1.
Seguimos através de longas filas de arvoredo acolhedor, rumo às vastas
edificações que obedeciam a linhas arquitetônicas singulares.
2 Sem que eu pudesse explicar
o fenômeno, as luzes diminuíam progressivamente. Que teria acontecido?
Vicente e eu nos entreolhamos, assustados. Alfredo, Aniceto e os demais,
todavia, caminhavam sem surpresa. A serenidade deles tranquilizava-me
o íntimo, embora o espanto insofreável.
3 Mais alguns passos, atingimos
os pavilhões diferentes, que se estendiam em área superior a três quilômetros,
pelos meus cálculos. Lá dentro, contudo, as sombras se fizeram mais
densas. Conseguia distinguir, vagamente, os quadros interiores, observando
que se tratava, a meu ver, de espaçosas enfermarias com teto sólido,
mas semi-abertas ao longo das paredes altas, dando livre passagem ao
ar.
4 Dezenas de operários, devotados
e operosos, seguiam-nos em absoluto silêncio.
Alfredo era o único a falar, notando-se, contudo, que se fizera extremamente discreto nas palavras.
5 Tudo isso me dava a impressão
de haver penetrado um cemitério escuro, onde os visitantes fossem obrigados
a guardar todo o respeito aos mortos.
6 Com estranheza, notei que
um dos servidores entregara ao chefe do Posto pequenina máquina, que
Alfredo nos deu a conhecer gentilmente, explicando:
— Este é o nosso aparelho de sinalização luminosa. Estamos no centro dos pavilhões a que se recolhem irmãos ainda adormecidos. Temos aqui, presentemente, quase dois mil.
7 Os cooperadores numerosos
dirigiam-se em ordem para a zona de serviços que lhes competiam.
Depois de pequena pausa, falou o administrador com firmeza:
— Iniciemos o trabalho de assistência.
2.
Ao primeiro sinal luminoso de Alfredo, acenderam-se numerosas lâmpadas
elétricas e, então, dominando, a custo, a primeira impressão de horror,
vi extensas filas de leitos ao rés do chão, ocupados todos por pessoas
mergulhadas em profundo sono. 2
Muitos tinham o semblante horrendo. Eram muito poucos os que traziam
as pálpebras cerradas, parecendo tranquilos. Em quase todos, estampavam-se-lhes
nos olhos, aparentemente vitrificados, o extremo pavor e o doloroso
desespero da morte. Cadavérica palidez cobria-lhes a face.
3 Recordando a literatura
antiga, pensei nos velhos túmulos egípcios. Tínhamos, diante de nós,
centenas de múmias perfeitas. Raríssimos pareciam dormir um sono natural.
4 Aproximando-se de nós outros,
Alfredo falou a Aniceto, em particular:
— Infelizmente, não podemos atender a todos.
— Porquê? — Indagou nosso orientador, comovido.
5 — Estamos aguardando pessoal
adestrado. Tenho aqui a colaboração de oitenta auxiliares para este
gênero de serviço; entretanto, não pode cada qual atender a mais de
cinco doentes de uma só vez. À vista disso, dos nossos mil novecentos
e oitenta abrigados, separei os quatrocentos mais suscetíveis de próximo
despertar, a fim de submetê-los ao tratamento intensivo.
6 — E os demais?
— Recebem alimento e medicação mais densos uma vez por dia.
Aniceto calou-se, pensativo.
3.
Profundamente tocado pelo que via, inclinei-me instintivamente para
o abrigado mais próximo, tentando examinar-lhe o estado fisiológico.
2 Identifiquei o calor
orgânico, a pulsação regular e os movimentos respiratórios, embora verificasse
a extrema rigidez dos membros, como que mergulhados em imobilidade cataléptica.
3 Indescritível impressão
apoderou-se de mim. Levantei-me assustado, dirigi-me a Aniceto com a
máxima discrição, e interroguei:
— Explicai-me, por Deus! Que vemos aqui? Estamos, acaso, na moradia da morte, depois da morte?
4 O instrutor sorriu, complacente,
e explicou em voz quase imperceptível:
— Sim, André, este sono é, verdadeiramente, avançada imagem da morte.
Aqui permanecem, com a bênção do abrigo, alguns milhões dos nossos irmãos que ainda dormem. 5
São as criaturas que nunca se entregaram ao bem ativo e renovador, em
torno de si, e mormente os que acreditaram convictamente na morte, como
sendo o nada, o fim de tudo, o sono eterno. 6
A crença na vida superior é atividade incessante da alma. A ferrugem
ataca a enxada ociosa. O entorpecimento invade o Espírito vazio de ideal
criador. 7 Os que,
nos Círculos carnais, homens e mulheres, creem na vida eterna, ainda
que não sejam fundamentalmente cristãos, estão desenvolvendo faculdades
de movimentação espiritual e podem penetrar as Esferas extraterrenas
em estado animador, pelo menos quanto à locomoção e juízo mais ou menos
exato. 8 No entanto,
as criaturas que perseveram em negação deliberada e absoluta, não obstante,
por vezes, filiadas a cultos externos de atividade religiosa, que nada
veem além da carne nem desejam qualquer conhecimento espiritual, são
verdadeiramente infelizes. 9
Muitos penetram nossas regiões de serviço, como embriões de vida, na
câmara da Natureza sempre divina. Um amigo nosso costuma designá-los
por fetos da espiritualidade; entretanto, a meu ver, seriam felizes
se estivessem nessa condição inicial. 10
Temos a certeza, porém, de que muitos se negaram ao contato da fé, absolutamente
por indiferença criminosa aos desígnios do Eterno Pai. Dormem, porque
estão magnetizados pelas próprias concepções negativistas; permanecem
paralíticos, porque preferiram a rigidez ao entendimento; mas dia virá
em que deverão levantar-se e pagar os débitos contraídos. 11
Eis porque os considero sofredores. Primeiramente, demoram no sono em
que acreditaram, mais tarde acordam; porém, a maioria não pode fugir
à enfermidade e à perturbação, como acontece aos irmãos dementados,
que vimos inda há pouco.
12 Grande o meu assombro. Como
Vicente se aproximasse, também, para ouvi-lo, falou Aniceto, esclarecendo
a nós ambos:
— A fé sincera é ginástica do Espírito. Quem não a exercita de algum modo,
na Terra, preferindo deliberadamente a negação injustificável, encontrar-se-á
mais tarde sem movimento. 13
Semelhantes criaturas necessitam de sono, de profundo repouso, até que
despertem para o exame das responsabilidades que a vida traduz.
4.
Observando que o nosso orientador se esquivava a comentários longos,
para que pudéssemos seguir, de mais perto, os trabalhos de assistência,
calei as muitas indagações que me escaldavam a mente.
2 Com exceção de algumas
senhoras que permaneciam junto de Ismália, todos os servidores se mantinham
em posição de vigilância, ao pé dos grupos mumificados. 3
A luz artificial iluminava os leitos, que se perdiam de vista, mas observei
que nenhum dos albergados reagia à intensa claridade que se fizera.
Continuavam rígidos, cadavéricos, prostrados.
4 Notei, então, que Alfredo
começou a mover o aparelho de sinalização, para emitir as ordens de
serviço. Cada sinal determinava operação diferente.
5 Vi os servidores
do Posto distribuírem pequenas porções de alimento líquido e medicação
bucal, em profundo silêncio. Em seguida, forneceram reduzidas quantidades
de água efluviada aos infelizes, com exceção, porém, de muitos que pareciam
preparados a receber, tão somente, caldo e remédio. 6
Dois terços dos quatrocentos abrigados em tratamento receberam passes
magnéticos. Alguns poucos receberam aplicações do sopro curador.
7 Todos os movimentos
do trabalho eram assinalados pela sinalização luminosa, partida das
mãos do administrador, que parecia interessado na manutenção do máximo
silêncio. 8 Impressionado
com o que via, perguntei ao orientador, em voz baixa, a razão de alguns
enfermos não terem sido beneficiados com a água e com o socorro de forças
novas, através do passe e do sopro vivificante.
9 Aniceto, todo bondade, inclinou-se
aos meus ouvidos, com a ternura de um pai ansioso por tranquilizar o
filhinho inquieto, e falou:
— Cada um na vida, meu caro André, tem a necessidade que lhe é peculiar. Aqui, compreendemos com amplitude esse imperativo da Natureza.
André Luiz