar a grandeza das divinas bênçãos.
4.
Nosso interlocutor fez uma pausa e tornou:
— E o “desculpismo”? Nesse terreno de assistência espiritual, verão,
um dia, quantos pretextos são inventados pelas criaturas terrestres
por fugir ao testemunho da verdade divina, nas tarefas que lhes são
próprias. 2 Os mordomos
da responsabilidade alegam excesso de deveres, os servidores da obediência
afirmam ausência de ensejo. Os que guardam possibilidades financeiras
montam guarda ao patrimônio amoedado, os que receberam a bênção da pobreza
de recursos monetários aconselham-se com a revolta. 3
Os moços declaram-se muito jovens para cultivar as realidades sublimes,
os mais idosos afirmam-se inúteis para servi-las. Os casados reclamam
quanto à família, os solteiros queixam-se da ausência dela. Dizem os
doentes que não podem, comentam os sãos que não precisam. Raros companheiros
encarnados conseguem viver sem a contradição.
4 O senhor Bacelar parecia
disposto a prosseguir, mas as duas jovens foram buscá-lo, a ele e Aniceto,
em nome de Alfredo, a fim de providenciar solução de problema íntimo
que lhes dizia respeito.
André Luiz