1.
Enquanto o administrador se entregava a conversações educativas com
os numerosos subordinados, Aniceto chamou-nos a pequena construção isolada
e falou:
— Vejamos outro ensinamento.
2 Avançamos na direção de
algumas câmaras separadas.
Nosso instrutor abriu uma porta e vimos um louco, que parecia fundamente irritado. Fixou em nós o olhar inexpressivo e gritou estentoricamente. Aniceto, porém, adiantou-se e cumprimentou-o, atencioso:
— Como vai, Paulo?
3 As palavras, ao que senti,
emitiram certo fluxo magnético e o enfermo revelou profunda modificação.
Aquietou-se de súbito. Sentou-se mais calmo, embora trêmulo e espantadiço.
— Tem sentido melhoras, Paulo? — Perguntou nosso orientador, bondosamente, tocando-o no ombro.
4 Ao contato pessoal de Aniceto,
o doente mostrou algum raciocínio e respondeu:
— Vou melhorando, graças…
5 À vista da expressão reticenciosa,
o instrutor falou em tom firme, como se desejasse auxiliar-lhe a vontade
enfraquecida:
— Termine!
O doente fez enorme esforço e concluiu:
— G…r…a…ç…a…s a D…e…u…s.
6 Anotando-lhe o sofrimento
e a indecisão, lembrei dos enfermos das Câmaras, aos quais prestava
Narcisa ampla colaboração afetuosa. Percebendo-me as íntimas considerações,
disse o mentor esclarecido:
7 — Veem a diferença
entre os que dormem, os que estão loucos e os que sofrem? Em “Nosso
Lar”, não temos dos primeiros, e os que se encontram desequilibrados,
nos serviços da Regeneração, sentem, na maioria, angústias cruéis. 8
É necessário reconheçamos que os que gemem e sofrem, em qualquer parte,
estão melhorando. Toda lágrima sincera é bendito sintoma de renovação.
9 Os escarnecedores,
os ironistas e os perturbados que não registam a dor são mais dignos
de piedade, por permanecerem embotados em estranha rigidez de entendimento.
10 E, designando o enfermo
sob nossos olhos, afirmou:
— Paulo é um doente a caminho de melhora positiva. Ainda não possui a consciência exata da situação, mas já chora, já padece com as recordações do passado triste.
11 Recebi o esclarecimento
com atenção. Lembrei-me que, de fato, os doentes conduzidos pelos Samaritanos
a “Nosso Lar”, em serviço diário, eram grandes sofredores. Os que não
acusavam padecimentos atrozes, revelavam estranho pavor das sombras.
A única entidade que ali observara, com absoluta inconsciência da própria
miséria, fora a de pobre vampiro que não encontrara guarida nas Câmaras
de Retificação. ( † )
2.
Nosso instrutor, sem qualquer preocupação de transformar o doente em
cobaia, recomendou, afetuoso:
— Concentrem no Paulo a capacidade de visão!
2 Estimulado pela experiência
anterior, fixei nele todo o meu potencial de observação.
Aos poucos, caracterizou-se a meus olhos a sua tela mental, parecendo
formada em compacta sombra noturna. Com surpresa, divisei formas diversas
que se movimentavam. 3
Vários vultos de mulher ali surgiam, despertando-me enorme admiração.
Entre eles, reparei o de Ismália como que doente, enfraquecida, ansiosa.
4 Alguns homens passavam,
igualmente, mostrando desesperação, e notei, nessas imagens, o próprio
Alfredo a evidenciar cansaço e extrema velhice prematura. 5
Vozes misteriosas se faziam ouvir. Sobre Paulo choviam maldições e blasfêmias.
As mulheres pareciam acusá-lo, clamorosamente; os homens davam ideia
de perseguidores ferozes, ocultos no mundo interior daquele enfermo
estranho. 6 Observando,
porém, que os vultos de Ismália e Alfredo se movimentavam naquele painel
escuro, não pude sofrear a curiosidade e interrompi o minucioso exame,
voltando a conversar com o nosso orientador, perguntando:
— Como explicar o fenômeno? Estou assombrado!
7 Antes, porém, que pudesse
expressar maiormente o espanto que me dominara, Aniceto ajuntou:
— Já sei. Admira-se da presença de Ismália e do seu marido nas reminiscências do enfermo.
8 E, ante a minha perplexidade,
continuou:
— Lembram-se da história de Alfredo? Temos diante de nós o falso amigo
que lhe arruinou o lar. 9
Paulo, contudo, não somente cometeu a ingratidão, como envenenou o espírito
doutras senhoras, traiu outros amigos e destruiu a alegria e a paz doutros
santuários domésticos. 10
Observando Ismália aflita e Alfredo desesperado, nas recordações dele,
vemos as imagens criadas pelo caluniador, para seus próprios olhos.
11 Nossos amigos
deste Posto evolutiram, transpuseram a fronteira da mágoa, escaparam
aos monstros do ódio, vestem-se hoje de luz; no entanto, Paulo os vê
como imagina, para escarmento de suas culpas. 12
O criminoso nunca consegue fugir da verdadeira justiça universal, porque
carrega o crime cometido, em qualquer parte. 13
Tanto nos Círculos carnais, como aqui, a paisagem real do Espírito é
a do campo interior. Viveremos, de fato, com as criações mais íntimas
de nossa alma.
14 Reparando-me a dificuldade
para compreender de pronto, Aniceto prosseguiu, depois de pequeno intervalo:
— Para melhor elucidação, recordemos a crucificação do Mestre Divino.
15 Sabemos que Jesus
penetrou na glória sublime logo após a suprema dor do Calvário; entretanto,
estamos ainda a vê-Lo frequentemente pendurado na cruz, martirizado
pelos nossos erros, flagelado pelos nossos açoites, porque a visão interior
a isso nos compele. 16
A condenação do Mestre foi um crime coletivo e esse crime estará conosco
até ao dia em que nos vestirmos na divina luz da redenção.
17 O esclarecimento não poderia
ser mais lúcido. Sentia-me diante de nobre revelação.
— O dever possui as bênçãos da confiança, mas a dívida tem os fantasmas
da cobrança, — tornou o generoso mentor, com grave acento.
3.
Readquirindo a serenidade, interroguei:
— Mas Paulo veio ter casualmente a este Posto?
— Não, — respondeu Aniceto, atencioso; — foi trazido pelo próprio Alfredo,
que se sentiu necessitado de disciplinar o coração. 2
Nosso amigo, que hoje dirige esta casa de amor, desprendeu-se do mundo,
sob intensa vibração de ódio e desesperação. Sofreu muitíssimo nos primeiros
tempos, embora nunca fosse abandonado pela dedicação da abnegada companheira.
3 Alfredo, todavia,
não pôde ver Ismália enquanto não se desvencilhou das baixas manifestações
do rancor. Socorrido em “Campo da Paz”, compreendeu as próprias necessidades.
4 Tão logo adquiriu
algum mérito, intercedeu pelo amigo infiel, buscou-o em recanto abismal,
e tão nobremente se dedicou ao aperfeiçoamento de si mesmo, que conquistou
a posição de administrador de um Posto de Socorro. 5
Trouxe o tutelado em sua companhia e trata-o como irmão, atualmente.
6 Não julguem que o
marido de Ismália conseguisse essa vitória espiritual tão somente pelo
fato de desejá-la. Ele desejou-a, procurou-a, alimentou-a, e, agora,
permanece na realização. 7
Há muitos anos conversa com Paulo, diariamente. Nos primeiros tempos,
aproximava-se do enfermo, como necessitado de reconciliação; depois,
como pessoa caridosa; mais tarde adquiriu entendimento, comparando situações;
em seguida, sentiu piedade; logo após, experimentou simpatia e, presentemente,
conquistou a verdadeira fraternidade, o amor sublime de irmão pelo ex-inimigo.
8 Fazendo pequena pausa, voltou
a dizer, espirituosamente:
— Como veem, o ensinamento de Jesus, quanto ao “batei e abrir-se-vos-á”, ( † )
é muito extenso. 9
No Plano da carne, insistimos à porta das coisas exteriores, procurando
facilidades e vantagens; mas, aqui, temos de bater à porta de nós mesmos,
para encontrar a virtude e a verdadeira iluminação.
10 Vicente, que se conservara calado, até então, indagou:
— Paulo, todavia, permanecerá aqui, indefinidamente?
11 Nosso instrutor fez um gesto
significativo e concluiu:
— Voltará breve à Terra. Ismália tem feito por êle generosas intercessões
e não deseja que ele, ao retomar a razão plena, se sinta humilhado,
com o benefício das próprias vítimas. 12
Uma das irmãs, por ele caluniadas no mundo, já voltou ao Círculo carnal,
e a abnegada esposa de Alfredo pediu-lhe que recebesse Paulo como filho,
tão logo seja oportuno.
André Luiz