1.
Notei que o trabalho no Posto se desenvolvia em ambiente da mais bela
camaradagem, não obstante o respeito natural às noções de hierarquia.
2 Enquanto palestrávamos animadamente,
Ismália recebia servidoras numerosas, em atitude verdadeiramente maternal,
embora muitas mostrassem o rosto envelhecido, parecendo avós da esposa
do administrador. 3
Aniceto nos ministrava lições de vulto, extraídas de circunstâncias
aparentemente inexpressivas, e Alfredo recebia os colaboradores de todas
as condições, não só com espírito de solidariedade, mas também de imenso
afeto. Ria-se carinhosamente ou fornecia pareceres, sem o mínimo gesto
de impaciência ou irritação.
4 Aquele clima de concórdia
fazia-me enorme bem. Tudo respirava ordem e compreensão, bondade e harmonia.
A atitude paterna do administrador do Posto de Socorro, expressa em
energia e amizade, organização e entendimento, atraía-me com força.
Pedi permissão ao nosso orientador para acompanhar os esclarecimentos feitos àqueles numerosos cooperadores.
5 Aproximei-me, impressionado.
Nesse momento, um colaborador de maneiras simpáticas dirigia-lhe a palavra, com grande interesse. Tratava-se de um velhinho de humilde expressão, que lhe falava com mostras de justo respeito.
— E o senhor recebeu as notícias?
— Sim, Alonso, — atendia o chefe, sem afetação, — nossos mensageiros cientificaram-me
dos detalhes mínimos. Sua viúva continua muitíssimo acabrunhada, os
filhinhos gozam saúde, mas permanecem na mesma ansiedade por motivo
de sua ausência.
6 O velho, que parecia muito
bondoso, esboçou um gesto de conformação e acrescentou:
— Tenho sentido tanta falta deles!
Nos olhos transparecia a tristeza resignada, de quem deseja alguma coisa, medindo a extensão dos obstáculos.
— Você, porém, Alonso, — continuou Alfredo, comovido, — não deve angustiar-se.
Sei que está trabalhando agora pelo futuro da família. 7
Na Terra, na qualidade de pais, conseguimos movimentar muitas providências
a favor dos filhos; entretanto, aqui, podemos realizar certas medidas
em benefício deles, com maior segurança. Nem sempre agimos no mundo
com a necessária visão; mas aqui é possível sentir, de mais perto, os
interesses imperecíveis daqueles que amamos. 8
O sentimento elevado é sempre um caminho reto para nossa alma; todavia,
não podemos dizer o mesmo, a respeito do sentimentalismo cultivado no
Círculo da Crosta. É preciso que você tenha muito cuidado em não desorganizar
a mente. 9 A saudade
que fere, impedindo-nos atender à Vontade Divina, não é louvável nem
útil. É enfermidade do coração, precipitando-nos em abismos insondáveis
do pensamento.
10 Alonso deixou de sorrir,
mostrou os olhos rasos d’água e falou em voz súplice:
— Reconheço, senhor Alfredo, a oportunidade de suas observações. Graças
a Jesus, venho melhorando minha vida mental, nos deveres novos que me
concedeu e, de fato, sinto-me renovado espiritualmente. 11
Sei que sua palavra não me advertiria sem razão, mas, ousaria pedir
licença para visitar a esposa e os filhos. À noite, quando me concentro
nas preces habituais, sinto, em torno de mim, os seus pensamentos. Esses
pensamentos me penetram fundo, atraindo-me toda a atenção para a Terra.
12 Às vezes, consigo
repousar um pouco, mas com muita dificuldade. Sei que a esposa e os
filhos estão chamando, dolorosamente, por mim. Esta certeza me perturba
de algum modo. Não tenho sentido a mesma firmeza para o trabalho diário
e desejaria remediar a situação. 13
Reconheço que minhas obrigações, presentemente, são outras e que devo
estar conformado; no entanto, confesso que minha luta espiritual tem
sido bem grande. Estou certo de que me perdoará a fraqueza. Que chefe
de família não se sentiria atormentado, ouvindo angustiosos apelos do
lar, sem meios de atender, como se faz indispensável?
14 E, revelando o enorme anseio
d’alma, enxugou os olhos e prosseguiu:
— Quisera rogar aos meus calma e coragem, esclarecendo que meu coração inda
é frágil e necessita do amparo deles; estimaria pedir-lhes esse auxílio
para que eu possa atender às atuais obrigações, sem desfalecimentos.
15 Quem sabe me concederá,
agora, a permissão precisa? Temos bem perto de nossa casa um grupo de
amigos espiritistas… talvez não me fosse difícil transmitir algumas
palavras, breves que fossem, tentando tranquilizar a esposa e os filhos!…
16 Alfredo, imperturbável,
não respondeu negativamente. Parecia compreender toda a inquietação
do servidor simpático e humilde. Observei-lhe no olhar, muito lúcido,
o desejo sincero de atender, e, com extrema simpatia por sua conduta
generosa, ouvi-o ponderar:
17 — Não será impossível
satisfaze-lo, meu caro Alonso! Nossos emissários poderão conduzi-lo,
nas viagens comuns; entretanto, creia que, como amigo, ficaria preocupado
com você, pela manutenção de sua paz. 18
Não posso abusar da autoridade e sei que cada um tem a experiência que
lhe cabe, mas creio seja de seu vital interesse o fortalecimento do
coração. É imprescindível conformarmo-nos com os desígnios do Eterno.
19 Você e sua mulher
não ficariam separados se não necessitassem de experiências novas. As
dificuldades que ela vem amargando com a sua ausência, sofre-as também
você com a separação dela. 20
Tenho a impressão, Alonso, de que Deus nos deixa sozinhos, por vezes,
a fim de refazermos o aprendizado, melhorando o coração. A soledade,
porém, quando aproveitada pela alma, precede o sublime reencontro. 21
Além disso, você não deve ignorar que os filhos pertencem a Deus, que
cada um deles precisa definir responsabilidades e cogitar da própria
realização. Por enquanto, vivem chorosos, desalentados. A revolta lhes
visita a alma invigilante. 22
Estabeleceu-se a desordem doméstica, depois da sua vinda. Entretanto,
que fazer senão pedir para eles e para nós a bênção do Eterno? Precisam
eles da conformação com a realidade justa e você já lhes deu o
que era razoável e necessita, igualmente, evolver e aperfeiçoar-se na
senda nova a que fomos chamados. 23
Em que ficaria, meu caro, se permitisse a invasão total do sentimentalismo
doentio em seus pensamentos? Tão dedicado é você à família do sangue,
que, por agora, não o sinto com bastante preparo a tudo ver no antigo
lar, sem sofrer desastrosamente. 24
Há tempos, autorizei a visita de dois colegas nossos à Esfera da Crosta,
a fim de reverem as viúvas e abraçarem de novo os filhinhos; mas foram
tão violentamente surpreendidos pela situação, que não puderam voltar
aos seus deveres aqui, lá ficando agarrados ao ninho que haviam abandonado.
25 Não vigiaram o
coração, convenientemente. Ouviram, em demasia, o pranto dos familiares
terrestres, envolveram-se nos pesados fluidos do clima doméstico e,
passada a semana de licença, não conseguiram erguer-se para o regresso.
Estavam como pássaros aprisionados pelo visgo das tentações. 26
Os encarregados do noticiário particular voltaram ao Posto sem eles,
com grande surpresa para mim. E, francamente, não sei quando poderão
reassumir as funções que lhes cabem. O prejuízo de ambos é muito grande.
Depois de pequena pausa, Alfredo rematou:
— Os voos de grande altura pedem asas fortes.
27 Alonso, que ouvia
de olhos arregalados, considerou resignado:
— Desisto do pedido. O senhor tem razão. O administrador abraçou-o e murmurou:
— Deus ilumine o seu entendimento.
28 Admiradíssimo, reparei
que outros colaboradores se aproximavam, rogando esclarecimentos, pareceres,
edificando-me no exemplo do administrador amigo, que respondia em voz
firme e afetuosa, demonstrando interesse de irmão.
André Luiz