O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

Índice |  Princípio  | Final

O Evangelho por Emmanuel — Volume IV

Comentários ao Evangelho segundo João

Introdução ao Evangelho segundo João

O chamado quarto Evangelho possui essa denominação, não somente pela sua posição na sequência dos escritos do Novo Testamento, mas, também, pela impressionante diferença que guarda em relação aos três primeiros que o antecedem e que são conhecidos como sinóticos pelas semelhanças que trazem entre si.

Uma aproximação, mesmo que superficial, do texto de João deixará transparecer os elementos marcantes e distintivos desse Evangelho, nem sempre bem compreendidos e que já suscitaram várias críticas ao longo da história. Isso, contudo, em nada diminuiu a força desse texto, principalmente no que se refere a demonstrar uma face de Jesus e seus ensinos que não se pode obter pela leitura exclusiva de Mateus, Marcos e Lucas.

Não deixa de ter uma certa ironia o fato de que justamente esse texto, que é o mais criticado em termos de estudos históricos críticos sobre a figura de Jesus, seja o que possui a atestação mais antiga. O fragmento de manuscrito mais antigo do Novo Testamento, descoberto até o momento, é o P52, que data de cerca do ano 125 e contém 5 versículos do Evangelho de João, sugerindo que, desde muito cedo, esse Evangelho já era uma importante fonte para o conhecimento da Boa-Nova.


Autoria

Embora a crítica textual atual alegue fortemente que o texto de João foi produzido por uma “escola joanina” ou por um discípulo do apóstolo, os autores dos primeiros anos do Cristianismo concordam, em sua quase totalidade, em afirmar que foi o “apóstolo amado” o autor desse texto e que o teria escrito na comunidade de Éfeso.

João é talvez o apóstolo mais jovem sobre o qual temos referências nos outros sinóticos. Filho de Salomé e Zebedeu, tinha como irmão Tiago Maior e trabalhava em Betsaída como pescador, provavelmente junto de Pedro e André.

A personalidade desse apóstolo pode ser, ainda que superficialmente, inferida por algumas ocorrências peculiares narradas no Novo Testamento: é de sua mãe que Jesus recebe o pedido para que seus dois filhos se assentassem um ao lado direito e outro ao lado esquerdo do Cristo, quando Ele estivesse no seu Reino; é dele a pergunta na ceia final sobre quem seria o traidor; é também um importante ator na Casa do Caminho em Jerusalém; redigiu boa parte dos escritos atribuídos a ele em Éfeso e na ilha de Patmos; recebe de Jesus a alcunha de filho do trovão; junto com Tiago e Pedro é uma das testemunhas da transfiguração; é o único dos doze que segue Jesus até o último momento da crucificação, ficando ao lado de sua mãe e recebendo do Mestre a incumbência de dela cuidar.

Em termos de importância, considerando a legitimidade da autoria, João é responsável por 5 escritos dos 27 do Novo Testamento. Além do Evangelho, três epístolas e o peculiar livro da Revelação, mais conhecido como Apocalipse, são atribuídos a esse autor.


Características distintivas

Nada menos do que cerca de 80% do Evangelho de João se constitui de material exclusivo desse texto, não tendo paralelo com os demais Evangelhos. Por isso, mais do que relacionar as principais narrativas exclusivas, é importante considerar as características gerais desse texto.

Em primeiro lugar é um Evangelho mais espiritual do que os demais; o texto nada registra sobre a infância de Jesus e inicia com os célebres versículos sobre o verbo e seu papel desde o princípio da criação do mundo; atribui uma grande importância a figura de outro João, o Batista; demonstra uma profunda reverência pela figura de Jesus, o que pode ser atestado pelas expressões Ἐγώ εἰμι (ego eimi - eu sou) atribuídas a Jesus:

- Eu sou o pão da vida (Jo 6.48);

- Eu sou a luz do mundo (Jo 8.12);

- Eu sou a porta das ovelhas (Jo 10.7-9);

- Eu sou o bom pastor (Jo 10.11);

- Eu sou a ressurreição e a vida (Jo 11.25);

- Eu sou o caminho, a verdade e a vida (Jo 14.6).

Dignos de notas são os grandes discursos de Jesus, ausentes nos demais Evangelhos. Em nenhum outro texto temos narrativas tão extensas do que o Cristo fala.

Peculiar também é a forma como esse Evangelho narra os chamados milagres. Em primeiro lugar, somente a multiplicação dos pães encontra paralelo nos demais Evangelhos. Todos os demais feitos extraordinários atribuídos a Jesus, narrados neste texto, são encontrados exclusivamente aí, tais como: a ressurreição de Lázaro (Jo 11.1-45) e a transformação da água em vinho nas bodas de Caná (Jo 2.1-11). Além disso, a forma pela qual João denomina esses feitos distingue-se dos demais. Enquanto nos sinóticos os feitos extraordinários de Jesus são denominados de δυναμις (dynamis) ou θαυματός (thaumatós) e traduzidos frequentemente como “milagres” ou “coisas maravilhosas”, em João eles são chamados de σημεῖον (sêmeíon) “sinais” ou “eventos que têm um significado especial”.

A passagem da mulher pega em adultério também merece destaque. Embora em alguns manuscritos importantes, como o Codex Sinaiticus, essa perícope não esteja incluída no Evangelho de João ou apareça em locais diferentes, a beleza dessa narrativa chegou até nós quase exclusivamente através desse Evangelho. O fato de ela não fazer parte de alguns manuscritos aponta para a possibilidade de interpolações e inclusões posteriores, mas sem comprometer a unidade desse Evangelho, que é um dos seus elementos característicos.

Esse Evangelho também é o único que traz a promessa da vinda do παράκλητος (parácletos) em Jo 14:16. Essa palavra merece alguns esclarecimentos, pela forma algumas vezes simplória com que é tratada. Ela está entre as mais difíceis de serem traduzidas, face a vasta gama de significados que ela traz n e que dificilmente encontra uma única palavra que possa traduzir todos os seus sentidos nos idiomas modernos. Normalmente traduzida por consolador, que remete ao ato de levar consolo a alguém que sofre, seus significados vão muito além disso, envolvendo, também, o de esclarecer, de defender e de estar ao lado. n

A estrutura do Evangelho de João também já foi objeto de várias propostas, embora nenhuma delas possa ser considerada absoluta e definitiva. Uma das mais comuns é que esse texto teria uma forma semelhante ao templo de Jerusalém, dividido em três partes, sendo a primeira aberta a todos, correspondendo à pregação pública de Jesus (Capítulos 1-12); uma mais interna, restrita somente aos sacerdotes, cujo paralelo seria os ensinos do Cristo aos seus apóstolos e discípulos mais íntimos (Capítulos 13-17); e uma terceira (Capítulos 18-19), acessível somente ao sumo sacerdote, que corresponderia ao sacrifício de Jesus na cruz. Outros ainda propõem uma estrutura baseada nas festas judaicas, que recebem nesse texto uma atenção superior a que está presente nos demais. Ainda existem os que o distinguem pelos “9 dias”, fazendo referência a que um terço das narrativas se passa nos nove dias que antecedem a crucificação. Em função das divergências, essas propostas devem ser vistas mais como apoio ao estudo e às possibilidades interpretativas do que representações conclusivas da intencionalidade autoral.

A grande quantidade de material exclusivo tem suscitado várias hipóteses sobre qual teria sido a razão que justificou um texto tão distinto dos demais. Uma dessas hipóteses baseia-se no fato de que, salvo raras exceções, o Evangelho de João é tido como sendo o último dos quatro Evangelhos a ser escrito, o que teria ocorrido entre os anos 70 e 90. Dessa forma, os outros Evangelhos já estavam em circulação e as narrativas neles presentes seriam de conhecimento da maioria dos seguidores de Jesus. João teria, segundo essa hipótese, desejado complementar e incluir narrativas que não eram tão conhecidas, bem como sustentar a fé na figura de Jesus, ressaltando o seu aspecto divino, o que seria muito útil em um momento no qual se exacerbava o antagonismo aos cristãos.


Perspectiva espírita

Tanto a figura de João Evangelista quanto o próprio texto do seu Evangelho tiveram, desde cedo, papéis importantes na Codificação Espírita. Ele é o primeiro nome a fazer parte da lista que Allan Kardec apresenta nos prolegômenos de O Livro dos Espíritos, relacionando os Espíritos que contribuíram com a Codificação. Em O Evangelho segundo o Espiritismo, Capítulo VIII, item 18, há uma mensagem atribuída a João Evangelista.

O livro Boa nova, de Humberto de Campos, pela psicografia de Francisco Cândido Xavier, traz importantes informações sobre João e a narrativa que ele nos legou. Em relação à personalidade dele e do irmão Tiago, Humberto de Campos nos informa que eram “[…] de temperamento apaixonado. Profundamente generosos, tinham carinhosas e simples, ardentes e sinceras as almas.”. n Em relação ao texto do quarto Evangelho, há também contribuições. Muitos estudiosos já observaram o caráter às vezes dualista de algumas passagens, atribuindo, principalmente após a descoberta dos manuscritos do Mar Morto, e de maneira quase sempre exagerada, uma forte influência da seita sectária dos essênios sobre o texto do quarto Evangelho. Os laços de João com os essênios se tornaram, então, motivo de especulações variadas. Humberto de Campos, na referida obra, narra que de fato João ficara interessado em conhecer a doutrina dos essênios e que procurara um amigo que com eles se instruía a fim de conhecer, “de perto, os pontos de vista, em matéria das relações da comunidade com Deus […]”. n O quanto isso influenciou algumas passagens do Evangelho de João é ainda uma questão em aberto.

A partir da perspectiva espírita, talvez o elemento que mereça maior destaque é que a própria Doutrina Espírita, no seu tríplice aspecto, realiza a promessa de Jesus registrada no Evangelho de João de que mais tarde enviaria um outro consolador, que faria lembrar tudo o que Ele havia dito e ensinaria muito do que àquele tempo não lhe foi possível esclarecer. n

O Evangelho de João é o registro de alguém que, desde jovem, recolheu com entusiasmo e admiração a mensagem eterna da Boa-Nova. É um repositório de impressões pessoais e profundas dos momentos de convivência íntima em que o Mestre legava aos mais próximos as luzes do Seu ensino. É ainda o testemunho de alguém que, diante das amarguras da cruz, vencendo o ímpeto inicial de fugir, manteve-se fiel até o fim de seus dias. É, por isso, um convite aos sentimentos de entusiasmo e otimismo, gratidão e perseverança, fé e esperança, em todos os momentos de nossas vidas, porque ao nosso lado está a figura que congrega, ao mesmo tempo, a direção dos destinos humanos e a posição de amigo sincero e próximo, como Ele mesmo nos disse: “Não mais vos chamo de servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor. [Eu] vos tenho chamado de amigo […].” (Jo 15.15)





Fac-símile do comentário mais antigo a integrar a coleção, referente a Jo 10:30, publicado em novembro de 1940 na revista Reformador.


Saulo Cesar Ribeiro da Silva



[1] Para um boa referência sobre a gama de significados desta palavra, ver Léxico grego-português do novo testamento, edição de 2013, página 410 - nota de rodapé 4 no domínio semântico 35.16.


[2] Ver o comentário de Allan Kardec no capítulo VI item 4 de O Evangelho segundo o Espiritismo.


[3] XAVIER, Francisco Cândido – Boa Nova – pelo Espírito Humberto de Campos, capítulo 4.


[4] Id. Ibid., capítulo 19.


[5] Ver O Evangelho segundo o Espiritismo - Capítulo VI - O Cristo Consolador - item “O Consolador Prometido”.


Abrir