PEDRO LEOPOLDO, † 10 de maio — (Especial para O GLOBO, por Clementino de Alencar) — Motivos particulares e imperiosos nos haviam levado de volta ao Rio, nos últimos dias de abril. Assim, tivemos de abandonar, por pouco mais de uma semana, o círculo sedutor e impressionante dos fatos e revelações em torno dos quais desdobramos — tanto quanto possível com a atenta e silenciosa isenção dos espelhos — as nossas reportagens anteriores.
Não déramos, porém, o assunto como encerrado. Pelo contrário, mais do que nunca se nos apresentava ele tentador e extenso diante dos nossos olhos e das nossas indagações — como uma perspectiva de incógnitas que se perdesse ao longe, nas brumas. E, dominados os motivos que nos haviam arredado, momentaneamente, de Pedro Leopoldo, eis que o repórter e o fotógrafo, retomam o rumo do planalto altivo, da velha Minas tradicional, heroica e serena que nos reafirma e adverte, no bronze e no granito de seus monumentos:
— Montani semper liberi. [Montanhistas (são) sempre livres]
Agora sim
De novo, pois, se rasgaram aos nossos olhos, os horizontes da tradição e da legenda. De novo o Ribeirão da Mata, o Rio das Velhas, a Santa Luzia, na sucessão infindável das colinas coroadas dos coqueiros que ficaram do século XVII — o rústico, mas seguro balisamento da marcha das bandeiras.
E agora sim, ao contrário da outra vez, nós encontramos em Pedro Leopoldo, apenas saltamos, a mais amável e tocante das recepções: o sorriso da menina do café.
Depois, a outra menina, a cidade, sempre bonita e simpática, nos reconhece e nos sorri também.
E não tarda que, diante da mesa concorrida e farta do Hotel Diniz, reencontremos o mesmo ambiente de expansiva e grata hospitalidade que já nos seduzira da outra vez. E nem faltam ali — para a sensação de que os dias não passavam — os “casos de assombração” e as anedotas da fulaninha…
A inundação
A par dessa sensação de reencontro amável, uma constante se vai impondo às nossas observações: o assunto “Chico Xavier” transbordou, irreprimivelmente, do leito já largo por onde corria quando demos com ele, da primeira vez, e nos pusemos a lhe acompanhar o curso. Agora, encontramos a inundação, lavando a campanha, o sertão. Nem a capital escapou de todo. Apenas as crianças a torrente ainda não pode colher; para estas, por enquanto, só há, ao que parece, uma coisa que as preocupa deste e do outro mundo: as figurinhas das balas de açúcar, a mania que agita e absorve o mundo liliputiano da região.
A primeira novidade
A primeira novidade que encontramos, apenas desembarcamos, é a presença aqui de mais um médium, o Sr. José Ribeiro Sobrinho.
Enquadrado, por sua qualidade, dentro do assunto que mais anima as palestras, o Sr. Ribeiro Sobrinho também chama um pouco as atenções. É médium de incorporação e vidente. Sua presença, aqui, prende-se, ao que parece, à repercussão do caso Chico Xavier. E a sua presença, para o repórter, desperta desde logo interesse, pelo seguinte: ele quer comparecer à primeira sessão dos irmãos Xavier, o que aguça, sobremodo, as expectativas…
No balcão
Fomos encontrar Chico Xavier, à tarde, no seu posto de costume: o balcão de “seu” Zé Felizardo.
O rapaz está assombrado… Não com os mortos, mas com os vivos. Inquieta-o, na sua humildade, o receio de que o façam “importante”.
Fala quase como quem suplica:
— Eu tenho medo dessas notícias… Faço a minha religião no silêncio… Poderia parecer aos meus amigos e companheiros de crença que eu quero publicidade… Preferia ficar obscuro, desconhecido… Deus é testemunha de que eu vivo sem interesses materiais.
Depois deste exórdio com que costuma receber o repórter, e da sua esquivança à objetiva — “Ora, eu estou todo despenteado…” — Chico Xavier vai admitindo, aos poucos, a pergunta e a confidência.
Assim, revela-nos que, depois da sessão de 24 de abril, adoeceu ligeiramente, atribuindo isso ao esforço despendido naquela reunião, para psicografar as mensagens — que já publicamos — apesar das perturbações que a assistência, agitando-se um pouco, produzira na “corrente”.
Restabeleceu-se, porém, rapidamente, e está pronto a continuar a exercer sua missão de médium.
Aliás, a 28 de abril, Chico Xavier já teve um dos seus “transes” solitários e colheu então uma curiosa mensagem de que nos ocuparemos a seguir, com um cuidado muito especial, porque ela nos diz respeito…
O Homem e o Espírito
Da produção colhida durante esse “transe” limitar-nos-emos a enviar hoje dois sonetos de Augusto dos Anjos.
Um deles intitula-se “Espírito” e apresenta-se bem grafado, bem coordenado.
É este: n
ESPÍRITO
Busca a Ciência o Ser pelos ossuários,
No órgão morto, impassível, atro e mudo;
No labor anatômico, no estudo
Do germe, em seus impulsos embrionários;
Mas só encontra os vermes funcionários
No seu trabalho infame, horrendo e rudo,
De consumir as podridões de tudo,
Nos seus medonhos ágapes mortuários.
No meio triste de cadaverinas
Acha-se apenas ruína sobre ruínas,
Como o bolor e o mofo sob as heras;
A alma que é Vibração, Vida e Essência,
Está nas luzes da sobrevivência,
No transcendentalismo das Esferas.
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Augusto dos Anjos
O outro soneto intitula-se “Homem”. E quanto a esse, fizemos uma observação interessante: a certa altura, na segunda quadra, as palavras, os versos, sob os imperativos da métrica de tal forma se enredam, que o sentido se torna um tanto confuso. O médium reconhece isso. A nós, parece também que o verso “Faz-se mister de lágrimas que o domem” contém um erro vulgar de concordância e um “de” a mais [corrigido por nós para: Faz-se mister que lágrimas o domem].
Sem indicarmos o ponto que nos parecia errado e admitindo, com o médium, que o sentido da quadra apresentava um tanto confuso, propusemos — com intenção — que ele, levando em conta o fato de grafar, às vezes, com ligeiros senões, as mensagens, fizesse, nos versos citados, a correção.
Chico Xavier não soube, porém, corrigir… Quanto ao sentido confuso observou-nos que, em geral, os “Espíritos” voltam para fazer as correções no que tenha sido mal grafado ou não tenha sido compreendido. No caso desse soneto, todavia, Augusto dos Anjos não voltara.
E ele por si não saberia desenredar aqueles versos… O soneto referido é o seguinte:
HOMEM
Na misteriosa solidariedade
Das células vitais que se consomem,
Vive a alma encarnada, em síntese o homem,
Educando atributos da vontade.
Buscando o Ser os fios da verdade
Faz-se mister que lágrimas o domem
Mas não encontra estigmas que o tomem
Dos aguilhões da hereditariedade.
No tormento estiomeno, profundo
Vivem todos os seres sobre o mundo
Desalentados, frágeis e famintos…
Vives querendo a luz ignorada
E ouves somente, oh! alma encarcerada,
A triste orquestração dos teus instintos.
Augusto dos Anjos
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Clementino de Alencar
[1] Essa mensagem foi também publicada pela FEB e é a 19ª do 15º capítulo do
livro “Parnaso de Além-Túmulo”