1.
Descemos as escadarias e, em frente dos muros altos, pude observar a
extensão das defesas do soberbo edifício. n Aquela construção grandiosa
era muito mais importante que a de qualquer castelo antigo, transformado
em fortaleza.
2 Novamente no exterior, podia
detalhar a visão panorâmica com mais exatidão. Reconhecia, agora, que
entráramos por um baluarte avançado, identificando a imponência da construção
majestosa. Apresentavam-se-me as linhas gerais com nitidez.
3 Impressionavam-me,
sobretudo, as fortificações. Via a torre de menagem, consagrada, por
certo, ao serviço de resistência; o baluarte agudo, elevando-se acima
dos fossos que deixavam transbordar a água corrente; a torre de vigia,
esbelta e alterosa. Observei o caminho da ronda, a cisterna, as seteiras
e, em seguida, as paliçadas e barbacãs, refletindo na complexidade de
todo aquele aparelhamento defensivo. 4
E as armas? Identificava-lhes a presença na maquinaria instalada ao
longo dos muros, copiando os pequenos canhões conhecidos na Terra. Entretanto,
vi com emoção, no cume da torre de vigia, a enorme bandeira de paz,
muito alva, tremulando ao vento como largo penacho de neve…
2.
O administrador percebeu a estranheza que se apossara de Vicente e de
mim.
— Já sei a impressão que a nossa defesa lhes causa, — disse Alfredo, detendo-se para explicar.
2 Fixando-nos com o olhar
muito lúcido, continuou:
— Naturalmente, não imaginavam necessárias tantas fortificações. Conforme
veem, nossa bandeira é de concórdia e harmonia; no entanto, é imprescindível
considerar que estamos em serviço que precisaremos defender, em qualquer
circunstância. Enquanto não imperar a lei universal do amor, é indispensável
persevere o reinado da justiça. 3
Nosso Posto está colocado, aqui, igualmente, como “ovelha em meio de
lobos”, e, embora não nos caiba efetuar o extermínio das feras, necessitamos
defender a obra do bem contra os assaltos indébitos. 4
As organizações dos nossos irmãos consagrados ao mal são vastíssimas.
Não admitam a hipótese de serem, todos eles, ignorantes ou inconscientes.
A maioria se constitui de perversos e criminosos. São entidades verdadeiramente
diabólicas. Não tenham disso qualquer dúvida.
5 — Deus meu! — Exclamou Vicente,
admirado, — mas porque se organizam deliberadamente para o mal? Não sabem,
porventura, que todos os patrimônios universais pertencem à Majestade
Divina? Não reconhecem o Soberano Poder?
6 — Ah! Meu amigo,
— falou Alfredo em tom grave, — fiz as mesmas perguntas quando aqui
cheguei pela primeira vez. As respostas que tive foram incisivas e concludentes.
7 Poderíamos, Vicente,
formular na Crosta as mesmas interrogações. Os criminosos que fazem
as vítimas da guerra, os exploradores da economia popular, os avarentos
misérrimos, os sedentos de injustificado predomínio e os vaidosos cheios
de fatuidade sabem, tão bem quanto os nossos adversários daqui, que
tudo pertence a Deus, que o homem é simples usufrutuário dos divinos
bens. 8 Não ignoram
que os antepassados foram chamados à verdade e a contas pela morte,
e que eles seguirão os mesmos caminhos; entretanto, atormentam-se na
Crosta como verdadeiros loucos, amontoando possibilidades para a ruína
e abusando das oportunidades mais santas. 9
Aqui se verifica a mesma coisa. Querem dominar antes de se dominarem,
exigem antes de dar e entram em perene conflito com o espírito divino
da lei. Estabelecido o duelo entre a fantasia deles e a verdade do Pai,
resistem às corrigendas do Senhor e transformam-se, esses desventurados,
em verdadeiros gênios da sombra, até que, um dia, se decidam a novos
rumos.
10 Intrigado com as profundas
observações, perguntei:
— Mas, como explicar as bases de semelhante atitude? Na Terra, compreendemos certos enganos, mas aqui…
11 O generoso interlocutor
não me deixou terminar e prosseguiu:
— Na Crosta, nossos irmãos menos felizes lutam pela dominação econômica,
pelas paixões desordenadas, pela hegemonia de falsos princípios. Nestas
zonas imediatas à mente terrestre, temos tudo isso em identidade de
condições. 12 Entre
as entidades perversas e ignorantes, há cooperativas para o mal, sistemas
econômicos de natureza feudalista, baixa exploração de certas forças
da Natureza, vaidades tirânicas, difusão de mentiras, escravização dos
que se enfraquecem pela invigilância, doloroso cativeiro dos Espíritos
falidos e imprevidentes, paixões talvez mais desordenadas que as da
Terra, inquietações sentimentais, terríveis desequilíbrios da mente,
angustiosos desvios do sentimento. 13
Em todo o lugar, meu amigo, as quedas espirituais, perante o Senhor,
são sempre as mesmas, embora variem de intensidade e coloração.
3.
— Mas… e as armas? — Perguntei, — acaso são utilizadas?
— Como não? — Disse Alfredo, pressuroso, — não temos balas de aço, mas temos
projetis elétricos. Naturalmente, a ninguém atacaremos. Nossa tarefa
é de socorro e não de extermínio.
2 — No entanto, —
aduzi, sob forte impressão, — qual o efeito desses projetis?
— Assustam terrivelmente, — respondeu ele, sorrindo, — e, sobretudo,
demonstram as possibilidades de uma defesa que ultrapassa a ofensiva.
3 — Mas apenas assustam? —
Tornei a interrogar.
Alfredo sorriu mais significativamente e acrescentou:
— Poderiam causar a impressão de morte.
— Que diz! — Exclamei com insofreável espanto.
4 O administrador meditou
alguns instantes, e, ponderando, talvez, a gravidade dos esclarecimentos,
obtemperou:
— Meu amigo! Meu amigo! Se já não estamos na carne, busquemos desencarnar
também os nossos pensamentos. 5
As criaturas que se agarram, aqui, às impressões físicas, estão sempre
criando densidade para os seus veículos de manifestação, da mesma forma
que os Espíritos dedicados à região superior estão sempre purificando
e elevando esses mesmos veículos. 6
Nossos projetis, portanto, expulsam os inimigos do bem através de vibrações
do medo, mas poderiam causar a ilusão da morte, atuando sobre o corpo
denso dos nossos semelhantes menos adiantados no caminho da vida. 7
A morte física, na Terra, não é igualmente pura impressão? Ninguém desaparece.
O fenômeno é apenas de invisibilidade ou, por vezes, de ausência. Quanto
à responsabilidade dos que matam, isto é outra coisa. 8
E além desta observação, que é da alçada da Justiça Divina, temos a
considerar, igualmente, que, nesta Esfera, o corpo denso modificado
pode ressurgir todos os dias, pela matéria mental destinada à produção
dele, enquanto que, para obter o corpo físico, almas há que trabalham,
por vezes, durante séculos…
Vicente e eu caláramos, estupefatos.
4.
Alfredo sorriu serenamente e perguntou, bem humorado:
— Vocês conhecem a lenda hindu da serpente e do santo?
2 Ante a nossa expressão negativa,
o administrador continuou:
— Contam as tradições populares da Índia que existia uma serpente venenosa
em certo campo. Ninguém se aventurava a passar por lá, receando-lhe
o assalto. Mas um santo homem, a serviço de Deus, buscou a região, mais
confiado no Senhor que em si mesmo. 3
A serpente o atacou, desrespeitosa. Ele dominou-a, porém, com o olhar
sereno, e falou: — Minha irmã, é da lei que não façamos mal a ninguém.
A víbora recolheu-se, envergonhada. 4
Continuou o sábio o seu caminho e a serpente modificou-se completamente.
Procurou os lugares habitados pelo homem, como desejosa de reparar os
antigos crimes. Mostrou-se integralmente pacífica, mas, desde então,
começaram a abusar dela. 5
Quando lhe identificaram a submissão absoluta, homens, mulheres e crianças
davam-lhe pedradas. A infeliz recolheu-se à toca, desalentada. Vivia
aflita, medrosa, desanimada. 6
Eis, porém, que o santo voltou pelo mesmo caminho e deliberou visitá-la.
Espantou-se, observando tamanha ruína. A serpente contou-lhe, então,
a história amargurada. Desejava ser boa, afável e carinhosa, mas as
criaturas perseguiam-na e apedrejavam-na. 7
O sábio pensou, pensou e respondeu após ouvi-la: — Mas, minha irmã,
houve engano de tua parte. Aconselhei-te a não morderes ninguém, a não
praticares o assassínio e a perseguição, mas não te disse que evitasses
de assustar os maus. 8
Não ataques as criaturas de Deus, nossas irmãs no mesmo caminho da vida,
mas defende a tua cooperação na obra do Senhor. Não mordas, nem firas,
mas é preciso manter o perverso a distância, mostrando-lhe os teus dentes
e emitindo os teus silvos.
9 Nesse momento, Aniceto sorriu
de maneira expressiva.
O administrador fez longa pausa e concluiu:
— Creio que a fábula dispensa comentário.
André Luiz
[1] Vide: Algumas referências ao uso de itens materiais no Mundo Invisível do Plano Espiritual, como edificações providas dos mais diversos objetos, aparelhos, veículos de transporte, etc.