1.
Encerrada a semana de estudos que me propusera e guardando valores novos
no espírito, acompanhei Calderaro, em pleno crepúsculo, à benemérita
fundação nas zonas inferiores, a que o Assistente chamara “Lar de Cipriana”.
2 Extremamente perplexo, ante
o problema que me demandava a atenção, qual o de reencontro inesperado
com meu avô, não me sobravam, agora, motivos para longas perquirições
de ordem filosófico-científica junto à privilegiada cultura do instrutor,
prestes a despedir-se.
3 A pesquisa cedera lugar
à meditação, o raciocínio ao sentimento. Recolhera extenso material
referente às manifestações da mente, obtendo valiosas conclusões para
definir os desequilíbrios da alma; examinara diversos doentes, com os
quais travara relações; identificara moléstias cujas causas se prendiam
às mais profundas e menos conhecidas raízes do espírito; entre as novidades,
porém, encontrara um enfermo que me transferira, da ardente curiosidade
intelectual às acuradas reflexões no tangente ao destino e ao ser.
4 Reconhecia, agora, que,
para conseguir a sabedoria com proveito, era indispensável adquirir
amor.
Naqueles instantes, calavam em meu ser as perguntas inquietas, sofreadas pelo coração dolorido.
Poderia, em verdade, ter avançado muito no domínio dos conhecimentos novos, conquistado simpatias prestigiosas, renovado as concepções da vida e do Universo, melhorando-as; no entanto, de que me valeriam semelhantes troféus, se me não fosse possível socorrer um benfeitor em dificuldade?
2.
De pensamento fixo na surpreendente questão da hora, cheguei, em companhia
de Calderaro, à enorme instituição em que Cipriana administrava o constante
benefício de seu devotamento fraternal.
2 Tratava-se, a meu ver, de
casa socorrista diferente de quantas conhecia; parecia grande centro
de trabalho propriamente terrestre.
3 A maioria dos companheiros
que aí se agitavam não eram portadores de luminosa expressão, mas típicas
personalidades humanas em processo regenerador. Com exceção de Cipriana
e dos assessores que lhe compunham o séquito, a comunidade, não pequena,
era formada de criaturas evidentemente inferiores: homens e mulheres
análogos, no aspecto, aos que povoam os Círculos carnais.
4 Como acontecia habitualmente,
Calderaro me veio em auxílio, esclarecendo:
— Irmã Cipriana idealizou este amorável reduto de restauração espiritual, e concretizou-o, usando os próprios irmãos sofredores e perturbados que vagueiam nas regiões circunvizinhas.
5 É claro que não
reside sistematicamente aqui; todavia, neste colégio regenerador passa
grande parte do tempo, que consagra ao seu ministério santificante nas
Esferas de baixo nível de evolução. 6
No fundo, a organização funciona, sob a vigilância dos próprios companheiros
que vão melhorando. Trata-se, pois, de importante escola de reajustamento
anímico, de autorreconhecimento e de preparação, para indivíduos de
boa vontade. 7 Nossa
benemérita amiga iniciou a obra e tornou-se-lhe provedora fidelíssima.
Contudo, o instituto é de região inferior para criaturas que desejem
melhorar suas condições de existência. 8
Educandário de trânsito, sob a ação direta dos que dele colhem proveito,
passou, destarte, a valioso núcleo de instrução e de amparo. Individualidades
libertas da carne, em penosas condições íntimas nos setores do conhecimento,
aqui recebem precioso concurso, a fim de se readaptarem convenientemente
à vida.
9 Grupos diversos de mediana
condição dirigiam-se para um edifício ao centro da vastíssima organização,
no qual adivinhei o templo votado à prece.
10 Muitos companheiros se encaminhavam
céleres, conversando, ao nosso lado. Havia ali tanta gente alegre e
tanta gente preocupada, como em qualquer via pública de grande cidade
no Plano denso; tive a impressão de que visitávamos enorme universidade,
situada em clima sombrio.
11 Embora, quanto ao aspecto,
fossem distintos entre si, quer os pequenos, quer os numerosos ajuntamentos
de irmãos, que aí se moviam, eram idênticos uns aos outros pela nota
viva de esperança, que a todos luzia no olhar percuciente. Quantos se
nos deparavam, exibiam atitude iniludível de trabalho e de renovação;
ainda mesmo os aleijados e doentes que aí estacionavam, em grande número,
mostravam disposições de otimismo transformador.
12 — A venerável
instrutora, — prosseguiu, benévolo, o Assistente, — montou aqui verdadeira
oficina de restauração do espírito. Antigos expoentes do orgulho que
entre os homens se engrimponavam na vaidade e no crime, depois de bastos
anos de purgação, e ao demonstrarem propósitos reedificantes, são recolhidos
a esta casa, onde reorganizam sentimentos e cabedais, a caminho do porvir.
13 Daqui, como de
outras instituições do mesmo gênero, localizadas em plenas regiões expiatórias,
saem inúmeras reencarnações retificadoras. O programa fundamental de
Cipriana é o esquecimento do mal com a valorização permanente do bem,
à luz da esperança em Deus. 14
A princípio, a organização custou-lhe muitos sacrifícios, em matéria
de tempo e de direito que lhe mereciam os méritos pessoais; no transcurso
dos anos, porém, elementos por ela mesma formados passaram a superintender
a obra e a conservá-la.
3.
Ponderava eu a bondade e a sabedoria daquela estrênua missionária, pronta
a todo serviço de colaboração superior, recordando meu próprio caso
ante meu demente avô emaranhado nas sombras, quando penetramos o santuário,
onde sua voz se faria ouvir na oração. Cercavam-na diversas criaturas
que lhe eram conhecidas.
2 Um cavalheiro, visivelmente
confortado, dizia-lhe, reverente:
— Seguindo-lhe os conselhos, Irmã, não mais senti pesadelos. Renovei minha atitude para com os familiares: passei a cooperar, ao invés de combater.
— Agora, sim! — Exclamou Cipriana, satisfeita; — o bem duradouro é filho da
colaboração fraternal. Você verá quão sensível diferença para sua felicidade
se verificará em torno de seus passos.
3 — Irmã, — falou-lhe
simpática senhora, — minha situação é outra. Agora, reparo que o mundo
não foi edificado para mim, e que me cumpre a obrigação de trabalhar
em benefício do mundo.
A respeitável interlocutora estampou bela expressão fisionômica e observou:
— Seu progresso é visível. O esquecimento de nossos caprichos pessoais dilata-nos a compreensão.
4 Trêmulo velhinho, com todas
as características de recém-desencarnado, dirigiu-se a ela, de olhos
rasos d’água.
— Irmã, — balbuciou, triste, — ainda experimento os antigos achaques. Há instantes
em que me sinto cair, perdendo a noção de mim mesmo, para despertar
em seguida, aflito…
A orientadora acariciou-o, discreta, encorajando-o:
— É natural. Esteja, porém, convicto de que a situação melhorará. Gastamos, às vezes, anos, armazenando impressões que naturalmente não se esvaem nalguns dias.
4.
Outros companheiros se aproximavam com o evidente intuito de ouvi-la,
mas, notando-nos a presença, veio, sorridente, até nós, informando,
obsequiosa:
2 — André, o problema
de nosso enfermo já foi providenciado, em todas as particularidades
suscetíveis de solução imediata. 3
Cláudio demorar-se-á no recolhimento até que se apresente em condições
de mudança para nosso instituto regenerativo. Aqui se preparará convenientemente
para o retorno aos Círculos carnais. 4
Tudo se processará com a harmonia desejável. Além disto, nossos cooperadores
estão instruídos quanto ao auxílio que devemos a Ismênia para a concretização
de seus ideais.
5 Agradeci, confundido e sensibilizado,
rendendo graças a Deus. Nosso entendimento não se prolongou. O sinal
da oração chamava-nos ao alegre e doce dever.
Cipriana, assumindo a direção da prece, fez-se acompanhar pelos colaboradores diretos que a seguiam no momento.
6 De alma genuflexa, vi-a
de olhos erguidos para o alto, de onde jorrava intensa luz sobre a sua
fronte… Do tórax, do cérebro e das mãos brotavam radiosas emissões de
força divina, das quais ela se constituía visível intermediária para
nós todos.
7 Alcançados pelos fulgurantes
raios que fluíam de Esfera superior através de sua personalidade sublime,
sentíamo-nos embalados por indizível suavidade…
Harmonioso coro de uma centena de vozes bem afinadas cantou inolvidável hino de louvor ao Supremo Pai, arrancando-me copiosas lágrimas.
5.
Logo após, a palavra comovente da instrutora vibrou no ambiente, exorando
a proteção do Cristo:
2
Senhor Jesus,
Permanente inspiração de nossos caminhos,
Abre-nos, por misericórdia,
Como sempre,
As portas excelsas
De tua providência incomensurável…
3 Doador
da Vida,
Acorda-nos a consciência
Para semearmos ressurreição
Nos vales sombrios da morte;
4 Distribuidor
do Sumo Bem,
Ajuda-nos a combater o mal
Com as armas do espírito;
5 Príncipe
da Paz,
Não nos deixes indiferentes
À discórdia
Que vergasta o coração
De nossos companheiros sofredores;
6 Mestre
da Sabedoria,
Afugenta para longe de nós
A sensação de cansaço
À frente dos serviços
Que devemos prestar
Aos nossos irmãos ignorantes;
7 Emissário
do Amor Divino,
Não nos concedas paz
Enquanto não vencermos
Os monstros da guerra e do ódio,
Cooperando contigo,
Em tua augusta obra terrestre;
8 Pastor
da Luz Imortal,
Fortalece-nos,
Para que nunca nos intimidemos
Perante as angústias e desesperos das trevas;
9 Distribuidor
da Riqueza Infinita,
Supre-nos as mãos
Com teus recursos ilimitados,
Para que sejamos úteis
A todos os seres do caminho,
Que ainda se sentem minguados
De teus dons imperecíveis;
10 Embaixador
Angélico,
Não nos abandones ao desejo
De repousar indebitamente,
E converte-nos
Em teus servidores humildes,
Onde estivermos;
11 Mensageiro
da Boa Nova,
Não permitas
Que nossos ouvidos adormeçam
Ao coro dos soluços
Dos que clamam por socorro
Nos círculos do sofrimento;
12 Companheiro
da Eternidade,
Abençoa-nos as responsabilidades e deveres;
Não nos relegues à imperfeição
De que ainda somos portadores!
13 Dá-nos,
Amado Jesus, o favor de servir-Te
E que o Supremo Senhor do Universo Te glorifique
Para sempre.
Assim seja!…
|
6.
Fizera-se resplandecente o recinto do santuário. 2
Vi, então, através do espesso véu de lágrimas que me assomavam aos
olhos, que maravilhosa coroa de brilhantes evanescentes cintilou, por
instantes, na cabeça venerável daquela missionária do bem, como se ali
fora instantaneamente colocada por mãos invisíveis…
3 Encerrada a reunião, Cipriana,
com admirável simplicidade, veio despedir-se de mim.
Por que não dizer? Tinha meus olhos velados de pranto, desejaria segui-la como filho reconhecido para sempre, tais a sabedoria e o amor que lhe transbordavam do espírito glorificado.
4 Calderaro foi o primeiro
a abraçar-me, fazendo votos de boa viagem, a que não pude responder,
sufocado pela intensa comoção. Os demais companheiros saudaram-me, enternecidos,
e, por fim, Cipriana apertou-me ao peito, beijou-me maternalmente, e
disse com olhos úmidos:
— Que o Pai te abençoe. Nunca te esqueça a bondade no desempenho de qualquer obrigação.
5 E talvez porque me visse
tão fundamente sensibilizado, acrescentou:
— Estaremos unidos pelo espírito.
6 Desvencilhei-me dos seus
braços com as saudades do filho, em cujo santuário interior jamais se
extingue a chama da gratidão.
7 De volta, agora, aos trabalhos
que me aguardavam, solitário e comovido, aspirei os perfumes da noite
clara que se povoava de prodigiosas mensagens dos astros coruscantes…
— Misericordioso Senhor, — supliquei, mentalmente, — digna-Te abençoar o verme
que eu sou!…
8 Tive a impressão de que
meu coração pulsava, túmido, dentro do peito. À frente dos meus olhos
faiscavam constelações, indicando gloriosos destinos, no futuro infindável…
E ponderando, em silêncio, a grandeza de Deus, verti copioso pranto de júbilo, dando guarida às intraduzíveis sensações que me invadiam a alma, extasiada e feliz sob nova esperança!
André Luiz
FIM