1.
Inúmeros servidores acompanhavam-nos ao serviço. Movimentavam-se carregadores
sem conta. 2 Conduziam
grandes botijas d’água, caldeirões de sopa, vasos de substância medicamentosa,
em galeotas diversas.
3 Mais alguns passos e notei
que centenas de entidades se reuniam em vastos albergues, olhos vagueantes
e rostos sombrios, parecendo uma assembleia de loucos em manicômio de
amplas proporções.
4 Alfredo aconselhou umas
tantas providências de serviço à maioria dos técnicos do sopro curativo,
os quais se desviaram de nós, rumo às edificações situadas em zona diferente.
5 Gentilmente
explicava-nos que os benfeitores de “Campo da Paz” localizavam, ali, grande
número de Espíritos enfermos, mais desequilibrados que propriamente
perversos. 6 Os doentes
que tínhamos sob os olhos permaneciam em melhores condições. Já se locomoviam
e muitos deles já conversavam, embora o desequilíbrio que lhes assinalava
as palavras e pensamentos.
2.
Esclarecia-nos sobre as múltiplas obrigações do trabalho de rotina,
quando algumas entidades nos abordaram, respeitosas:
2 — Senhor Alfredo,
— disse um velho de barbas muito alvas, — estou aguardando o resultado
da minha petição. Em que ficamos, quanto às minhas terras e os escravos?
Paguei bom preço ao Carmo Garcia. 3
Sabe o senhor que venho sendo perseguido durante muitos anos, e não
posso perder mais tempo. Quando volto para casa? Creio esteja o senhor
ciente da necessidade de eu voltar ao seio dos meus. Esperam-me a mulher
e os filhos.
4 Como excelente médico da
alma, Alfredo prestou a maior atenção e respondeu, como se estivesse
tratando com pessoa de bom senso:
— Sim, Malaquias, você reclama com razão, mas sua saúde não permite
o regresso apressado. Você sabe que sua esposa, Dona Sinhá, pediu para que você fosse aqui tratado convenientemente. Creio que ela deve estar muito tranquila
a seu respeito. 5 Suas
ideias, porém, meu amigo, não estão ainda bem coordenadas. Temos alguma
coisa mais a fazer. Porque preocupar-se tanto assim, com as terras e
os escravos? Primeiramente a saúde, Malaquias; não esqueça a saúde!
6 O velho sorriu, como o doente
apoiado na firmeza e no otimismo do médico.
— Reconheço que as vossas observações são justas, mas meus filhos não se movem sem mim, são preguiçosos e necessitam da minha presença.
7 Mas, doutrinando sutilmente
o pobre velhinho, o administrador objetou:
— Entretanto, donde vieram os filhos para os seus braços paternos? Não vieram das mãos de Deus?
— Sim, sim… — Afirmava o ancião, trêmulo e satisfeito.
8 — Pois é isso, Malaquias,
chegam instantes na vida, em que precisamos devolver a Deus o que a
Ele pertence. Além do mais, seus filhos são também responsáveis, e,
se forem ociosos, responderão pelos males que criarem em torno de si
mesmos. Por agora, é indispensável que você se refaça, aclare as ideias
e sossegue o coração.
3.
O velho sorriu, confortado, mas, antes que pudesse falar de novo, um
cavalheiro, denotando nobre aprumo, adiantou-se, exclamando:
— E a solução do meu processo, senhor Alfredo? 2
Sinto-me prejudicado pelos parentes de má fé. Minha parte na herança
dos avós é cobiçada pelos primos. Segundo já lhe fiz ver, meu quinhão
é superior aos demais. 3
Soube, todavia, que o Visconde de Cairu interpôs toda a sua influência
contra mim. Ninguém ignora tratar-se de um grande velhaco. Que não poderá
ele fazer com as artimanhas políticas? Está mal informado a meu respeito.
4 O senhor enviou meu
pedido ao Imperador?
— Já expedi a mensagem, — esclareceu Alfredo com carinho fraternal, — o Imperador
certamente levará em conta a solicitação.
— Entretanto, a demora é muito grande!… — Falou o cavalheiro, impaciente, como se estivesse diante de um subordinado vulgar.
5 — Mas, meu caro
Aristarco, — respondeu o administrador, muito calmo, — acredito que
você está sendo experimentado para conhecer a grandeza da herança divina.
Que valem os patrimônios terrestres, ante os patrimônios imperecíveis?
6 Não pense no que
tem perdido; medite nos bens sublimes que poderá alcançar, diante da
Vida Eterna. Esqueça os primos ambiciosos e o Visconde que não o compreendeu.
Terão eles de deixar quanto possuem, no campo transitório, a fim de
prestarem contas à Divindade. Nunca pensou nisto?
7 Aristarco pareceu perder,
por momentos, a inquietação, sorriu francamente e respondeu:
— É verdade! Os tratantes morrerão…
4.
Uma senhora, mostrando-se aflita, pôs-se à nossa frente e interpelou,
altiva:
— Senhor Alfredo, peço-lhe não me retenha aqui. 2
Meu marido é nosso próprio adversário. Prometeu perseguir as filhas,
tão logo me ausentasse de casa. Aqui permanecendo, estou certa de que
ele nos dissipará os bens, desmoralizar-nos-á o nome. Por favor, autorize
o meu regresso. 3 O
coração me diz que as filhinhas estão desesperadas. Convenço-me, cada
vez mais, de que a minha moléstia teve origem neste estado de coisas…
4 — Já sei, minha
irmã, — respondeu o nosso amigo com a mesma solicitude; — no entanto,
que adiantaria regressar, tão fortemente atormentada? Não será melhor
curar-se, tranquilizar o espírito para ajudar as filhinhas com eficiência?
5 — Mas, nem sequer
sei onde estou, — reclamou a pobre senhora, torcendo as mãos, — creio
me tenham trazido ao fim do mundo, para tratamento de uma simples perda
de sentidos!
6 — Todavia, ninguém
a maltrata, — disse o interlocutor, bondosamente, — e seu caso não é
tão simples como parece. Tenha calma. Os laços consanguíneos são edificantes,
mas, acima deles, vibra a família universal. 7
Há criaturas suportando fardos muito mais pesados que o seu. Aprenda,
quanto esteja em suas possibilidades, a desfazer-se de aquisições passageiras,
para ganhar os eternos bens.
8 A infeliz não sorriu como
os outros. Fechando-se em sombria catadura, afastou-se pesadamente,
olhos fulgurantes de cólera, como se a mente estivesse cravada muito
longe, incapaz de qualquer compreensão.
9 Adiantaram-se outros enfermos,
mas o administrador falou em voz alta:
— Não posso atender a todos no momento. Depois de amanhã, serão recebidos para explicações.
5.
E, voltando-se para nós, esclareceu a sorrir:
— No Círculo carnal, seriam todos absolutamente normais; no entanto,
aqui, são verdadeiros loucos. 2
São desencarnados que por muito tempo se agarraram aos problemas inferiores.
Reclamam providências, sem falar no ensejo de iluminação que menosprezaram,
acusam os outros, sem relacionarem os próprios erros. 3
Procurei ouvi-los por lhes dar uma ideia do nosso trabalho, no setor
dos que se desequilibram mentalmente por excesso de centralização em
propósitos inferiores. 4
Não é crime interessar-se alguém pelas atividades rurais, pela recepção
de uma herança, pelo bem-estar da família; mas, no fundo, o velhinho
que reclama terras e escravos nunca pensou senão em tirania no campo;
o cavalheiro, que aguarda a herança, deseja lesar os primos; e a senhora,
que se revelou tão interessada pelo ambiente doméstico, desencarnou
quando pretendia envenenar o marido, às ocultas. 5
Conheço-lhes os processos, um a um. Acordaram de longo sono, na inconsciência,
e julgam-se ainda encarnados, supondo igualmente que podem dissimular
as pretensões criminosas.
6 Eu estava assombrado. Expressando
minha profunda admiração, perguntei:
— Esses doentes demoram-se aqui? Como alcançaram o Posto?
7 Gentil, como sempre, Alfredo
respondeu:
— Foram recolhidos em pior estado. Já estiveram em pesado sono durante muito tempo e vão readquirindo a memória, gradativamente, até que possam ser encaminhados aos Institutos Magnéticos de “Campo da Paz”, a fim de receberem maiores auxílios e necessários esclarecimentos.
André Luiz