1.
Quando Cipriana regressou, em companhia dos demais amigos, encontrou-me
banhado em lágrimas; e ouviu a estranha narrativa de meu avô semilúcido.
Esboçou complacente gesto e disse, bondosa:
— Sabia, André, que não terias vindo para nenhum resultado.
2 Em rápidos minutos descrevi-lhe
a ocorrência, prestando-lhe todos os informes sobre o passado.
3 A diretora ponderou, serena,
a minha digressão através do pretérito e obtemperou:
— Dispomos de tempo curto; e, como não será possível ao doente acompanhar-nos, cumpre interná-lo já em algum recolhimento, aqui mesmo.
4 Meu avô, mau grado ao júbilo
de me haver reconhecido, não guardava razoável equilíbrio: pronunciava
frases desconexas, em que o nome de Ismênia era repetido a cada passo.
— Não podemos esquecer, — acentuou a venerável instrutora, — que o
irmão Cláudio precisa de tratamento e de cuidado. É impossível prever
quando se achará em condições de respirar atmosfera mais elevada.
5 Assim dizendo, generosa
e meiga, auscultou o velhinho semilouco, examinando-o maternalmente.
Decorridos alguns instantes, informou:
— André, nosso enfermo, para melhorar com mais rapidez e eficiência, deveria retornar à experiência carnal.
6 — Neste caso, então, — disse
eu, humilde, — poderíamos merecer seu auxílio, Irmã?
— Como não? Em se tratando de reencarnação por meras atividades reparadoras,
sem projeção nos interesses coletivos, de modo mais amplo, nosso concurso
pessoal pode ser mais decisivo e imediato. Temos nestes sítios grande
número de benfeitores, providenciando reencarnações em grande escala
nos Círculos regenerativos. Vejamos como estudar a situação futura deste
irmão.
2.
Submeteu o doente a carinhoso interrogatório.
O ancião, comovido, contou que seu genitor, ao se casar, conduziu para
o lar uma filha de sua mocidade turbulenta, a qual a mãezinha acolhera
com doçura. Essa irmã lhe fora, mais tarde, ama desvelada, tornando-se-lhe
credora de justa gratidão. 2
Todavia, enceguecido pelo propósito inferior de possuir dinheiro desmedidamente,
despojou-a dos bens que lhe cabiam, por ocasião do falecimento dos pais,
que, vitimados por febre maligna, o haviam deixado em vésperas de casamento.
3 Ismênia, espoliada,
depois de chorar e reclamar debalde, foi compelida a homiziar-se em
residência de família abastada, que lhe cedeu, por favor, um lugar de
copeira com remuneração desprezível. 4
Soube que, premida por dificuldades materiais de toda a sorte, desposara
um analfabeto, homem rude e cruel, que a seviciara e lhe dera algumas
filhas em dolorosas condições de miserabilidade. 5
Exposto o desvio máximo de seu caminho, passou a comentar os indignos
ideais que nutria no terreno da sovinice, estremecendo-nos os corações.
6 Cipriana, demonstrando-se
habituada aos problemas daquela natureza, esclareceu-me:
— Já conhecemos dois pontos essenciais para os serviços que lhe competem: a necessidade da reaproximação com Ismênia, que não sabemos onde se encontra, se encarnada ou não, e o imperativo da pobreza extrema, com trabalho intensivo, para que reeduque as próprias aspirações.
3.
De posse do endereço provável dos descendentes da irmã outrora espezinhada,
Cipriana recomendou a dois companheiros nossos se encarregassem de rápida
investigação na Crosta Terrestre, a fim de nos orientarmos quanto aos
rumos a tomar no imprevisto acontecimento.
2 Os emissários não se demoraram
mais do que noventa minutos.
Traziam boas novas, que me reconfortavam.
3 Localizaram a família
a que o desditoso velhinho se referira em suas amargas reminiscências,
e traziam sensacional informação. Amigos de nossa Esfera esclareceram-nos
quanto a Ismênia, que ela reencarnara e vivia na fase juvenil das forças
físicas. Corporificara-se no mesmo tronco doméstico a que emprestara
colaboração na época em que meu avô a expulsara do campo familiar.
4 Cipriana tudo ouviu, sensibilizada,
e, interessando-se por nós, sugeriu organizássemos as bases da futura
experiência, conquistando, sem delongas, as simpatias da jovem.
4.
A esse tempo, já nos achávamos portas a dentro de uma organização socorrista,
que recebeu a solicitação de nossa diretora em favor do enfermo, com
excelente disposição de servir-nos.
2 Cercando de todas as atenções
meu antigo credor, a estimada benfeitora frisou, dirigindo-se a mim:
— Nosso amigo, durante dois anos aproximadamente, não poderá ausentar-se
desta casa de assistência fraterna. 3
Permanece ainda profundamente identificado com a atmosfera destes sítios.
Visitá-lo-emos seguidamente, amparando-o com os nossos recursos, até
que possa respirar de novo os ares da Crosta. 4
É de notar que a mente dele não se libertará das teias da incompreensão
com facilidade, e, neste estado, não volveria com êxito ao educandário
da carne.
5 Acatei a ponderação, acompanhando
o curso das providências para o caso.
5.
Cipriana contemplou, enternecida, a entidade demente, e prosseguiu,
bondosa:
— Agora, André, finalizando nossos trabalhos da semana, tentemos trazer Ismênia
até aqui, para os trabalhos preparatórios de reaproximação. 2
Achando-se presentemente na juventude terrestre, provavelmente nos auxiliará
no momento preciso, recebendo o irmão perturbado em seu próprio instituto
doméstico. Antes de mais nada, porém, necessitamos da simpatia dela,
em face do nosso programa de reerguimento.
3 — Se Ismênia aceitar, se
consentir… acrescentei, hesitante.
— Encarregar-nos-emos do resto, — prometeu a interlocutora, decidida; — o retorno
de Cláudio à Esfera física terá característicos muito pessoais, sem
reflexos de maior importância no espírito coletivo, pelo que nós mesmos
poderemos providenciar quase tudo.
4 Confiando o enfermo aos
beneméritos companheiros que velavam na casa de amor cristão em que
nos asiláramos, dirigimo-nos para o Rio, onde Ismênia seria encontrada
por nós em modesto lar do Bangu.
5 Em plena madrugada, entramos,
respeitosos, na humilde residência.
A irmã de meu avô era agora a sexta filha daquela senhora que, na existência física, era conhecida por neta da velha Ismênia, cuja personalidade, para a família terrena, se perdera no tempo, e que não era outra senão a menina e moça, sob nossos olhos, de volta às tarefas aperfeiçoadoras da luta carnal.
6 Tudo ali respirava pobreza
digna e adorável simplicidade.
Adiantando-se, Cipriana colocou a destra sobre a fronte da jovem adormecida,
como a chamá-la até nós. 7
Efetivamente, decorridos instantes, veio ter conosco e, reparando que
nossa orientadora, envolta em luz intensa, a cobria com um gesto de
bênção, ajoelhou-se, desligada da matéria, exclamando em lágrimas de
júbilo:
— Mãe Celestial, quem sou eu para receber a graça de vossa visita? Sou indigna servidora…
8 Cobriu o rosto com as mãos,
sentindo-se talvez ofuscada pela claridade sublime, e contendo, a custo,
a comoção a estuar-lhe no peito; mas nossa veneranda benfeitora, aproximou-se,
pousou-lhe as mãos carinhosas na basta cabeleira negra e falou, compassiva:
— Minha filha, sou apenas tua irmã, tua amiga… Ouve! Quais são tuas
intenções na vida?
9 Como a jovem erguesse para
ela os olhos lacrimosos, acrescentou a nobre mensageira:
— Precisamos de tua colaboração e não desejamos ser amigos inúteis. Em que te podemos servir?
10 Decorreram pesados instantes
de expectação.
— Fala! — Acrescentou Cipriana, prestimosa; — explica-te sem receios…
11 Voz entrecortada pela comoção,
lembrou com ingenuidade juvenil:
— Minha mãe, se eu puder rogar-vos alguma coisa, peço-vos auxílio para Nicanor. Somos noivos, há quase dois anos, mas somos pobres. Trabalho na indústria de tecelagem, com salário reduzido, para ajudar à manutenção de nossa casa, e Nicanor é pedreiro… Temos sonhado com a organização de um lar pequeno e modesto, sob a proteção da Divina Providência. Poderemos aguardar a aprovação de Deus?
12 Cipriana estampou na fisionomia
suma ternura materna e considerou:
— Como não? Teus desejos são justos e santificantes. Nicanor terá nosso amparo, e tuas esperanças nossa viva contribuição. Esperamos, porém, algo de teu concurso…
— Ah! Em que poderia servir-vos, eu, mísera serva que sou?
13 A diretora não prolongou
a conversação, pedindo-lhe tão somente:
— Vem conosco!
6.
Em seguida, com grande surpresa para mim, Cipriana cobriu-lhe o rosto
com estreito véu de substância semelhante a gaze, para que lhe não fosse
dado ver as impressionantes paisagens que deveríamos atravessar.
2 Sustentada por nós, dentro
em pouco a moça se ajoelhava, curiosa e enternecida, ante meu avô, que,
ao enxergá-la, prorrompeu em exclamações em que ressumbrava ansiedade:
— Ismênia! Ismênia! Minha irmã, perdoa-me!…
3 Afagando-lhe as mãos, torturado,
contemplava-lhe o semblante humilde:
— Oh! É ela mesma, — insistia, tomado de evidente espanto, — com a mesma tristeza
do dia em que a expulsei!… Que fez, porém, para ser hoje mais jovem
e mais formosa?
4 Como a visitante guardasse
silêncio, confundida, inquiria, aflito:
— Dize, dize que me perdoas, que esquecerás o mal que te fiz!
5 A essa altura da inopinada
entrevista, Cipriana interveio, dirigindo-se a ela, interrogando:
— Nunca soubeste, em família, que tua bisavó teve um irmão.
6 A jovem não a deixou concluir,
perguntando por sua vez:
— … Que a expulsou de casa?
— Sim.
— Minha mãe já se referiu a esse passado distante, — acrescentou, melancólica.
— Não o reconheces? — Tornou, afável, a benfeitora. — Não te recordas?
7 Nesse instante, o velhinho
interferiu, excitando-lhe a memória:
— Ismênia, Ismênia! Eu sou Cláudio, teu desventurado irmão…
8 A jovem não sabia como interpretar
aquelas evocações, mas nossa diretora, cingindo-lhe os lobos frontais
com as mãos, a envolvê-la em abundantes irradiações magnéticas, insistia,
meiga, provocando a emersão da memória em seus mais importantes centros
perispiríticos:
— Revê o pretérito, minha amiga, para bem servirmos à Obra Divina.
9 Notei, assombrado, que algo
de anormal sucedera na mente da jovem, porque seus olhos, dantes doces
e tranquilos, se tornaram dilatados e inquietos. Tentou recuar ante
a súplice expressão de meu avô, mas a energia de Cipriana a conteve,
evitando-lhe a expansão dos impulsos iniciais de medo e de revolta.
— Agora, sim! Lembro-me… — gemeu, aterrada.
10 Nossa instrutora, então,
libertou-lhe a fronte e, indicando o enfermo, exclamou em tom comovedor:
— E não tens piedade?
11 Alguns segundos de expectativa
rolaram pesadamente; contudo, o amor, sempre divino na mulher de aspirações
elevadas, triunfou no olhar enternecido de Ismênia, que, plenamente
modificada, se abraçou ao doente, exclamando:
— Pois és tu, Cláudio? Que te aconteceu?
12 Traçou o ancião largo comentário
de suas penas, referiu-lhe as faltas passadas, e falou-lhe, mais lúcido
e contente, do conforto que a reaproximação lhe conferia.
Ela conservou-o muito tempo de encontro ao peito, fazendo-lhe sentir sua imensa ternura, sua dedicação e entendimento sem limites.
13 Quando pareciam perfeitamente
reconciliados, Cipriana abeirou-se dela e considerou:
— Minha amiga, estimaríamos receber a tua promessa de auxiliar nosso irmão Cláudio, em futuro próximo. Cooperarás conosco em favor dele, recebendo-o nos braços abnegados de mãe, se a Lei Divina, autorizar teu matrimônio?
14 Reverente, dando-me a conhecer
os tesouros de uma existência singela e humilde na Terra, a visitante
exclamou:
— Se o Céu me conceder a felicidade de com algo contribuir em benefício de Cláudio, esse benefício será feito a mim mesma; e, se um dia eu receber a ventura conjugal, será nosso primeiro e bem-amado filhinho. De antemão, sei que Nicanor se regozijará com o meu compromisso.
15 Contemplando, enlevada,
o desditoso prisioneiro das sombras, prometia:
— Partilhar-nos-á a vida pobre e honrada, conhecerá as alegrias do pão, filho do suor com a Proteção Divina, e olvidará, em nossa companhia, as ilusões que por tanto tempo nos separaram…
16 Evidenciando deliciosa singeleza
de coração, projetava em êxtase:
— Será um pedreiro feliz, como Nicanor! Abençoará a luta digna que atualmente bendizemos!…
17 Como chorasse, comovida,
Cipriana abraçou-a, também tocada no coração e de olhos úmidos, assegurando:
— Bem-aventurada sejas tu, querida filha, que compreendes conosco o celestial ministério da mulher nobre, sempre disposta à maternidade sublime.
18 Mais alguns minutos decorreram
em salutares entendimentos, e, quando o Sol engrinaldava o horizonte
de tonalidades diamantinas, de novo estávamos no modesto aposento de
Ismênia, ajudando-a a retomar o aparelho fisiológico e a olvidar a ocorrência
que vivera, junto de nós, na Esfera do Espírito.
19 Acordou no veículo pesado,
experimentando ignoto júbilo. Tinha a mente refrescada de ideias felizes.
Teve a nítida impressão de que tornava de maravilhosa romagem, cujas
minúcias não conseguiria precisar. Sem saber como, guardava, naquele
instante, absoluta certeza de que se casaria e de que Deus lhe reservava
ditoso porvir.
20 Quem poderia definir-nos
o reconhecimento e a admiração daquela hora? Meus companheiros abençoaram-na,
e eu, por minha vez, despedindo-me dela comovidamente, osculei-lhe a
destra minúscula, num beijo silencioso de profunda amizade e de indizível
gratidão.
André Luiz