1.
Havíamos terminado ativa colaboração, num elevado ambiente consagrado
à prece, quando certo companheiro se abeirou de nós, reclamando o concurso
do Assistente num caso particular.
2 Calderaro decerto conheceria
os pormenores da situação, porque entre ambos logo se estabeleceu curioso
diálogo.
— Infelizmente, — dizia o informante, — nosso Antídio não sobreleva a situação;
permanece em derrocada quase total. Vinculou-se de novo a perigosos
elementos da sombra, e voltou aos desacertos noturnos, com grave prejuízo
para o nosso trabalho socorrista.
3 — Não lhe valeram as melhoras
da quinzena passada? — Indagou fraternalmente o orientador.
— Aproveitou-as para mais presto volver à irreflexão, — esclareceu o interlocutor
com inflexão magoada.
4 — É de notar, porém, que
se achava quase de todo louco.
— Sim, mas conseguiu fruir, outra vez, estado orgânico invejável, mercê de
sua intervenção última; logo, porém, que se viu fortalecido, tornou
desbragadamente aos alcoólicos. 5
A sede escaldante, provocada pela própria displicência e pela instigação
dos vampiros que, vorazes, se lhe enxameiam à roda, everteu-lhe o sistema
nervoso. A organização perispirítica, semiliberta do corpo denso pelos
perniciosos processos da embriaguez, povoa-lhe a mente de atros pesadelos, n agravados pela atuação das entidades perversas que o seguem passo a
passo.
6 — Estará em casa a esta
hora? — Inquiriu Calderaro com interesse.
— Não, — disse o outro, abatido, — deixei-o, ainda agora, num centro menos
digno, onde a situação do nosso doente tornou a características lamentáveis.
7 O instrutor estudou o caso
em silêncio, durante alguns instantes, e considerou:
— Poderemos providenciar; contudo, se da outra vez consistiu o socorro em restituí-lo ao equilíbrio orgânico possível, no momento há que agir em contrário. Convém ministrar-lhe provisória e mais acentuada desarmonia ao corpo. Neste, como em outros processos difíceis, a enfermidade retifica sempre.
8 E, contemplando o benfeitor
do necessitado distante, interrogou:
— De acordo?
— Perfeitamente, — redarguiu ele, sem hesitação; — o meu amigo é especialista
em assistência, e eu lhe acato as determinações. O que nos interessa
é a saúde efetiva do infeliz irmão, que se entregou sem defesa aos reclamos
do vício.
2.
Rumamos para o local em que deveríamos acudir o amigo extraviado.
Penetramos o recinto, servido de amplas janelas e abundantemente iluminado.
2 O ambiente sufocava. Desagradáveis
emanações se faziam cada vez mais espessas, à maneira que avançávamos.
No salão principal do edifício, onde abundavam extravagantes adornos, algumas dezenas de pares dançavam, tendo as mentes absorvidas nas baixas vibrações que a atmosfera vigorosamente insuflava.
3 Indefinível e dilacerante
impressão dominou-me o ser. Não provinha da estranheza que a indiferença
dos cavalheiros e a leviandade das mulheres me provocavam; o que me
enchia de assombro era o quadro que eles não viam. 4
A multidão de entidades conturbadas e viciosas que aí se movia era enorme.
Os dançarinos não bailavam sós, mas, inconscientemente, correspondiam,
no ritmo açodado da música inferior, a ridículos gestos dos companheiros
irresponsáveis que lhes eram invisíveis. Atitudes simiescas surdiam
aqui e ali, e, de quando em quando, gritos histéricos feriam o ar.
5 Calderaro não se deteve.
Mostrava-se habituado à cena; mas, não conseguindo sofrear a estupefação
que se assenhoreara de mim, solicitei-lhe uma intermitência, perguntando:
— Meu amigo, que vemos? Criaturas alegres cercadas de seres tão inconscientes
e perversos? Pois será crime dançar? Buscar alegria constituirá falta
grave?
6 O orientador escutou pacientemente
as indagações ingênuas que me escapavam dos lábios, ditadas pelo espanto
que me assomara repentinamente, e esclareceu:
— Que perguntas, André! O ato de dançar pode ser tão santificado como
o ato de orar, pois a alegria legítima é sublime herança de Deus. 7
Aqui, porém, o quadro é diverso. O bailado e o prazer nesta casa significam
declarado retorno aos estados primitivos do ser, com iniludíveis agravantes
de viciação dos sentidos. Observamos, neste recinto, homens e mulheres
dotados de alto raciocínio, mas assumindo atitudes de que muitos símios
talvez se pejassem. 8
Todavia, esteja longe de nós qualquer recriminação: lastimemo-los simplesmente.
São trânsfugas sociais, e, na maioria, rebeldes à disciplina instituída
pelos Desígnios Superiores para os seus trilhos terrestres. Muitos deles
são profundamente infelizes, precisando de nossa ajuda e compaixão.
Procuram afogar no vinho ou nos prazeres certas noções de responsabilidade
que não logram esquecer. Fracos perante a luta, mas dignos de piedade
pelos remorsos e atribulações que os devoram, merecem amparados fraternalmente.
9 E, passando os olhos de
relance pela multidão de Espíritos perturbadores que ali se davam ao
vampirismo e ao sarcasmo, obtemperou:
— Quanto a estes infortunados, que fazer senão recomendá-los ao Divino Poder? Tentam igualmente a fuga impossível de si mesmos. Alucinados, apenas adiam o terrível minuto de autorreconhecimento, que chega sempre, quando menos esperam, através dos mil processos da dor, esgotados os recursos do amor divino, que o Supremo Pai nos oferece a todos. A mente deles também está apegada aos instintos primitivos, e, frágeis e hesitantes, receiam a responsabilidade do trabalho da regeneração.
10 Vendo-me boquiaberto e faminto
de novas elucidações, o Assistente propôs-me:
— Vamos! Deixemo-los divertir-se. A dança, nesta casa, não lhes deixa de ser, em última análise, um benefício. Chegaram nossos amigos encarnados e desencarnados, aqui presentes, a nível tão desprezível que, sem dúvida, não fora o sapateado, estariam rodando, lá fora, em atos extremamente condenáveis, tal a predisposição em que se encontram para o crime. Que o Pai se comisere de todos nós.
3.
Demandamos o interior, apressadamente.
Numa saleta abafada, um cavalheiro de quarenta e cinco anos presumíveis jazia a tremer. Não conseguia manter-se de pé.
2 Calderaro examinou-o detidamente
e indagou do novo amigo que nos acompanhava:
— Voltou aos alcoólicos, há muitos dias?
— Precisamente, há uma semana.
— Vê-se que se esgotou rápido.
3 Enquanto encetava a aplicação
de fluidos magnéticos, o orientador aconselhou-me notar os característicos
do quadro dantesco sob nossos olhos.
4 Antídio, doente
e desventurado, a despeito das condições precárias, reclamava um copinho,
sempre mais um copinho, que um rapaz de serviço trazia, obediente. Tremiam-lhe
os membros, denunciando-lhe o abatimento. Álgido suor lhe escorria da
fronte e, de vez em quando, desferia gritos de terror selvagem. 5
Em derredor, quatro entidades embrutecidas submetiam-no aos seus desejos.
Empolgavam-lhe a organização fisiológica, alternadamente, uma a uma,
revezando-se para experimentar a absorção das emanações alcoólicas,
no que sentiam singular prazer. Apossavam-se particularmente da “estrada
gástrica”, inalando a bebida a volatilizar-se da cárdia ao piloro.
6 A cena infundia angústia
e assombro. Estaríamos diante de um homem embriagado ou de uma taça
viva, cujo conteúdo sorviam gênios satânicos do vício?
7 O infortunado Antídio trazia
o estômago atestado de líquido e a cabeça turva de vapores. Semidesligado
do organismo denso pela atuação anestesiante do tóxico, passou a identificar-se
mais intimamente com as entidades que o perseguiam.
8 Os quatro infelizes desencarnados,
a seu turno, tinham a mente invadida por visões terrificantes do sepulcro
que haviam atravessado como dipsomaníacos. Sedentos, aflitos, traziam
consigo imagens espectrais de víboras e morcegos dos lugares sombrios
onde haviam estacionado.
9 Entrando em sintonia magnética
com o psiquismo desequilibrado dos vampiros, o ébrio começou a rogar,
estentoreamente:
— Salve-me! Salve-me, por amor de Deus! E indicando as paredes próximas, bradava sob a impressão de indefinível pavor:
— Oh! Os morcegos!… Os morcegos! Afugentem-nos, detenham-nos!… Piedade! Quem
me livrará?! Socorro! Socorro!…
10 Dois senhores, também obnubilados
pelo vinho, aproximaram-se, espantados. Um deles, porém, tranquilizou
o outro, dizendo:
— Nada de mais. É o Antídio, de novo. Os acessos voltaram. Deixemo-lo em paz.
11 Enquanto isso, o desditoso
ébrio continuava bradando:
— Ai! Ai! Uma cobra… aperta-me, sufoca-me… Que será de mim? Socorro!
12 As entidades perturbadoras
timbravam nas atitudes sarcásticas; gargalhavam de maneira sinistra.
Ouvia-as o infeliz, a lhe ecoarem no fundo do ser, e gritava, tentando
investir, embora cambaleante, os algozes invisíveis:
— Quem zomba de mim? Quem?!
Cerrando os punhos, acrescentava:
— Malditos! Malditos sejam!
4.
A cena prosseguia, dolorosa, quando Calderaro se acercou de mim, esclarecendo:
— É deplorável pai de família que, incapaz de reagir contra as atrações
do vício, se entregou, inerme, à influência de malfeitores desencarnados,
afins com a sua posição desequilibrada. 2
Em atenção às intercessões da esposa e de dois filhinhos amoráveis que
o seguem, assistimo-lo com todos os recursos ao alcance de nossas possibilidades;
entretanto, o imprevidente irmão não corresponde ao nosso esforço. 3
Emerge de todas as tentativas, mais e mais disposto à perversão dos
sentidos; busca, acima de tudo, a fuga de si mesmo; detesta a responsabilidade
e não se anima a conhecer o valor do trabalho. 5
Atenuando-lhe a ânsia irrefreável de sorver alcoólicos, esperamos se
reeduque. Para isso, porém, usaremos agora recurso drástico, já que
o desventurado se revela infenso a todos os nossos processos de auxílio.
6 Fixando em mim expressivo
olhar, concluiu:
— Antídio, por algum tempo, a partir de hoje, será amparado pela enfermidade. Conhecerá a prisão no leito, durante alguns meses, a fim de que se lhe não apodreça o corpo num hospício, o que se iniciaria dentro de alguns dias, lançando nobre mulher e duas crianças em pungente incerteza do porvir.
7 Dito isto, Calderaro encetou
complicado serviço de passes, ao longo da espinha dorsal.
O enfermo aquietou-se, pouco a pouco, na velha poltrona em que se mantinha.
8 O Assistente passou a aplicar-lhe
eflúvios luminosos sobre o coração, durante vários minutos. Notei que
essas emissões se concentraram gradativamente no órgão central, que
em certo instante acusou parada súbita.
9 Antídio parecia prestes
a desencarnar, quando o orientador lhe restituiu as energias, em movimentação
rápida. Premido pelo fenômeno circulatório, que lhe valeu tremendo choque,
o desditoso amigo pôs-se a pedir auxílio em altos brados. Havia tamanha
inflexão de dor, na voz lamentosa, que grande número de pessoas se aproximaram,
penalizadas.
10 Um piedoso cavalheiro tomou-lhe
o pulso, verificou a desordem do coração e, presto, requisitou um carro
da assistência pública. Em breves momentos Antídio era transportado
em maca de hospital, para receber socorro urgente, seguido, de perto,
pelo solícito benfeitor espiritual.
11 Retirando-se em minha companhia,
Calderaro acrescentou, tristonho:
— O infortunado amigo será portador de uma nevrose cardíaca por dois a três meses, aproximadamente. Debalde usará a valeriana e outras substâncias medicamentosas, em vão apelará para anestésicos e desintoxicantes. No curso de algumas semanas conhecerá intraduzível mal-estar, de modo a restabelecer a harmonia do cosmo psíquico. Experimentará indizível angústia, submeter-se-á a medicações e regimes, que lhe diminuirão a tendência de esquecer as obrigações sagradas da hora e lhe acordarão os sentimentos, devagarinho, para a nobreza do ato de viver.
12 Notando-me a estranheza,
o Assistente concluiu:
Que fazer, meu amigo? As mesmas Forças Divinas que concedem ao homem a brisa cariciosa, infligem-lhe a tempestade devastadora… Uma e outra, porém, são elementos indispensáveis à glória da vida.
André Luiz
[1] No original: “de outros pesadelos.”