“Meu Brasil querido” ainda escreve Casemiro de Abreu
PEDRO LEOPOLDO, † 11 (Especial para O GLOBO, por Clementino de Alencar) — Não faz de certo ainda meia hora que Chico Xavier nos deixou. Ele nos viera trazer, gentileza sua, todo o arquivo de produções psicografadas que põe bojuda sua pobre pasta de papelão. Essa gentileza, entretanto, veio como um remate inesperado ao fim de séria relutância. Ele não queria — e assumia um grande ar de sinceridade ao no-lo dizer, à tarde — continuar a aparecer no noticiário dos jornais. Perturbava-o, assombrava-o mesmo esse clarão repentino de publicidade. Por que, era então sua indagação inquieta, procurar iluminar, assim, de chofre, a sua obscuridade pobre, mas que lhe resultava grata, como a melhor conquista de suas renúncias a bens terrenos?…
Àquela hora, não conseguíramos demovê-lo de todo. Deixando-o, porém, ao fim da palestra rápida, no balcão do seu destino, o balcão do Zé Felizardo, deixamos também, no chão sincero de suas resistências, uma semente de meditação. A semente feliz germinou, rápida, como no milagre oriental, e não tardou que vicejasse na fronde bonita da reconsideração. Poucas horas depois, à noite, conforme pedíramos, ele nos trouxe o arquivo de suas estranhas mensagens, naquela mesma pasta pobre que manuseáramos já. E assim fazendo, reconsiderava: que se dispunha ainda por algum tempo, a encarar os clarões e arrostar os percalços da publicidade para que ninguém supusesse ter ele receio de se submeter aos “testes” da curiosidade e das análises.
E ainda mais: com sua pasta, trouxe-nos também suas confidências de médium.
A palestra foi longa e quase que toda entregue à sua palavra. Agora, ele já se foi. Aí nos ficou esse mundo de páginas que se espalham aos nossos olhos como o jorro abundante de um manancial ignoto tal como nem o mar, que foge ao longe do alcance de nossas vistas, lamber-nos os pés, na praia, com as ondas delgadas e mansas das suas horas tranquilas, quando chegamos não raro a esquecer-nos de que aquela carícia, que as areias bebem, é apenas um fugidio detalhe na imensidão…
O estranho noturno
Pela janela percebemos, lá fora, a escuridão quase sem estrelas.
A treva, já de há muito, como no verso de Junqueiro, veio apagar a luz para espreitar a vida. A noite vai alta.
E as páginas ali deixadas pelo médium e as palavras de suas confidências que ainda se embalam como que reais e sonoras, na rede atenta da nossa escuta, compõem, para a revoada da nossa meditação, um estranho noturno.
Como num transe…
Esta noite quando ele chegou, o escrevente humílimo, não sei que impressionante vibração era aquela que havia em sua voz. Parecia falar-nos com uma inspiração nova, com uma palavra mais fácil, uma frase mais elegante e flexuosa do que dantes. Por vezes era brilhante imagem que ele traçava de suas ideias. Surpreendia-nos então; e nos púnhamos a mirá-lo mais atentamente, à procura do Chico Xavier do balcão. Seria ainda o caixeirinho de sorriso ingênuo que ali estava ou era apenas um imprevisto inspirado que nos falava assim?…
Não saberíamos separar um e outro, no estilo daquelas confidências. Eles se confundiam tanto…
E pusemos a escutar Chico Xavier, na impressão de o termos ali em transe…
Mecanicamente
Lançáramos de início algumas perguntas compostas sobre nossas observações de outros dias.
— Quando grafo as mensagens nas sessões, eu só faço-o mecanicamente. Um torpor pesado, prolongado, me invade. Serão realmente dos nomes que as assinam as páginas então produzidas?… Eu não poderia responder precisamente, porque, então a minha consciência como que dorme. De uma coisa, porém, julgo estar certo: não posso considerar minhas essas páginas porque não despendi nenhum esforço intelectual, nem ao grafá-las no papel.
Entre este e o outro mundo…
Alternadamente com o inesperado, vai aparecendo o caixeirinho:
— O torpor é assim profundo, mas com o auxílio do silêncio. Um chamado brusco, por exemplo, me perturba, me sobressalta, causa-me até mal físico. Há dias, eu estava nos fundos da venda, presa de um desses imprevistos torpores. Depois, por lento transporte, senti-me, ainda adormentado, num mundo diferente. Ouvia cantos bonitos, parecia-me que também a voz de minha mãe. De repente ouvi uma voz áspera a gritar:
— Me dá um quilo de toucinho!…
Era um freguês. Que coisa horrível eu senti. Foi como se eu caísse de um sobrado. E compreendendo que, se o freguês gritava era por já haver falado várias vezes.
Auditivo
À outra indagação nossa, ele responde que nem sempre é assim, escrevente mecânico. Às vezes torna-se auditivo. Ouve então poesias e preleções inteiras, como se estivesse “fora de si mas sem perder inteiramente a consciência de si mesmo”. Unicamente, depois desse transe auditivo, guarda a impressão de que ouvia, mas não saberia grafar o escutado.
Fenômeno dentro de outro fenômeno?
Expõe ainda Chico Xavier um caso que lhe ocorre, como se fosse um fenômeno dentro de outro, pois traz uma diferença de seus transes habituais. Foi isso mais evidente na ocasião em que psicografou a poesia “O Padre João”, constante do “Parnaso de Além-Túmulo” e assinado Guerra Junqueiro.
Quando grafou essa poesia, parecia-lhe ver as imagens na sequência em que se apresentavam elas nos versos: o sacerdote no templo, depois abandonando-o e por fim despindo a batina, definitivamente.
Música e sonho consciente
Como falássemos em música, ele nos diz:
— A música me produz uma excitação muito especial que pode me levar ao transe, mas também, mais comumente, a uma espécie de sonho consciente. Aliás, esse sonho consciente me ocorre muitas vezes. E digo consciente, porque não perco de todo a ligação comigo mesmo. Unicamente, minhas sensações são curiosas; às vezes, parece que, como se estivesse do meu próprio lado, vou pôr a mão na minha cabeça, tocar no meu próprio corpo, na minha própria carne.
Os Espíritos e a pátria
Manifestamos certa estranheza ao médium pelo fato de alguns dos Espíritos que com ele se comunicam demonstrarem ainda um sentimento de pátria. Numa página psicografada de Casimiro de Abreu lêramos, por exemplo, “meu querido Brasil”.
Chico Xavier confessa que essa pergunta já lhe ocorrera. E os Espíritos, a essas e outras indagações do gênero, costumam atender com esta explicação:
“— Se nós formos dizer as coisas, as sensações e estados daqui como eles são, não seremos entendidos, porque os da Terra não têm palavras que representem ou exprimam tudo aquilo. E se falamos um tanto à maneira dos homens, e buscamos o nosso estilo, é para sermos identificados, reconhecidos.”
Espíritos que parecem vivos
Outro ponto curiosíssimo que guardamos das confidências do médium, é este:
Conta-nos ele haver Espíritos que lhe fazem, às vezes, perguntas como se fossem vivos. O médium manifesta-lhes essa impressão e os Espíritos respondem: muitos deles parece que ainda sentem sobre si os despojos terrenos, o corpo e as impressões físicas. Nessas circunstâncias, eles se manifestam ao médium de uma tal maneira que esse pode ter a impressão de estar falando com um “vivo”. Unicamente, o médium poderá fechar o mais possível os “ouvidos”: continuará a ouvir o que lhe comunique o Espírito…
O noturno, o sono e o sonho.
E o noturno continua, para a revoada da nossa meditação. A escuridão, lá fora, já se esbate na madrugada. Nossa cabeça pende, sonolenta. Mas quando a deixamos pender de todo, sentimos que ainda as palavras do médium continuam, como “que ainda reais e sonoras” a acompanhar os nossos pensamentos como um sonho…
Clementino de Alencar