1.
A volta de Ismália ao círculo da conversação impediu o prosseguimento
do assunto.
Aproveitando, talvez, a oportunidade, Aniceto perguntou ao administrador:
— Que me diz da continuação de nossa viagem? Estimaríamos alcançar, ainda hoje, as Esferas da Crosta.
2 Endereçou-nos Alfredo significativo olhar e
falou:
— Não me sinto com o direito de alterar-lhes o plano de serviço, mas
seria conveniente pernoitarem aqui. Nossos aparelhos assinalam aproximação
de grande tempestade magnética, ainda para hoje. 3
Sangrentas batalhas estão sendo travadas na superfície do globo. Os
que não se encontram nas linhas de fogo, permanecem nas linhas da palavra
e do pensamento. Quem não luta nas ações bélicas, está no combate das
ideias, comentando a situação. Reduzido número de homens e mulheres
continuam cultivando a espiritualidade superior. 4
É natural, portanto, que se intensifiquem, ao longo da Crosta, espessas
nuvens de resíduos mentais dos encarnados invigilantes, multiplicando
as tormentas destruidoras.
2.
Aniceto escutava com atenção.
— Não me preocupo com sua pessoa, — continuou Alfredo, dirigindo-se de maneira
particular ao nosso instrutor, — mas estes dois amigos, penso, seriam
desagradavelmente surpreendidos.
— Tem razão, — concordou Aniceto.
2 E, esboçando significativa
expressão fisionômica, prosseguiu:
— Avalio o sacrifício dos nossos companheiros espirituais, nos trabalhos de preservação da saúde humana.
— São grandes servidores, — disse o senhor do castelo. — De quando em
quando, observo-lhes, pessoalmente, os núcleos de atividade santa. 3
A Humanidade parece preferir a condição de eterna criança. Faz e desfaz
os patrimônios da civilização, como se brincasse com bonecas. Nossos
amigos suportam pesados fardos de serviço para que as tormentas magnéticas,
invisíveis ao olhar humano, não disseminem vibrações mortíferas, a se
traduzirem pela dilatação de penúrias da guerra e por epidemias sem
conta. 4 As colônias
espirituais da Europa, mormente as de nosso nível, estão sofrendo amargamente
para atenderem às necessidades gerais. Já começamos a receber grandes
massas de desencarnados sob os bombardeios. 5
“Nosso Lar”, pela missão que lhe cabe, ainda não pode imaginar toda a extensão do esforço que o conflito mundial vem exigindo da nossa colaboração nas
Esferas mais baixas. 6
Os Postos de Socorro de várias colônias, ligadas a nós, estão superlotados
de europeus desencarnados violentamente. Fomos notificados de que as
súplicas da Europa dilaceram o coração angélico dos mais altos cooperadores
de Nosso Senhor Jesus-Cristo. 7
Aos terríveis bombardeios na Inglaterra, na Holanda, Bélgica e França,
sucedem-se outros de não menor extensão. Depois de reiteradas assembleias
dos nossos mentores espirituais, resolveu-se providenciar a remoção
de, pelo menos, cinquenta per cento dos desencarnados na guerra em curso,
para os nossos núcleos americanos. Temos aqui o nosso campo de concentração
com mais de quatrocentos.
8 — Mas não há dificuldade
no socorro a essa gente? — Indagou Aniceto em tom grave. — E a questão
da linguagem?
— Os serviços de socorro, apesar de intensos na Europa, têm sido muito bem organizados, explicou Alfredo; — para cada grupo de cinquenta infelizes, as colônias do Velho Mundo fornecem um enfermeiro-instrutor, com quem nos possamos entender, de modo direto. Desse modo, o problema não pesa tanto, porque nossa parte de colaboração consta de fornecimento de pessoal de serviço e de material de assistência.
9 — Não seria, porém, mais
justo, — indagou Vicente, — que os desencarnados dessa espécie fossem
mantidos nas próprias regiões do conflito?
Alfredo sorriu e explicou:
— Nossos instrutores mais elevados são de parecer que essas aglomerações seriam
fatais à coletividade dos Espíritos encarnados. 10
Determinariam focos pestilenciais de origem transcendente, com resultados
imprevisíveis. Inúmeros de nossos irmãos que perdem o corpo nas zonas
assoladas não conseguem subtrair-se ao campo da angústia; mas, quantos
ofereçam possibilidades de transferência para cá, dentro das nossas
cotas de alojamento, são retirados dali, sem perda de tempo, para que
seus pensamentos atormentados não pesem em demasia nas fontes vitais
das regiões sacrificadas.
3.
Nesse ínterim, Aniceto interveio, esclarecendo:
— Embalde voltarão os países do mundo aos massacres recíprocos. 2
O erro de uma nação influirá em todas, como o gemido de um homem perturbaria
o contentamento de milhões. A neutralidade é um mito, o insulamento
uma ficção do orgulho político. 3
A Humanidade terrestre é uma família de Deus, como bilhões de outras
famílias planetárias no Universo Infinito. Em vão a guerra desfechará
desencarnações em massa. Esses mesmos mortos pesarão na economia espiritual
da Terra. Enquanto houver discórdia entre nós, pagaremos doloroso preço
em suor e lágrimas. 4
A guerra fascina a mentalidade de todos os povos, inclusive de grande
número de núcleos das Esferas invisíveis. Quem não empunha as armas
destruidoras, dificilmente se afastará do verbo destruidor, no campo
da palavra ou da ideia. 5
Mas, todos nós pagaremos tributo. É da lei divina, que nos entendamos
e nos amemos uns aos outros. Todos sofreremos os resultados do esquecimento
da lei, mas cada um será responsabilizado, de perto, pela cota de discórdia
que haja trazido à família mundial.
Alfredo, que parecia ponderar seriamente os conceitos ouvidos, observou:
— É justo.
6 Aniceto voltou a considerar,
após silêncio mais longo:
— Estive pessoalmente, a semana passada, em “Alvorada Nova”, que fica em zonas
mais altas, e vim a saber que avançados núcleos de espiritualidade superior,
dos planetas vizinhos, desde as primeiras declarações desta guerra,
determinaram providências de máxima vigilância, nas fronteiras vibratórias
mantidas conosco. 7
Ensinam-nos os vizinhos beneméritos que devemos suportar, nos próprios
ombros, toda a produção de mal que levarmos a efeito. Somos, finalmente,
a casa grande, obrigada a lavar a roupa suja nas próprias dependências.
Sorrimos todos, com essa comparação.
4.
Ismália, que permanecia em silêncio, não obstante a funda impressão
que se lhe estampara no rosto, considerou com delicadeza:
2 — Infelizmente,
na feição coletiva, somos ainda aquela Jerusalém escravizada ao erro.
Todos os dias somos curados por Jesus e todos os dias conduzimo-lo ao
madeiro. Nossas obras estão reduzidas quase a simples recapitulações
que fracassam sempre. Não saímos do estágio da experiência. 3
E, dolorosamente para nós, estamos sempre a ensaiar, no mundo, a política
com os Césares, a justiça com os Pilatos, a fé religiosa com os Fariseus,
o sacerdócio com os rabinos do Sinédrio, a crença com os Jairos que
acreditam e duvidam ao mesmo tempo, os negócios com os Anases e Caifases.
Neste passo, não podemos prever a extensão dos acontecimentos cruciais.
5.
Encantado com as definições ouvidas, aventurei-me a dizer:
— Como é angustiosa, porém, a destruição pela guerra!
— Nestes tempos, contudo, — observou Alfredo, bondosamente, — a prece
é uma luz mais intensa no coração dos homens. 2
Bem se diz que a estrela brilha mais fortemente nas noites sem lua.
Imaginem que, para iniciar providências de recepção aos desencarnados
em desespero, já fui, mais de uma vez, aos serviços de assistência na
Europa. 3 Há dias,
em missão dessa natureza, fomos, eu e alguns companheiros, aos céus
de Bristol. A nobre cidade inglesa estava sendo sobrevoada por alguns
aviões pesados de bombardeio. As perspectivas de destruição eram assustadoras.
No seio da noite, porém, destacava-se, à nossa visão espiritual, um
farol de intensa luz. 4
Seus raios faiscavam no firmamento, enquanto as bombas eram arremessadas
ao solo. A chefia da expedição recomendou nossa descida no ponto luminoso.
Com surpresa, verifiquei que estávamos numa igreja, cujo recinto devia
ser quase sombrio para o olhar humano, mas altamente luminoso para nossos
olhos. 5 Notei, então,
que alguns cristãos corajosos reuniam-se ali e cantavam hinos. O Ministro
do Culto lera a passagem dos Atos, em que Paulo e Silas cantavam à meia-noite,
na prisão, e as vozes cristalinas elevavam-se ao Céu, em notas de fervorosa
confiança. Enquanto rebentavam estilhaços lá fora, os discípulos do
Evangelho cantavam, unidos, em celestial vibração de fé viva. 6
Nosso chefe mandou que nos conservássemos de pé, diante daquelas almas
heroicas, que recordavam os primeiros cristãos perseguidos, em sinal
de respeito e reconhecimento. Ele também acompanhou os hinos e depois
nos disse que os políticos construiriam os abrigos antiaéreos, mas que
os cristãos edificariam na Terra os abrigos antitrevosos.
7 Às vezes, — concluiu
o senhor do castelo, em tom significativo, — é preciso sofrer para compreender
as bênçãos divinas.
André Luiz