1.
Depois de alguns minutos, utilizados por nós no serviço da higiene reconfortadora,
Alfredo convidou-nos à mesa, onde Ismália, com extrema fidalguia, mandou
servir frutos diversos.
2 Os senhores do castelo não
podiam ser mais gentis.
Servidores iam e vinham, com grande júbilo a lhes transparecer do rosto.
A palestra de Alfredo e as observações de Ismália estavam cheias de notas interessantes e educativas.
— E qual a sua impressão dos serviços em geral? — Perguntou Aniceto, atencioso, dirigindo-se ao dono da casa.
3 — Excelente, quanto
às oportunidades de realização que nos oferecem, — respondeu Alfredo
em tom significativo; — entretanto, não tenho o mesmo parecer quanto
à situação em curso. As zonas a que servimos estão repletas de novidades
dolorosas. O presente período humano é de conflitos devastadores e as
vibrações contraditórias que nos atingem são de molde a enfraquecer
qualquer ânimo menos decidido. Desencarnados e encarnados empenham-se
em batalhas destruidoras. É uma lástima.
4 — Multiplica-se o número
de necessitados que recorrem ao Posto? — Continuou indagando nosso orientador.
— Enormemente. Nossa produção de alimentos e remédios tem sido integralmente
absorvida pelos famintos e doentes. 5
Tenho quinhentos cooperadores, mas nos sentimos presentemente incapazes
de atender a todas as obrigações. As massas de sofredores são incontáveis.
Noutro tempo, nossa paisagem se mantinha sem sombras, durante muitas
semanas, mas agora…
2.
Nesse instante, Ismália pediu licença para dirigir-se ao interior. E
como Alfredo fixasse os olhos nos meus, aventurei-me a considerar:
— Ainda bem que tendes uma abnegada companheira ao vosso lado.
2 Ele e Aniceto sorriram,
quase a um só tempo, falando-nos o administrador:
— Ah! Meus amigos, por enquanto, não tenho essa felicidade em caráter definitivo. Minha esposa e eu temos o divino compromisso da união eterna, mas ainda não lhe mereço a presença contínua. Ela é a bondade celeste, entretanto, eu sou a realidade humana.
3 Depois de pequena pausa,
prosseguiu com gentileza:
— Aniceto conhece-nos a história. Vocês, porém, a ignoram. Sentir-me-ei, portanto, contente, em relatar algumas lembranças, com benefício duplo. Aliviarei o coração, uma vez mais, contando minhas faltas, e vocês dois, que talvez tenham em breve novos serviços na Terra, aproveitarão, por certo, alguma coisa das minhas experiências.
4 Ismália e eu guardávamos
um escrínio de felicidade no mundo; no entanto, os salteadores perversos
espreitavam-nos a ventura. Minha responsabilidade era enorme no campo
dos negócios materiais, e, longe de compreender as obrigações sublimes
de esposo e pai, não procurava atender aos deveres justos para com o
lar e os dois filhinhos que Deus me enviara ao círculo doméstico. 5
Ismália, porém, era a providência de nossa casa. Esqueci-me, contudo,
de que a virtude, a qualquer tempo, será atormentada pelo vício e minha
nobre companheira foi vítima da maldade de um amigo desleal, com quem
tinha eu inúmeros interesses em comum, no campo monetário. 6
Minha esposa sofreu, em silêncio, a perseguição dele por alguns anos
consecutivos. E quando meu desventurado sócio verificou a inutilidade
da atitude criminosa, em franco desespero buscou envenenar-me o espírito
desprevenido. 7 Começou
por advertir-me, quanto ao procedimento dela. Atordoou-me, envolvendo-a
em acusações descabidas. Subornou criados domésticos e colocou espiões
que seguissem minha querida Ismália, nas tarefas de esposa e mãe. 8
Esse homem exercia profunda influência sobre mim, e, atendendo aos laços
que nos uniam, minha companheira jamais se sentiu com bastante coragem
para denunciá-lo. 9
Enquanto dava ouvidos à calúnia, fora de meu círculo doméstico, tornara-me
intolerável dentro dele. Não sabia contemplar minha esposa com a despreocupação
e a confiança absoluta de outra época. Via o mal nos seus mínimos gestos
e queria descobrir segundas intenções nas suas frases mais inocentes.
Cheguei a acusá-la, veladamente. 10
Ismália chorou e calou-se. Por fim, nosso infeliz perseguidor subornou
um homem de baixa condição que permaneceu, certa noite, ao lado de nossos
aposentos particulares como vulgar ladrão, às ocultas, sendo eu convocado
à prova máxima. 11
Penetrei no quarto em extremo desespero e acusei em voz alta ao ver
a companheira profundamente tranquila. Ismália levantou-se, receosa
da minha saúde mental, mas não lhe atendi os rogos, procurando, como
louco, o conspurcador da minha honra… 12
Abri violentamente grande armário antigo, vasculhando o quarto. Nesse
instante, o vulto de um homem esgueirou-se na sombra do aposento próximo,
e, antes que eu pudesse agarrá-lo no meu ódio infrene, saltou a janela,
alcançando o pomar de nossa casa. Corri, desesperado, detonando balas
a esmo, mas, nada consegui. 13
Regressei ao quarto e, para cúmulo da calúnia odiosa, o desconhecido
deixara, atrás de si, um chapéu novo, rigorosamente moderno, para que
se acentuassem meus sentimentos terríveis. 14
Olhos congestos, vomitando insultos, quis eliminar Ismália, banhada
em lágrimas a meus pés; no entanto, alguma coisa, que nunca pude compreender
na Terra, paralisou-me o braço quase homicida. Vociferando blasfêmias,
surdo aos rogos dela, afastei-me do lar, tomado de horror. 15
No dia imediato, fiz valer meu direito exclusivo sobre os filhos e providenciei
para que Ismália, convertida em estátua de dor, fosse restituída à fazenda
paterna. 16 Contratei
uma governanta para os meninos e, logo após, tomei um paquete para a
Europa, onde me demorei mais de três anos. 17
Nunca me propus a verificações sérias, e, embora tivesse o espírito
incessantemente atormentado, humilhei os sentimentos mais íntimos, jamais
procurando notícias da companheira caluniada. 18
Certo dia, recebi uma carta lacônica na costa francesa. Um parente dava-me
informações da esposa. Após dois anos angustiosos, entre a saudade e
o abandono, Ismália fora colhida pela tuberculose, falecendo em terrível
martirológio moral. 19
Deliberei, então, a volta. Fixei-me novamente no Rio, eduquei os filhinhos
e conservei a dolorosa viuvez no desencanto do coração. Os anos rolaram
uns sobre os outros, quando fui chamado à cabeceira do ex-sócio agonizante.
20 O infeliz, em
face da morte, confessou o crime odioso, pedindo um perdão que, infelizmente,
não pude conceder. Transformei-me, desde então, num louco irremediável.
21 Cansado, envelhecido,
procurei a propriedade rural dos sogros, tentando reparar, de alguma
sorte a injustiça, mas a morte não me deu ensejo e voltei para a Esfera
dos desencarnados, em tristes condições espirituais.
22 Nesse instante, fez uma
pausa, para continuar comovido:
— Não preciso dizer que recebi de Ismália todo o amparo de que necessitava.
Todavia, infelizmente para mim, estávamos separados. Não mereci a bênção
da união sublime. Ismália segue-me de perto, mas tem residência num
Plano superior, que devo esforçar-me por alcançar. 23
Desde muito, dediquei-me aos serviços do nosso Posto de Socorro, consagrei-me
aos ignorantes e sofredores, e minha santa Ismália vem até aqui, mensalmente,
incentivar-me o bom ânimo e amparar-me nas lutas.
— Mas não poderia ela transferir-se definitivamente para aqui? — Indagou Vicente, tão impressionado quanto eu, com o romance comovedor.
24 Alfredo sorriu e falou:
— Sei que Ismália tem trabalhado para isso, que seu ideal de união
eterna é idêntico ao meu, atendendo à circunstância de estar o superior
sempre em posição de dar ao inferior; mas não ignoro que foi advertida
por nossos maiores, sobre as minhas atuais necessidades de esforço e
solidão. Preciso conhecer o preço da felicidade, para não menosprezar,
de novo, as bênçãos de Deus. 25
Minha esposa deseja descer para encontrar-se definitivamente comigo;
entretanto, é necessário que eu aprenda a subir e, por este motivo,
ainda não recebemos a devida permissão para o definitivo consórcio espiritual.
26 Observando-nos a emoção, o generoso interlocutor concluiu:
— Estou resgatando crimes de precipitação. Pela impulsividade delituosa perdi
minha paz, meu lar e minha devotada companheira. Conforme ouviram, não
matei nem roubei a ninguém, mas envenenei-me a mim próprio. A calúnia
é um monstro invisível, que ataca o homem através dos ouvidos invigilantes
e dos olhos desprevenidos.
André Luiz