Embora esteja repleto de aspectos interessantes, intrigantes e controversos,
a carta de Judas é o escrito mais negligenciado do Novo Testamento.
Isso ocorre talvez pela dificuldade que certas passagens oferecem e
pelo tamanho relativamente pequeno do escrito. Ela só não é menor do
que as duas Cartas de João e equipara-se, em número de versículos,
a Filêmon, embora seja muito mais complexa e aborde temas mais
amplos e profundos do que a menor das Cartas de Paulo.
Como essa carta já fazia parte do cânone de Muratori, sabe-se que sua
aceitação como texto inspirado ocorreu muito cedo. Orígenes conhece
e cita Judas; Eusébio, Clemente e Tertuliano também mencionam a carta.
Mais tarde, Santo Agostinho fará referências a este escrito.
A estrutura da carta chama atenção pelo cuidado com que é construída.
Nela, o passado emerge como modelo das consequências futuras em relação
aos atos do presente. A cada referência literária, segue-se um comentário
atualizando o seu sentido para o momento presente a fim de fortalecer
a fé e a confiança na Justiça e na Misericórdia Divinas.
Estrutura e temas
Capítulos:
1 — Versículos: 25 — Destinatários: Aos chamados amados de Deus Pai
guardados por Jesus.
Temas e versículos:
Saudação e destinatários, 1 e 2.
Objetivo da carta, 3 e 4.
Recordação do que ocorre aos iníquos, 5 a 7.
A conduta dos equivocados, 8 a 10.
Fragilidade dos iníquos, 11 a 16.
Lembrança dos ensinos dos apóstolos, 17 a 19.
Exortação ao amor de Deus, 20 e 21.
Conduta com os que estão na dúvida, 22 e 23.
Exaltação final de Deus e de Jesus, 24 e 25.
Destinatários
Ela é endereçada a uma comunidade, embora não saibamos exatamente qual,
uma vez que seus membros são referenciados como “em Deus Pai amados
e em Jesus Cristo guardados”.
A comunidade é formada por integrantes versados no entendimento do Antigo
Testamento, uma vez que o autor se vale dessas referências como base
para seus argumentos principais, o que é esperado de uma comunidade
constituída principalmente, mas não exclusivamente, de judeus convertidos
ao Cristianismo.
Autoria
As diversas hipóteses levantadas sobre quem seria o autor do escrito
variam enormemente, passando desde um autor desconhecido do segundo
século até um dos supostos irmãos consanguíneos de Jesus. O autor identifica-se
como sendo “Judas, servo do senhor e irmão (ἀδελφός - adelfós) de Tiago”.
A questão aqui é quem seria esse Tiago. Poderia ser Tiago Maior, Tiago
Menor, ou outra figura de menor relevância, o que levantaria a questão
do porquê mencioná-la. Alguns estudiosos propuseram que se trata do
Apóstolo Judas (não o Iscariotes), mencionado em Atos, 1.13.
Entretanto, nessa passagem, o Judas que aparece é identificado como
Ἰούδας Ἰακώβου ou (Iúdas de Tiago), que era a maneira mais comum de
referir-se à ascendência paterna, ou seja, o apóstolo é Judas [filho]
de Tiago. Além disso, o autor parece referir-se no versículo 17 aos
apóstolos como um grupo ao qual ele não pertencia, embora essa conclusão
não seja definitiva. É alguém cuja autoridade foi reconhecida desde
o início, uma vez que o nome Judas não evocaria uma autoridade direta
para ser considerada como opção principal na hipótese de pseudoepigrafia.
O que se depreende do autor, a partir da carta, é que se trata de alguém
culto e extremamente versado na exegese e interpretação do Antigo Testamento,
ao qual se refere mais de uma vez. Além disso, parece conhecer textos
atribuídos aos apóstolos que não chegaram aos nossos dias, pelo menos
não na forma em que são mencionados (versículos 17
a 19).
Para o autor, existe uma conexão entre passado, presente e futuro, e
mesmo as adversidades do agora não estão alheias ao controle e atenção
divinos, tanto quanto no passado os atos de iniquidade não passaram
ao largo da atuação de Deus. A comunidade deve ter isso em mente, e
não deve ater-se exclusivamente ao presente, mas esperar e ter confiança
em um futuro de recompensas, pelo qual deve se esforçar no agora. Esse
parece ser um dos equívocos mais graves dos adversários mencionados.
excessiva preocupação com o presente em detrimento do futuro.
Origem e datação
As propostas em relação à data variam de acordo com a origem, sendo
a Palestina o local mais frequentemente mencionado entre os que se arriscam
a sugerir um local, uma vez que não há nada explicitamente presente
na carta que possibilite uma identificação, ainda que vaga, do local
de sua redação.
Diante do quadro exposto, não é de se admirar que as possíveis datas
tenham também uma ampla faixa de possibilidades, sendo os extremos posicionados
entre os anos de 54 e 180 e as mais comumente mencionadas compreendidas
entre 67 e 96.
Fontes extra Bíblia
A carta referência não somente a literatura que chegou até nós como
cânone da Primeira Revelação, mas também em outras que não foram incluídas
na Balia. Em especial temos uma referência ao livro de Enoque, provavelmente
1 Enoque, 1.9 e uma história acerca da disputa do corpo de Moisés
travada entre o Arcanjo Miguel e o diabo. Orígenes atribuía essa narrativa
a uma obra denominada Ascenção de Moisés, que não chegou aos
nossos dias a não ser em versões apócrifas e possivelmente tardias.
Curiosamente, Emmanuel faz um comentário exatamente sobre o versículo
de Judas que menciona essa história demonstrando que o coração puro
encontrará a verdade em muitos lugares.
Conteúdo e perspectiva espírita
Em termos de conteúdo, trata ao mesmo tempo da salvação e dos adversários
que estão dentro da comunidade, exortando aos que pretendem uma conduta
verdadeiramente cristã a identificá-los, mas a não proferir “juízo infamatório”
(versículo 9).
Cabe ao discípulo manter-se fiel aos seus princípios, esforçando-se
por corrigir e melhorar a própria conduta, deixando o juízo final Àquele
que possui a onisciência e onipotência para agir de acordo com a máxima
justiça e o máximo amor.
Emmanuel assim se expressa sobre esse aspecto:
“ Ninguém fuja ao esclarecimento fraternal, à verdade generosa, mas
quando se trate de pronunciar palavras definitivas de rompimento ou
condenação, recorda o ensinamento de Judas em sua epístola mundial.
— Quando discutia com o adversário da Luz de Deus, o Arcanjo Miguel
não ousou proferir juízo de maldição e preferiu aguardar a Pronúncia
divina.”
“Observando isso, não podemos esquecer que ele era Arcanjo e nós simples
discípulos em aprendizado.” n
[1]
Trecho do livro Harmonização. Ed. GEEM. Capítulo Maldição.
Ver Judas, 1.9 em Comentários à Carta de Judas. (Nota da Editora.)
Saulo Cesar Ribeiro da Silva.