1.
À noite, Aniceto veio ver-nos, começando por dizer:
— Amanhã deveremos partir os três, a serviço nas Esferas da Crosta. 2
Telésforo recomendou-me certas atividades de importância, mas posso
atendê-las em particular, proporcionando a ambos uma estação semanal
de experiência e serviço.
3 Fiquei radiante.
Muita vez regressara ao ninho doméstico, tornara à cidade em que desenvolvera
a tarefa última e, todavia, não me detivera no exame das possibilidades
extensas do concurso fraternal. 4
De quando em vez, era defrontado por situações difíceis, nas quais velhos
conterrâneos encaravam problemas de vulto; entretanto, sentia-me incapaz
de auxiliá-los, eficientemente, na solução desejável. Faltava-me técnica
espiritual para faze-lo. Não tinha bastante confiança em mim mesmo.
5 Deixando perceber que ouvira
meus pensamentos profundos, Aniceto dirigiu-me a palavra de maneira
especial, asseverando:
— Você, André, ainda não pôde auxiliar os amigos encarnados porque ainda não
adquiriu a devida capacidade para ver. É razoável. 6
Quando na carne, somos muitas vezes inclinados a verificar tão somente
os efeitos, sem ponderar as origens. No mendigo, vemos apenas a miséria;
no enfermo, somente a ruína física. Faz-se indispensável identificar
as causas.
7 Depois de meditar alguns
momentos, prosseguiu:
— Procuraremos, contudo, remediar a situação. Amanhã, pela madrugada, você
e Vicente apareçam no Gabinete de Auxílio Magnético às Percepções, que
fica junto ao Centro de Mensageiros. 8
Darei as providências para que vocês alcancem o necessário melhoramento
da visão. Peço-lhes, todavia, receberem semelhante auxílio em prece.
Roguem a Deus lhes permita a dilatação do poder visual. Compenetrem-se
da grandeza desse dom sublime. E, sobretudo, enviem à Majestade Eterna
um pensamento de consagração ao seu amor e aos seus serviços divinos.
2.
Não desejo induzi-los a atitudes de fanatismo sem consciência. Não podemos
abusar da oração aqui, segundo antigas viciações do sentimento terrestre.
2 No Círculo carnal,
costumamos utilizá-la em obediência a delituosos caprichos, suplicando
facilidades que surgiriam em detrimento de nossa própria iluminação.
3 Aqui, todavia, André,
a oração é compromisso da criatura para com Deus, compromisso de testemunho,
esforço e dedicação aos superiores desígnios. 4
Toda prece, entre nós, deve significar, acima de tudo, fidelidade do
coração. Quem ora, em nossa condição espiritual, sintoniza a mente com
as Esferas mais altas e novas luzes lhe abrilhantam os caminhos.
5 Diante da nobre autoridade
de Aniceto, não me atrevi a falar e cheguei mesmo a recear a externação
de qualquer pensamento.
Deixou-nos o generoso instrutor com palavras carinhosas de amizade e incentivo.
3.
Vicente e eu acalentávamos projetos magníficos. Iríamos, pela primeira
vez, cooperar a favor dos encarnados em geral. Nosso repouso noturno
foi brevíssimo. Aguardávamos, ansiosamente, a alvorada, a fim de receber
o auxílio magnético do Gabinete referido.
2 Poucas vezes orei
com a emoção daquela hora. Os esclarecidos técnicos da instituição colocaram-nos,
primeiramente, em relação mental direta com eles e, em seguida, submeteram-nos
a determinadas aplicações espirituais, que ainda não posso compreender
em toda a extensão e transcendência. 3
Observei, contudo, que a colaboração magnética não nos retirava o sentido
consciencial, e aproveitei a oportunidade para a oração sincera, que
era mais um compromisso de trabalho que ato de súplica, propriamente
considerado.
4 Decorrido certo tempo, fomos
declarados em liberdade para sair, quando nos prouvesse.
A princípio, nada notei de extraordinário, embora sentisse, dentro do coração, nova coragem e alegria diferente. Experimentava bom ânimo, até então desconhecido. Meus sentidos da visão e da audição pareciam mais límpidos.
4.
Aniceto, que se mostrava muito satisfeito, esperava-nos no Centro, marcando
a partida para o meio-dia.
Ansioso, aguardei o instante aprazado.
2 Não nos ausentamos de “Nosso
Lar”, como os viajores terrestres, geralmente carregados de matalotagens
e volumes diversos.
— Aqui, — disse Aniceto jocosamente, — toda a nossa bagagem é a do coração. Na Terra, malas, bolsas, embrulhos; mas, agora, devemos conduzir propósitos, energias, conhecimentos e, acima de tudo, disposição sincera de servir.
3 Alguns companheiros presentes
riram-se com gosto.
Nesse instante, nosso orientador fez algumas recomendações. Designou colegas para a chefia de turmas de aprendizado, estabeleceu programas de serviço e notificou que voltaria à colônia, diariamente, por algumas horas, deixando-nos, Vicente e eu, nos serviços da Crosta, em trabalhos e observações que deveriam prolongar-se por toda a semana.
4 Despedimo-nos dos camaradas
de luta, repletos de esperança. Era a nossa primeira excursão de aprendizado
e cooperação aos semelhantes.
5 Quando nos puséramos a caminho,
nosso Instrutor observou:
— Creio que a viagem para vocês será diferente. Certo, estão habituados à passagem livre, mantida por ordem superior para as atividades normais de nossos trabalhos e trânsito dos irmãos esclarecidos, em vésperas de reencarnação.
— Como assim? — Perguntou Vicente, admirado.
5 — Pois não sabia?
As regiões inferiores, entre “Nosso Lar” e os Círculos da carne, são
tão grandes que uma estrada ampla e bem cuidada requer tanto esforço de conservação, como as importantes rotas terrestres. Por lá, obstáculos
físicos; por cá, obstáculos espirituais. 6
As vias de comunicação normais destinam-se a intercâmbio indispensável.
Os que se encontram nas tarefas da nossa rotina sagrada precisam livre
trânsito e os que se dirigem da Esfera superior à reencarnação devem
seguir com a harmonia possível, sem contato direto com as expressões
dos Círculos mais baixos. 7
A absorção de elementos inferiores determinaria sérios desequilíbrios
no renascimento deles. Há que evitar semelhantes distúrbios. Nós, porém,
seguimos numa expedição de aprendizado e experiência. Não devemos, por
isso, preferir os caminhos mais fáceis.
8 Identificando-nos a perplexidade,
Aniceto concluiu:
— Imaginemos um rio de imensas proporções, separando duas regiões diferentes. Existe o vau que oferece transporte rápido e há passagens diversas através de fundos precipícios.
9 Pela expressão do
bondoso instrutor, concluí que ele poderia voltar à colônia quando quisesse,
que não encontraria obstáculos de qualquer ordem, em parte alguma, em
razão do poder espiritual de que se achava revestido, mas fazia-se peregrino,
como nós, por devotamento à missão de ensinar. 10
Vicente e eu não dispúnhamos de expressão vibratória adequada aos grandes
feitos. Éramos vulgares, quanto a maioria dos habitantes da nossa
cidade espiritual. Possuíamos apenas alguns princípios de volição;
contudo, permanecíamos muito distantes do verdadeiro poder. 11
Nunca vira, pois, a energia e a humildade em tão belo consórcio. Aniceto
dirigia-nos, firmemente, como orientador de pulso, vigoroso e sábio,
mas não vacilava em se fazer igual a nós, a fim de servir como devotado
companheiro.
12 Meditando a lição
sublime, em pleno impulso volitivo, contemplei as torres de “Nosso
Lar”, que iam ficando a distância…
André Luiz