O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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O Evangelho por Emmanuel — Volume V — 2ª Parte ©

Textos paralelos de Atos dos apóstolos e Paulo e Estêvão

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Falsas acusações e julgamento de Estêvão

12 Instigaram o povo, os anciãos e os escribas e, aproximando-se, o arrebataram e o conduziram ao Sinédrio. 13 Apresentaram testemunhas falsas, que diziam: Este homem não cessa de falar palavras contra o lugar santo e contra a Lei. 14 Pois [nós] o ouvimos dizer que esse Jesus, o Nazareno, destruirá este Lugar e mudará os costumes que Moisés nos transmitiu.  15 Todos os que estavam sentados no Sinédrio, fixando os olhos nele, viram o rosto dele como [se fosse] rosto de anjo. (Atos 6:12-15) 1 E disse o sumo sacerdote: As coisas são mesmo assim? — (Atos 7:1)


2 Estêvão comparecia como um homem chamado a defender-se das acusações a ele imputadas, não como prisioneiro comum obrigado a acertar contas com a justiça. Examinando, pois, a situação, rogou com insistência aos Apóstolos galileus não o acompanhassem, considerando, não só a necessidade de permanecerem junto dos sofredores, como também a possível ocorrência de sérios atritos, no caso de comparecimento dos adeptos do “Caminho”, dada a firmeza de ânimo com que procuraria salvaguardar a pureza e a liberdade do Evangelho do Cristo. Além disso, os recursos de que poderiam dispor eram demasiadamente simples e não seria justo afrontar com eles o poderio supremo dos sacerdotes, que tinham encontrado recursos para crucificar o próprio Messias. Em favor do “Caminho” pontificavam, apenas, aqueles enfermos desventurados; as convicções puras dos mais humildes; a gratidão dos mais infelizes — única força poderosa pelo seu conteúdo de virtude divina, a lhes amparar a causa perante as autoridades dominantes do mundo. Assim ponderando, disputava o júbilo de assumir, sozinho, a responsabilidade da sua atitude, sem comprometer qualquer companheiro, tal como fizera Jesus um dia, no seu apostolado sublime. Se necessário, não desdenharia a possibilidade do derradeiro sacrifício, no sagrado testemunho de amor ao seu coração augusto e misericordioso. O sofrimento, por Ele, ser-lhe-ia suave e doce. Sua argumentação vencera o bom desejo dos companheiros mais veementes. Assim, sem amparo de qualquer amigo, compareceu ao Sinédrio, tomado de forte impressão ao lhe observar a grandeza e a suntuosidade. Habituado aos quadros tristes e pobres dos subúrbios, onde se refugiavam os infelizes de toda espécie, deslumbrava-se com a riqueza do Templo,  †  com o aspecto soberbo da torre  †  dos romanos, com os edifícios residenciais de estilo grego, com a feição exterior das sinagogas que se espalhavam em grande número por toda parte.


3 Compreendendo a importância daquela sessão a que acorriam os elementos de escol, por identificarem o invulgar interesse de Saulo, que, no momento, era a expressão de mocidade mais vibrante do judaísmo, o Sinédrio requisitara o concurso da autoridade romana para a absoluta manutenção da ordem. A Corte Provincial não regateara providências. Os próprios patrícios residentes em Jerusalém compareceram, numerosos, ao grande feito do dia, considerando que se tratava do primeiro processo em torno das ideias ensinadas pelo profeta nazareno, depois da sua crucificação, que deixara tanta perplexidade e tantas dúvidas no espírito público.

Quando o grande recinto regurgitava de pessoas de alto destaque social, Estêvão sentou-se no lugar previamente designado, conduzido por um ministro do Templo, ali permanecendo sob a guarda de soldados que o fixavam ironicamente.

A sessão começou com todas as cerimônias regimentais. Ao iniciar os trabalhos, o sumo-sacerdote anunciou a escolha de Saulo, consoante seu próprio desejo, para interpelar o denunciado e averiguar a extensão de sua culpa no aviltamento dos princípios sagrados da raça. Recebendo o convite para funcionar como juiz do feito, o jovem tarsense esboçou um sorriso triunfante. Com imperioso gesto, mandou que o humilde pregador do “Caminho” se aproximasse do centro da sala suntuosa, para onde se dirigiu Estêvão serenamente, acompanhado por dois guardas de cenho carregado.


4 O moço de Corinto  †  fixou o quadro que o rodeava, considerando o contraste de uma e outra assembleia e recordando a última reunião da sua igreja pobre, onde fora compelido a conhecer tão caprichoso antagonista. Não seriam aquelas as “ovelhas perdidas” da casa de Israel, a que aludia Jesus nos seus vigorosos ensinamentos? Ainda que o judaísmo não houvesse aceitado a missão do Evangelho, como conciliava ele as observações sagradas dos profetas e sua elevada exemplificação de virtude, com a avareza e o desregramento? O próprio Moisés fora escravo e, por dedicação ao seu povo, sofrera inúmeras dificuldades em todos os dias da existência consagrada ao Todo-Poderoso. Job padecera misérias sem-nome e dera testemunho de fé nos sofrimentos mais acerbos. Jeremias chorara incompreendido. Amós experimentara o fel da ingratidão. Como poderiam os israelitas harmonizar o egoísmo com a sabedoria amorosa dos Salmos de David? Estranhável que, tão zelosos da Lei, se entregassem de modo absoluto aos interesses mesquinhos, quando Jerusalém estava cheia de famílias, irmãs pela raça, em completo abandono. Como cooperante de uma comunidade modesta, conhecia de perto as necessidades e sofrimentos do povo. Com essas ilações, sentia que o Mestre de Nazaré se elevava muito mais, agora, aos seus olhos, distribuindo entre os aflitos as esperanças mais puras e as mais consoladoras verdades espirituais.


5 Ainda não voltara a si da surpresa com que examinava as túnicas brilhantes e os ornamentos de ouro que exuberavam no recinto, quando a voz de Saulo clara e vibrante, o chamou à realidade da situação.

Depois de ler a peça acusatória em que Neemias figurava como principal testemunha e no que foi ouvido com a máxima atenção, Saulo interrogou Estêvão entre ríspido e altivo:

— Como vedes, sois acusado de blasfemo, caluniador e feiticeiro, perante as autoridades mais representativas. No entanto, antes de qualquer decisão, o Tribunal deseja conhecer vossa origem para determinar os direitos que vos assistem neste momento. Sois, porventura, de família israelita?

O interrogado fez-se pálido, ponderando as dificuldades de uma plena identificação, caso fosse indispensável, mas respondeu firmemente:

— Pertenço aos filhos da tribo de Issacar.  † 


6 O doutor da Lei surpreendeu-se, ligeiramente, de maneira imperceptível para a assembleia, e continuou:

— Como israelita, tendes o direito de replicar livremente as minhas interpelações; todavia, faz-se mister esclarecer que essa condição não vos eximirá de pesados castigos, caso perseverardes na exposição dos erros crassos de uma doutrina revolucionária, cujo fundador foi condenado à cruz infamante pela autoridade deste Tribunal, onde pontificam os filhos mais veneráveis das tribos de Deus. Aliás, apreciando, por suposição, a vossa origem, convidei-vos a discutir lealmente comigo, quando de nosso primeiro encontro na assembleia dos homens do “Caminho”. Fechei os olhos aos quadros de miséria que então me cercavam, para analisar tão só os vossos dotes de inteligência; mas, evidenciando estranha exaltação de espírito, talvez em virtude de sortilégios, cujas influências são ali visíveis, vos mantivestes em singular reserva de opinião, apesar dos meus apelos reiterados. Vossa atitude inexplicável deu azo a que o Sinédrio considerasse a presente denúncia de vosso nome como inimigo de nossas ordenações. Sereis agora obrigado a responder a todas as interpelações convenientes e necessárias, e eu espero reconheçais que o título de israelita não vos poderá livrar da punição reservada aos traidores de nossa causa.


7 Depois de não pequeno intervalo em que o juiz e o denunciado puderam verificar a ansiosa expectativa da assembleia, Saulo entrou a interrogar:

— Por que rejeitastes meu convite à discussão quando honrei a pregação no “Caminho” com a minha presença?

Estêvão, que tinha os olhos fulgurantes, como inspirado por uma força divina, replicou em voz firme, sem revelar a emoção que intimamente o dominava:

— O Cristo, a quem sirvo, recomendou aos seus discípulos evitassem, a qualquer tempo, o fermento das discórdias. Quanto ao ato de haverdes honrado minha palavra humilde com a vossa presença, agradeço a prova de imerecido interesse, mas prefiro considerar com David  nque nossa alma se gloriará no Senhor, visto nada possuirmos de bom em nós mesmos, se Deus nos não amparar com a grandeza da sua glória.


8 Em face da lição sutil que lhe era lançada em rosto, Saulo de Tarso mordeu os lábios, entre colérico e despeitado, e, procurando evitar, agora, qualquer alusão pessoal, para não cair em situação semelhante, prosseguiu:

— Sois acusado de blasfemo, caluniador e feiticeiro.

— Permito-me perguntar em que sentido — retrucou o interpelado, com desassombro.

— Blasfemo quando inculcais o carpinteiro de Nazaré como Salvador; caluniador quando achincalhais a Lei de Moisés, renegando os princípios sagrados que nos regem os destinos. Confirmais tudo isso? Aprovais essas acusações?


9 Estêvão esclareceu sem titubear:

— Mantenho minha crença de que o Cristo é o Salvador prometido pelo Eterno, através dos ensinos dos profetas de Israel, que choraram e sofreram no decurso de longos séculos, por transmitir-nos os júbilos doces da Promessa. Quanto à segunda parte, suponho que a acusação procede de interpretação errônea em torno de minhas palavras. Jamais deixei de venerar a Lei e as Sagradas Escrituras, mas considero o Evangelho de Jesus o seu divino complemento. As primeiras são o trabalho dos homens, o segundo é o salário de Deus aos trabalhadores fiéis.

— Sois então de parecer — disse Saulo sem dissimular irritação diante de tanta firmeza — que o carpinteiro é maior que o grande legislador?

— Moisés é a Justiça pela revelação, mas o Cristo o amor vivo e permanente.


10 A essa resposta do acusado, houve um prurido de exaltação na grande assembleia. Alguns fariseus encolerizados gritavam injúrias. Saulo, porém, lhes fez um sinal imperioso e o silêncio voltou a possibilitar o interrogatório. E, dando à voz um timbre de severidade, prosseguiu:

— Sois israelita e jovem ainda. Uma inteligência apreciável serve ao vosso esforço. Temos então o dever, antes de qualquer punição, de trabalhar pelo vosso regresso ao aprisco. É imprescindível chamar o irmão desertor, com carinho, antes do extremo recurso às armas. A Lei de Moisés poderá conferir-vos uma situação de grande relevo, mas, que proveito tiraríeis da palavra insignificante, inexpressiva, do operário ignorante de Nazaré, que sonhou com a glória para pagar as esperanças loucas numa cruz de ignomínia?

— Desprezo o valor puramente convencional que a Lei me poderia oferecer em troca do apoio à política do mundo, que se transforma todos os dias, considerando que a nossa segurança reside na consciência iluminada com Deus e para Deus.

— Mas, que esperais do mistificador que lançou a confusão entre nós, para morrer no Calvário? — tornou Saulo exaltadamente.

— O discípulo do Cristo deve saber a quem serve e eu me honro em ser instrumento humilde nas suas mãos.

— Não precisamos de um inovador para a vida de Israel.

— Compreendereis, um dia, que, para Deus, Israel significa a Humanidade inteira.


11 Diante dessa resposta ousada, a quase totalidade da assembleia prorrompeu em apupos, mostrando sua hostilidade franca ao denunciado de Neemias. Afeitos a um regionalismo intransigente, os israelitas não toleravam a ideia de confraternização com os povos que consideravam bárbaros e gentios. Enquanto os mais exaltados davam expansão a protestos veementes, os romanos observavam a cena, curiosos e interessados, como se presenciassem uma cerimônia festiva.

Depois de longa pausa, o futuro rabino continuou:

— Confirmais a acusação de blasfêmia, enunciando semelhante princípio contra a situação do povo escolhido. É a vossa primeira condenação.

— E isso não me atemoriza — disse o acusado, resoluto —; às ilusões orgulhosas que nos conduziriam a tenebrosos abismos, prefiro acreditar, com o Cristo, que todos os homens são filhos de Deus, merecendo o carinho do mesmo Pai.


12 Saulo mordeu os lábios raivosamente, e, acentuando sua atitude rigorosa de julgador, prosseguiu com aspereza.

— Caluniais Moisés, proferindo tais palavras. Aguardo vossa confirmação.

O interpelado, dessa vez, endereçou-lhe significativo olhar e murmurou:

— Por que aguardais minha confirmação se obedeceis a um critério arbitrário? O Evangelho desconhece as complicações da casuística. Não desdenho Moisés, mas não posso deixar de proclamar a superioridade de Jesus-Cristo. Podeis lavrar sentenças e proferir anátemas contra mim; entretanto, é necessário que alguém coopere com o Salvador no restabelecimento da verdade acima de tudo, e sem embargo das mais dolorosas consequências. Aqui estou para faze-lo e saberei pagar, pelo Mestre, o preço da mais pura fidelidade.


13 Depois de cessar o abafado vozerio da assistência, Saulo voltou a dizer:

— O Tribunal reconhece-vos como caluniador, passível das punições atinentes a esse título odioso.

E tão logo foram grafadas as novas declarações pelo escriba que anotava os termos da inquirição, acentuou sem disfarçar a ira que o dominava:

— É indispensável não esquecer que sois acusado de feiticeiro. Que respondeis a semelhante arguição?

— De que me acusam, nesse particular? — interrogou o pregador do “Caminho”, com galhardia.

— Eu próprio vos vi curar uma jovem muda, num dia de sábado, e ignoro a natureza dos sortilégios que utilizastes nesse feito.

— Não fui eu quem praticou esse ato de amor, como, certamente, me ouvistes afirmar; foi o Cristo, por intermédio de minha pobreza, que nada tem de boa.

— Pensais inocentar-vos com esta ingênua declaração? — objetou Saulo com ironia. — A suposta humildade não vos exculpa. Fui testemunha do fato e só a feitiçaria poderá elucidar seus ascendentes estranhos.


14 Longe de se perturbar, o acusado respondeu inspiradamente:

— E, contudo, o Judaísmo está cheio desses fatos que julgais não compreender. Em virtude de que sortilégio conseguiu Moisés fazer jorrar de uma rocha a fonte de água viva? Com que feitiçaria o povo eleito viu abrirem-se-lhe as ondas revoltas do mar para a necessária fuga do cativeiro? Com que talismã presumiu Josué atrasar a marcha do Sol? Não vedes, em tudo isso, os recursos da Providência Divina? De nós nada temos, e, todavia, no cumprimento do nosso dever, tudo devemos esperar da divina misericórdia.


15 Analisando a resposta concisa, reveladora de raciocínios lógicos, irretorquíveis, o doutor de Tarso  †  quase rilhou os dentes. Um rápido relancear de olhos na assembleia deu-lhe a conhecer que o antagonista contava com a simpatia e admiração de muitos. Chegava a desconcertar-se intimamente. Como recuperar a calma, dado o temperamento impulsivo que o levava aos extremos emotivos? Examinando a última assertiva de Estêvão, sentia dificuldade em coordenar uma argumentação decisiva. Sem poder revelar o desapontamento próprio, incapaz de encontrar a resposta devida, considerou a urgência de uma saída a propósito e dirigiu-se ao sumo-sacerdote, nestes termos:

— O acusado confirma, por sua palavra, a denúncia de que foi objeto. Acaba de confessar, de público que é blasfemo, caluniador e feiticeiro. Entretanto, por sua condição de nascimento, ele tem direito à defesa última, independentemente das minhas interpretações de julgador. Proponho, então, que a autoridade competente lhe conceda esse recurso.


16 Grande número de sacerdotes e personalidades eminentes entreolharam-se, quase com espanto, como a prelibar a primeira derrota do orgulhoso doutor da Lei, cuja palavra vibrante sempre conseguira triunfar sobre quaisquer adversários, fixando-lhe o rosto rubro de cólera, denunciando a tempestade que lhe rugia no coração.

Aceita a proposta formulada pelo juiz da causa, Estêvão passou a usar de um direito que lhe era conferido pelo seu nascimento.


Emmanuel



[1] Salmos de David, 34:3 (Nota de Emmanuel)

(Paulo e Estêvão, FEB Editora. Primeira parte. Capítulo 6, pp. 93 a 100. Indicadores 2 a 16)


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