1.
Antes de visitarmos as cavernas de sofrimento, Calderaro instou-me a
fazer com ele rápida visita a grande instituto consagrado ao recolhimento
de alienados mentais, na Esfera da Crosta.
2 — Compreenderás,
então, mais exatamente, — explicou, generoso, dirigindo-se a mim com
a delicadeza que lhe é peculiar, — a tragédia dos homens desencarnados,
em pleno desequilíbrio das sensações. 3
Excetuados os casos puramente orgânicos, o louco é alguém que procurou
forçar a libertação do aprendizado terrestre, por indisciplina ou ignorância.
4 Temos neste domínio
um gênero de suicídio habilmente dissimulado, a autoeliminação da harmonia
mental, pela inconformação da alma nos quadros de luta que a existência
humana apresenta. 5
Diante da dor, do obstáculo ou da morte, milhares de pessoas capitulam,
entregando-se, sem resistência, à perturbação destruidora, que lhes
abre, por fim, as portas do túmulo. A princípio, são meros descontentes
e desesperados, que passam despercebidos mesmo àqueles que os acompanham
de mais perto. 6 Pouco
a pouco, no entanto, transformam-se em doentes mentais de variadas gradações,
de cura quase impossível, portadores que são de problemas inextricáveis
e ingratos. Imperceptíveis frutos da desobediência começam por arruinar
o patrimônio fisiológico que lhes foi confiado na Crosta da Terra, e
acabam empobrecidos e infortunados. 7
Aflitos e semimortos, são eles homens e mulheres que desde os Círculos
terrenos padecem, encovados em precipícios infernais, por se haverem
rebelado aos desígnios divinos, preterindo-os, na escola benéfica da
luta aperfeiçoadora, pelos caprichos insensatos.
8 Guardando carinhosamente
a observação, acompanhei-o na excursão matinal ao grande estabelecimento,
onde os mentecaptos eram em grande número.
No primeiro pátio que topamos, compacta era a quantidade de mulheres desequilibradas que palestravam.
9 Uma velha de cabelos nevados,
mostrando acerba ferocidade no olhar, envergava o uniforme da casa,
como quem arrastasse um vestido real, e dizia a duas companheiras apáticas:
— Na minha qualidade de marquesa, não tolero a intromissão de médicos inconscientes. Creio estar presa por motivos secretos de família, que averiguarei na primeira oportunidade. Tenho poderosos inimigos na Corte; contudo, as minhas amizades são mais prestigiosas e fiéis.
10 Baixou a voz, como receando
espias ocultos, e falou ao ouvido de uma das irmãs de sofrimento:
— O Imperador está interessado em meu caso e punirá os culpados. Segregaram-me por miseráveis questões de dinheiro.
Elevando o diapasão, inesperadamente, bradou:
— Todos pagarão! Todos pagarão!
E continuava explicando-se com gestos de grande senhora.
11 Compungia-me observar
a promiscuidade entre as enfermas encarnadas e as entidades infelizes,
que ali se acotovelavam. Preso ainda ao meu antigo vezo de curiosidade,
tentei estacar, a fim de ouvir a demente até ao fim, mas o Assistente
deu-se pressa em considerar:
— Não nos detenhamos. Infelizmente, atravessamos vasta galeria de padecimento
expiatório, onde nossos recursos socorristas não ofereceriam vantagens
imediatas. 12 Aqui,
quase todos os alienados são criaturas que abdicaram a realidade, atendo-se
a circunstâncias do passado sem mais razão de ser. Essa desventurada
irmã já possuiu títulos de nobreza em existência anterior; perpetrou
clamorosas faltas, dando expansão às energias cegas do orgulho e da
vaidade. 13 Renascendo
em aprendizado humilde para o reajustamento imprescindível, alarmou-se
ante as primeiras provações mais rudes da correção benfeitora, reagiu
contra os resultados da própria sementeira, entregou o invólucro físico
ao curso de ocorrências nefastas, e, por fim, situou-se mentalmente
em zonas mais baixas da personalidade, passando a residir, em pensamento,
no pretérito de mentiras brilhantes. Agarrou-se, desesperada, às recordações
da marquesa vaidosa de salões que já desapareceram, e perambula nos
vales da demência em lastimáveis condições.
14 Não déramos muitos passos,
encontramos novo ajuntamento, em que sobressaía curiosa dama, extremamente
nervosa.
— Deus me livre de todos!… Deus me livre de todos!… — Gritava, inquieta.
— Não voltarei! Nunca, nunca!…
15 Aproxima-se, cordata, a
enfermeira, e pede:
— Senhora, mais calma! É seu marido que vem à visita. Vamos ao guarda-roupa.
E sorrindo:
— Não se sente feliz?
— Jamais! — Bradava a demente com espantoso semblante de angústia. — Não quero vê-lo! Odeio-o, odeio, com tudo o que lhe pertence!
16 Repetindo expressões de
desprezo, inteiriçou-se, caindo em lamentável crise de nervos, pelo
que a auxiliar da enfermagem houve que requisitar socorro urgente.
17 Desejei reter-me, a fim
de estudar a situação, mas o Assistente impediu-mo, esclarecendo:
— Não percas tempo. Não remediarias o mal. Nossa passagem aqui é rápida. Recomendo apenas anotes o refúgio de todos os que se esquecem dos deveres presentes, pretendendo escapar aos imperativos da realidade educadora.
18 Modificou a inflexão da
voz e prosseguiu:
— “Não asseguramos que todos os casos do hospício se relacionem exclusivamente
com esse fator. Muita gente atravessa este pavoroso túnel, premida por
exigências da prova retificadora; é, no entanto, forçoso reconhecer
que a maioria encetou o pungitivo drama em si mesma. 19
São irmãos nossos, revoltados ante os desígnios superiores que os conduziram
a recapitular ensinamentos difíceis, qual o de se reaproximarem de velhos
inimigos por intermédio de laços consanguíneos, ou o de enfrentarem
obstáculos aparentemente insuperáveis.
20 “Para que se efetue
a jornada iluminativa do Espírito é indispensável deslocar a mente,
revolver as ideias, renovar as concepções e modificar, invariavelmente,
para o bem maior o modo íntimo de ser, tal qual procedemos com o solo
na revivificação da lavoura produtiva ou com qualquer instituto humano
em reestruturação para o progresso geral. 21
Negando-se, porém, a alma a receber o auxílio divino, através dos processos
de transformação incessante que lhe são oferecidos, em seu benefício
próprio, pelas diferentes situações de que os dias se compõem no aprendizado
carnal, recolhe-se à margem da estrada, criando paisagens perturbadoras
com desejos injustificáveis.
2.
“Quase podemos afirmar que noventa em cem dos casos de loucura, excetuados
aqueles que se originam da incursão microbiana sobre a matéria cinzenta,
começam nas consequências das faltas graves que praticamos, com a impaciência
ou com a tristeza, isto é, por intermédio de atitudes mentais que imprimem
deploráveis deflexões ao caminho daqueles que as acolhem e alimentam.
2 Instaladas essas
forças desequilibrantes no campo íntimo, inicia-se a desintegração da
harmonia mental; esta por vezes perdura, não só numa existência, mas
em várias delas, até que o interessado se disponha, com fidelidade,
a valer-se das bênçãos divinas que o aljofram, para restabelecer a tranquilidade
e a capacidade de renovação que lhe são inerentes à individualidade,
em abençoado serviço evolutivo. 3
Pela rebeldia, a alma responsável pode encaminhar-se para muitos crimes,
a cujos resultados nefastos se cativa indefinidamente; e, pelo desânimo,
é propensa a cair nos despenhadeiros da inércia, com fatal atraso nas
edificações que lhe cabe providenciar.”
3.
Nesse ponto dos esclarecimentos, penetrávamos extensa varanda no departamento
masculino e logo se nos deparou um homem que decerto se enquadrava entre
os esquizofrênicos absolutos. 2
Rodeavam-no algumas entidades de sombrio aspecto. Semelhava-se o doente
a perfeito autômato, sob o guante de tais companheiros. Exibia gestos
maquinais, e, ao guarda que se aproximava, cauteloso, explicou em tom
muito sério:
3 — Venha, “seu” João. Não
tenha receio. Ontem eu era o “leão”, mas hoje, sabe o senhor o que eu
sou?
Ante o enfermeiro hesitante, concluiu:
— Hoje sou a “bananeira”.
4 Encontraria, eu, sem dúvida,
no caso, excelente ensejo de enriquecer experiências, porquanto de pronto
reconhecera a entrosagem completa entre a vítima e os obsessores que
lhe eram invisíveis. O desditoso era rematado fantoche nas mãos dos
algozes tipicamente perversos.
5 Calderaro, porém, não me
permitiu interromper a marcha.
— O processo de desequilíbrio está consumado, — informou, — e não encontrarias
possibilidade de recompor-lhe, em serviço rápido, as energias mentais
centralizadas na região inferior. O infeliz vem sendo objeto de práticas
hipnóticas de implacáveis perseguidores; acha-se exposto a emissões
contínuas de forças que o deprimem e enlouquecem.
6 — Céus! — Exclamei,
aparvalhado, — como socorrê-lo?
— Trata-se de um homem, — acrescentou o orientador, — que em encarnações
anteriores abusou do magnetismo pessoal.
7 Não pude sopitar a objeção
que me nasceu espontânea:
— Como? As ciências magnéticas são de ontem…
Calderaro estampou no olhar a condescendência que lhe é característica e retorquiu:
— Acreditas que teriam sido iniciadas com Mesmer?
E, sorridente, ajuntou:
— Se consideráramos o sentido literal do texto, o abuso de magnetismo pessoal teria começado com Eva, no paraíso…
8 Indicou o enfermo e prosseguiu:
— Em pretérito não muito remoto, nosso imprevidente amigo se excedeu em seu potencial de fascínio, desviando-o para aventuras menos dignas. Várias mulheres que lhe sofreram a ação corrosiva, assestaram contra ele incessantes explosões de ódio doentio e corruptor, extravasamentos que o pobre companheiro merecia em consequência da atividade condenável a que se dedicou por muitos anos. Minado pela reação persistente, minguou-lhe o cabedal de resistência; converteu-se, destarte, em joguete das forças destrutivas, às quais, a bem dizer, voluntariamente se unira, ao abraçar, entusiasta, a declarada prática do mal. Até quando se demorará em tal atitude, não será possível prever.
9 Geralmente, ao delinquirmos,
podemos precisar o instante exato de nossa penetração na desarmonia;
jamais sabemos, porém, quando soará o momento de abandoná-la. No retorno
à estrada reta, através de atoleiros em que chafurdamos, por indiferença
e má fé, não podemos prefixar calendários para a volta: implicamo-nos
em jogos circunstanciais, de que só nos despeamos após doloroso reajustamento…
10 Observando-me a admiração,
ante a experiência hipnótica que os frios verdugos levavam a efeito,
o Assistente considerou:
— Não te impressiones. A morte física não modifica de súbito as inteligências votadas ao mal, nem o duelo da luz com a sombra se adstringe aos estreitos Círculos carnais.
4.
Logo após, éramos surpreendidos por dois velhinhos atoleimados, a pronunciar
frases desconexas.
2 — O tempo, — elucidou
o orientador, indicando-os, — acaba sempre por denunciar a nossa posição
verdadeira. 3 Quando
a criatura não haja feito da existência o sacerdócio de trabalho construtivo,
que nos cumpre na Terra, os fenômenos senis do corpo são mais tristes
para a alma, pois, neste caso, o indivíduo já não domina as conveniências
forjadas pelo imediatismo humano, patenteando-se-lhe a fixação da mente
nos impulsos inferiores. 4
Milhões de irmãos nossos permanecem, séculos afora, na fase infantil
do entendimento, por não se animarem ao esforço de melhoria própria.
Enquanto recebem a transitória cooperação de saúde física relativa,
das convenções terrenas, das possibilidades financeiras e das variadas
impressões passageiras que a existência na Crosta Planetária oferece
aos que passam pela carne, esteiam-se nos títulos de cidadãos que a
sociedade lhes confere; logo, porém, que visitados pelo morbo, pela
escassez de recursos ou pela decrepitude, revelam a infância espiritual
em que jazem: voltam a ser crianças, não obstante a idade provecta manifestada
pelo veículo de ossos, por se haverem excessivamente demorado nos sítios
superficiais da vida.
5.
A exposição não podia ser mais lógica; todavia, examinando aquele vasto
ambiente, onde tantos loucos de ambos os sexos modorravam distantes
do realismo do mundo, sem a mais leve perspectiva de desencarnação próxima,
pensei nas criaturas que já renascem imperfeitas e perturbadas; 2
nas crianças atrasadas e nos moços em luta com a demência juvenil; 3
nas fobias sem número que amofinam pessoas respeitáveis e prestativas; solicitei, então, do instrutor, esclarecimentos sobre os quadros de
sofrimento desse jaez, que de improviso assaltam os ambientes domésticos
mais distintos.
4 O Assistente não se surpreendeu,
e observou:
— Estudamos aqui, André, a messe das sementeiras, assim do presente,
como do passado. 5
Ponderamos não só a aprendizagem de uma existência efêmera, mas também
a romagem da alma nos caminhos infinitos da vida, da vida imperecível
que segue sempre, vencendo as imposições e as injunções da forma, purificando-se
e santificando-se cada dia. 6
Verificarás, conosco, afligente quadro de padecimentos espirituais,
e é provável que apreendas, num hospício humano, algo dos desequilíbrios
que afetam a mente desviada das Leis Universais. Em verdade, na alienação
mental começa a “descida da alma às zonas inferiores da morte”. 7
Através do manicômio é possível entender, de certo modo, a loucura dos
homens e das mulheres que, aparentemente equilibrados no campo social
da Crosta Terrestre, onde permutam os eternos valores divinos por satisfações
ilusórias imediatas, são relegados depois, além do sepulcro, a inominável
desespero do sentimento. 8
Quanto às perturbações que acompanham a alma no renascimento ou na infância
do corpo, na juventude ou na senilidade, é mister reconhecer que o desequilíbrio
começa na inobservância da Lei, como a expiação se inicia no crime.
9 Adotada a conduta
em desacordo com a realidade, encontra o Espírito, invariavelmente,
em todos os Círculos onde se veja, os efeitos da própria ação. 10
Seja nos mecanismos da hereditariedade fisiológica, seja fora de sua
influência, a mente, encarnada ou não, revela-se na colheita do que
haja semeado, no campo de evolução do esforço comum, no monte da elevação
pela prática do sumo bem, ou no vale expiatório pelo exercício do mal.
11 O Assistente, que se dispunha
a retirar-se, fitou-me demoradamente, e rematou:
— O louco, em geral, considerando-se não só o presente, senão até o passado longínquo, é alguém que aborreceu as bênçãos da experiência humana, preferindo segregar-se nos caprichos mentais; e a entidade espiritual atormentada após a morte é sempre alguém que deliberadamente fugiu às realidades da Vida e do Universo, criando regiões purgatoriais para si mesmo. Compreendeste?
12 Fixei o instrutor, reconhecidamente.
Sim, havia entendido. E, ponderando a lição da manhã, segui o orientador, que silente abandonava o campo de observação, a fim de mais tarde nos avistarmos com os benfeitores que visitariam as cavernas, em missão de amor e de paz.
André Luiz