1.
Com a mão fraterna espalmada sobre a fronte do enfermo, como a transmitir-lhe
vigorosos fluidos de vida renovadora, Calderaro esclareceu-me, bondoso:
2 — Há vinte anos, aproximadamente,
este amigo pôs fim ao corpo físico do seu atual verdugo, num doloroso
capítulo de sangue. Iniciei o serviço de assistência a ele, só há três
dias; no entanto, já me inteirei da sua comovente história.
3 Dirigiu compassivo olhar
ao algoz desencarnado e prosseguiu:
— Trabalhavam juntos, numa grande cidade, entregues ao comércio de
quinquilharias. O homicida desempenhava funções de empregado da vítima,
desde a infância, e, atingida a maioridade, exigiu do chefe, que passara
a tutor, o pagamento de vários anos de serviço. Negou-se o patrão, terminantemente,
a satisfaze-lo, alegando as fadigas que vivera para assisti-lo na infância
e na juventude. Propiciar-lhe-ia vantajosa posição no campo dos negócios,
conceder-lhe-ia interesses substanciais, mas não lhe pagaria vintém
relativamente ao passado. Até ali, guardara-o à conta de um filho, que
lhe reclamava contínua assistência. 4
Estalou a contenda. Palavras rudes, trocadas entre vibrações de cólera,
inflamaram o cérebro do rapaz, que, no auge da ira, o assassinou, dominado
por selvagem fúria. Antes, porém, de fugir do local, o criminoso correu
ao cofre, em que se amontoavam fartos pacotes de papel-moeda, retirou
a importância vultosa a que se supunha com direito, deixando intacta
regular fortuna que despistaria a polícia no dia imediato. 5
Efetivamente, na manhã seguinte n ele próprio veio à casa comercial, onde
a vítima pernoitava enquanto a pequena família fazia longa estação no
campo, e, fingindo preocupação ante as portas cerradas, convidou um
guarda a segui-lo a fim de violarem ambos uma das fechaduras. Em poucos
momentos, espalhava-se a notícia do crime; no entanto, a justiça humana,
emalhada nas habilidades do delinquente, não conseguiu esclarecer o
problema na origem. 6
O assassino foi pródigo nos cuidados de salvaguardar os interesses do
morto. Mandou selar cofres e livros. Providenciou arrolamentos laboriosos.
Requisitou amparo das autoridades legais para minucioso exame da situação.
Foi verdadeiro advogado da viúva e dos dois filhinhos do tutor falecido,
os quais, mercê de seu devotamento, receberam substanciosa herança.
7 Pranteou a ocorrência,
como se o desencarnado lhe fosse pai. Terminada a questão, com a inanidade
do aparelho judiciário diante do enigma, retirou-se, discreto, para
grande centro industrial, onde aplicou os recursos econômicos em atividades
lucrativas.
8 O mentor estampou diferente
brilho no olhar, fez pequena pausa e acrescentou:
— Conseguiu ludibriar os homens, mas não pôde iludir a si mesmo. 9
A entidade desencarnada, concentrando a mente na ideia de vingança,
passou, perseverante, a segui-lo. Aferrou-se-lhe à organização psíquica,
à maneira de hera sobre muro viscoso. 10
Tudo fez o homicida para atenuar-lhe o assédio constante. Desdobrou-se
nos empreendimentos materiais, ansiando esquecimento de si mesmo e pondo
em prática iniciativas que lhe fizeram afluir ao cofre enormes quantias,
valorizando-lhe os títulos bancários. 11
Observando, entretanto, que os altos patrimônios econômicos não lhe
arrefeciam a intranquilidade e o sofrimento inconfessáveis, deu-se pressa
em casar, aflito por sossegar o próprio íntimo. Desposou uma jovem de
alma extremamente elevada à zona superior da vida humana, a qual lhe
deu cinco filhinhos encantadores. 12
No clima espiritual da mulher escolhida, conseguiu de certo modo equilibrar-se,
conquanto a vítima nunca o largasse. Ocasiões houve em que se engolfava
nas mais cruéis depressões nervosas, assaltado por estranhos pesadelos
aos olhos dos familiares; mas sempre resistia, amparado, até certo ponto,
pelas afeições de que a esposa, desde muito, dispõe em nossos Planos.
13 Se as leis humanas,
todavia, correspondem à falibilidade dos homens encarnados, as leis
divinas jamais falecem. Conservando as forças tenebrosas acumuladas
em seu destino, desde a noite do assassínio, nosso desventurado amigo
manteve enclausuradas, no porão da personalidade, todas as impressões
destruidoras recolhidas no instante da queda. Repugnava-lhe uma confissão
pública do crime, a qual, de certo modo, lhe mitigaria a angústia, libertando
energias nefastas, que arquivara.
14 A essa altura da narrativa,
Calderaro interrompeu-se.
Tocou a zona do córtex e prosseguiu:
— A mente criminosa, assediada pela presença invariável da vítima,
a perturbar-lhe a memória, passou a fixar-se na região intermediária
do cérebro, porque a dor do remorso não lhe permitia fácil acesso à
esfera superior do organismo perispirítico, onde os princípios mais
nobres do ser erguem o santuário de manifestações da Consciência Divina.
15 Aterrorizado pelas
recordações, transia-o irreprimível pavor em face dos juízos conscienciais.
Por outra parte, cada vez mais interessado em assegurar a felicidade
da família, seu único oásis no deserto escaldante das escabrosas reminiscências,
o infeliz, então respeitado por força da posição social que o dinheiro
lhe conferia, embrenhou-se em atividade febril e ininterrupta. 16
Vivendo mentalmente na região intermediária do cérebro, em caráter quase
exclusivo, só sentia alguma calma agindo e trabalhando, de qualquer
maneira, mesmo desordenadamente. Intentava a fuga através de todos os
meios ao seu alcance. Deitava-se, extenuado pela fadiga do corpo, levantando-se,
no dia seguinte, abatido e cansado de inutilmente duelar com o perseguidor
invisível, nas horas de sono. Em consequência, provocou o desequilíbrio
da organização perispiritual, o que se refletiu na zona motora, implantando
o caos orgânico.
2.
Fez característico movimento com o indicador e acentuou:
— Repara os centros corticais.
2 Contemplei, admirado,
aquele maravilhoso mundo microscópico. As células piramidais, distinguindo-se
pelo tamanho, diziam da importância das funções que lhes impendiam no
laboratório das energias nervosas. 3
Observando atentamente o quadro, não me parecia que estivesse a examinar
o tecido vivo da substância branco-cinzenta: tive a impressão de que
o córtex fosse um robusto dínamo em funcionamento. 4
Não estaríamos diante dalgum aparelho elétrico de complicada estrutura?
Mau grado essas impressões, reparei que a matéria cerebral ameaçava
amolecimento.
5 Continuava perplexo, sem
saber como formular os comentários cabíveis, quando o Assistente me
veio em socorro, esclarecendo:
— Estamos diante do órgão perispiritual do ser humano, adeso à duplicata
física, da mesma forma que certa parte do corpo carnal tem estreito
contato com o indumento. 6
Todo o campo nervoso da criatura constitui a representação das potências
perispiríticas, vagarosamente conquistadas pelo ser, através de milênios
e milênios. 7 Em renascendo
entre as formas perecíveis, nosso corpo sutil, que se caracteriza, em
nossa Esfera menos densa, por extrema leveza e extraordinária plasticidade,
submete-se, no Plano da Crosta, às leis de recapitulação, hereditariedade
e desenvolvimento fisiológico, em conformidade com o mérito ou demérito
que trazemos e com a missão ou o aprendizado necessários. 8
O cérebro real é aparelho dos mais complexos, em que o nosso “eu” reflete
a vida. Através dele, sentimos os fenômenos exteriores segundo a nossa
capacidade receptiva, que é determinada pela experiência; por isto,
varia ele de criatura a criatura, em virtude da multiplicidade das posições
na escala evolutiva. 9
Nem os símios ou os antropóides, a caminho da ligação com o gênero humano,
apresentam cérebros absolutamente iguais entre si. Cada individualidade
revela-o consoante o progresso efetivo realizado. 10
O selvagem apresenta um cérebro perispiritual com vibrações muito diversas
das do órgão do pensamento no homem civilizado. Sob este ponto de vista,
o encéfalo de um santo emite ondas que se distinguem das que despede
a fonte mental de um cientista. 11
A escola acadêmica, na Crosta Planetária, prende-se à conceituação da
forma tangível, em trânsito para as transformações da enfermidade, da
velhice ou da morte. Aqui, porém, examinamos o organismo que modela
as manifestações do campo físico, e reconhecemos que todo o aparelhamento
nervoso é de ordem sublime. 12
A célula nervosa é entidade de natureza elétrica, que diariamente se
nutre de combustível adequado. Há neurônios sensitivos, motores, intermediários
e reflexos. Existem os que recebem as sensações exteriores e os que
recolhem as impressões da consciência. Em todo o cosmo celular agitam-se
interruptores e condutores, elementos de emissão e de recepção. 13
A mente é a orientadora desse universo microscópico, em que bilhões
de corpúsculos e energias multiformes se consagram a seu serviço. Dela
emanam as correntes da vontade, determinando vasta rede de estímulos,
reagindo ante as exigências da paisagem externa, ou atendendo às sugestões
das zonas interiores. 14
Colocada entre o objetivo e o subjetivo, é obrigada pela Divina Lei
a aprender, verificar, escolher, repelir, aceitar, recolher, guardar,
enriquecer-se, iluminar-se, progredir sempre. 15
Do plano objetivo, recebe-lhe os atritos e as influências da luta direta;
da esfera subjetiva, absorve-lhe a inspiração, mais ou menos intensa,
das inteligências desencarnadas ou encarnadas que lhe são afins, e os
resultados das criações mentais que lhe são peculiares. 16
Ainda que permaneça aparentemente estacionária, a mente prossegue seu
caminho, sem recuos, sob a indefectível atuação das forças visíveis
ou das invisíveis.
3.
Verificando-se pausa natural nas elucidações, ocorreram-me inúmeras
e ininterruptas associações de ideias.
2 Como interpretar
todas as revelações de Calderaro? As células do acervo fisiológico não
se revestiam de característicos próprios? Não eram personalidades infinitesimais,
aglomeradas sob disciplina nos departamentos orgânicos, mas quase livres
em suas manifestações? Seriam, acaso, duplicatas de células espirituais?
Como conciliar tal teoria com a liberação dos microorganismos, em seguida
à morte do corpo? E, se assim fora, não devera a memória do homem encarnado,
eximir-se do transitório esquecimento do passado?
3 O instrutor percebeu minhas
perquirições inarticuladas, porque prosseguiu, sereno, como a responder-me:
— Conheço-te as objeções e também as formulei noutro tempo, quando
a novidade me feria a observação. 4
Posso, contudo, dizer-te hoje, que, se existe a química fisiológica,
temos também a química espiritual, como possuímos a orgânica e a inorgânica,
existindo extrema dificuldade em definir-lhes os pontos de ação independente.
Quase impossível é determinar-lhes a fronteira divisória, porquanto
o espírito mais sábio não se animaria a localizar, com afirmações dogmáticas,
o ponto onde termina a matéria e começa o espírito. 5
No corpo físico, diferençam-se as células de maneira surpreendente.
Apresentam determinada personalidade no fígado, outra nos rins e ainda
outra no sangue. Modificam-se infinitamente, surgem e desaparecem, aos
milhares, em todos os domínios da química orgânica, propriamente dita.
6 No cérebro, porém,
inicia-se o império da química espiritual. Os elementos celulares, aí,
são dificilmente substituíveis. A paisagem delicada e superior é sempre
a mesma, porque o trabalho da alma requer fixação, aproveitamento e
continuidade. 7 O estômago
pode ser um alambique, em que o mundo infinitésimo se revele, em tumultuária
animalidade, aproximando-se dos quadros inferiores da vida, porquanto
o estômago não necessita recordar, compulsoriamente, que substância
alimentícia lhe foi dada a elaborar na véspera. 8
O órgão de expressão mental, contudo, reclama personalidades químicas
de tipo sublimado, por alimentar-se de experiências que devem ser registadas,
arquivadas e lembradas sempre que oportuno ou necessário. Intervém,
então, a química superior, dotando o cérebro de material insubstituível
em muitos departamentos de seu laboratório íntimo.
9 Interrompeu-se o Assistente
por alguns segundos, como a dar-me tempo para refletir.
Em seguida, continuou, atencioso:
— Na verdade, não há nisso mistério algum. Voltemos aos ascendentes
em evolução. 10 O
princípio espiritual acolheu-se no seio tépido das águas, através dos
organismos celulares, que se mantinham e se multiplicavam por cissiparidade.
Em milhares de anos, fez longa viagem na esponja, passando a dominar
células autônomas, impondo-lhes o espírito de obediência e de coletividade,
na organização primordial dos músculos. 11
Experimentou longo tempo, antes de ensaiar os alicerces do aparelho
nervoso, na medusa, no verme, no batráquio, arrastando-se para emergir
do fundo escuro e lodoso das águas, de modo a encetar as experiências
primeiras, ao sol meridiano. 12
Quantos séculos consumiu, revestindo formas monstruosas, aprimorando-se,
aqui e ali, ajudado pela interferência indireta das Inteligências superiores?
Impossível responder, por enquanto. Sugou o seio farto da Terra, evolucionando
sem parar, através de milênios, até conquistar a região mais alta, onde
conseguiu elaborar o próprio alimento.
13 Calderaro fixou em mim significativo
olhar e perguntou:
— Compreendeste suficientemente?
Ante o assombro das ideias novas que me fustigavam a imaginação, impedindo-me o minucioso exame do assunto, o esclarecido companheiro sorriu e continuou:
— Por mais esforços que envidemos por simplificar a exposição deste
delicado tema, o retrospecto que a respeito fazemos sempre causa perplexidade.
14 Quero dizer, André,
que o princípio espiritual, desde o obscuro momento da criação, caminha
sem detença para frente. Afastou-se do leito oceânico, atingiu a superfície
das águas protetoras, moveu-se em direção à lama das margens, debateu-se
no charco, chegou à terra firme, experimentou na floresta copioso material
de formas representativas, ergueu-se do solo, contemplou os céus e,
depois de longos milênios, durante os quais aprendeu a procriar, alimentar-se,
escolher, lembrar e sentir, conquistou a inteligência… 15
Viajou do simples impulso para a irritabilidade, da irritabilidade para
a sensação, da sensação para o instinto, do instinto para a razão. Nessa
penosa romagem, inúmeros milênios decorreram sobre nós. Estamos, em
todas as épocas, abandonando esferas inferiores, a fim de escalar as
superiores. 16 O cérebro
é o órgão sagrado de manifestação da mente, em trânsito da animalidade
primitiva para a espiritualidade humana.
17 O orientador, interrompendo-se,
acariciou-me de leve, como companheiro experimentado no estudo estimulando
aprendiz humilde, e acrescentou:
— Em síntese, o homem das últimas dezenas de séculos representa a humanidade
vitoriosa, emergindo da bestialidade primária. 18
Desta condição participamos nós, os desencarnados, em número de muitos
milhões de Espíritos ainda pesados, por não havermos, até o momento,
alijado todo o conteúdo de qualidades inferiores de nossa organização
perispiritual; 19
tal circunstância nos compele a viver, após a morte física, em formações
afins, em sociedades realmente avançadas, mas semelhantes aos agrupamentos
terrestres. 20 Oscilamos
entre a liberação e a reencarnação, aperfeiçoando-nos, burilando-nos,
progredindo, até conseguir, pelo refinamento próprio, o acesso a expressões
sublimes da Vida Superior, que ainda não nos é dado compreender. 21
Nos dois lados da existência, em que nos movimentamos e dentro dos quais
se encontram o nascimento e a morte do corpo denso, como portas de comunicação,
o trabalho construtivo é a nossa bênção, aparelhando-nos para o futuro
divino. 22 A atividade,
na Esfera que ora ocupamos, é, para quantos se conservam quites com
a Lei, mais rica de beleza e de felicidade, pois a matéria é mais rarefeita
e mais obediente às nossas solicitações de índole superior. 23
Atravessado, contudo, o rio do renascimento, somos surpreendidos pelo
duro trabalho de recapitulação para a necessária aprendizagem. Por lá
semearemos, para colher aqui, aprimorando, reajustando e embelezando,
até atingir a messe perfeita, o celeiro farto de grãos sublimes, de
modo a nos transferirmos, aptos e vitoriosos, para outras “terras do
céu”. 24 Não devemos
acreditar, porém, quanto aos serviços de resgate e de expiação, que
a Esfera carnal seja a única capaz de oferecer o bendito ensejo de sofrimento
áspero, redentor. Em regiões sombrias, fora dela, quais não podes ignorar,
há oportunidade de tratamento expiatório para os devedores mais infelizes,
que voluntariamente contraíram perigosos débitos para com a Lei.
25 Verificou-se breve pausa,
que não interrompi, considerando a inconveniência de qualquer indagação
de minha parte.
4.
Calderado, todavia, continuou, solícito:
— Perguntas por que motivo não conserva o homem encarnado a plenitude
das recordações do longuíssimo pretérito; isto é natural, em virtude
da tão grande ascendência do corpo perispiritual sobre o mecanismo fisiológico.
2 Se a forma física
evolutiu e se aperfeiçoou, o mesmo terá acontecido ao organismo perispirítico,
através das idades. 3
Nós mesmos, em nossa relativa condição de espiritualidade, ainda não
possuímos o processo de reminiscência integral dos caminhos perlustrados.
Não estamos, por enquanto, munidos de suficiente luz para descer com
proveito a todos os ângulos do abismo das origens; tal faculdade, só
mais tarde a adquiriremos, quando nossa alma estiver escoimada de todo
e qualquer resquício de sombra. 4
Comparando, entretanto, a nossa situação com o estado menos lúcido de
nossos irmãos encarnados, importa não nos esqueça que o sistema nervoso, o córtex
motor e os lobos frontais, que ora examinamos, constituem apenas regulares
pontos de contato entre a organização perispiritual e o aparelho físico,
indispensáveis, uma e outro, ao trabalho de enriquecimento e de crescimento
do ser eterno. 5 Em
linguagem mais simples, são respiradouros dos impulsos, experiências
e noções elevadas da personalidade real que não se extingue no túmulo,
e que não suportariam a carga de uma dupla vida. 6
Em razão disto, e atendendo aos deveres impostos à consciência de vigília
para os serviços de cada dia, desempenham função amortecedora: são quebra-luzes,
atuando beneficamente para que a alma encarnada trabalhe e evolva. Além
disto, nascimento e morte, na Esfera carnal, para a generalidade das
criaturas são choques biológicos, imprescindíveis à renovação. 7
Em verdade, não há total esquecimento na Crosta Terrestre, nem restauração
imediata da memória nas províncias de existência, que se seguem, naturais,
ao campo da atividade física. Todos os homens conservam tendências e
faculdades, que quase equivalem a efetiva lembrança do passado; e nem
todos, ao atravessarem o sepulcro, podem readquirir, repentinamente,
o patrimônio de suas reminiscências. 8
Quem demasiado se materialize, demorando-se em baixo padrão vibratório,
no campo de matéria densa, não pode reacender, de pronto, a luz da memória.
Despenderá tempo a desfazer-se dos pesados envoltórios a que inadvertidamente
se prendeu. 9 Dentro
da luta humana, também, é indispensável que os neurônios se façam de
luvas, mais ou menos espessas, a fim de que o fluxo das recordações
não modere o esforço edificante da alma encarnada, empenhada em nobres
objetivos de evolução ou resgate, aprimoramento ou ministério sublime.
10 Importa reconhecer,
porém, que a nossa mente aqui age no organismo perispirítico, com poderes
muito mais extensos, mercê da singular natureza e elasticidade da matéria
que presentemente nos define a forma. 11
Isto, contudo, em nossos círculos de ação, não nos evita as manifestações
grosseiras, as quedas lastimáveis, as doenças complexas, porque a mente,
o senhor do corpo, mesmo aqui, é acessível ao vício, ao relaxamento
e às paixões arruinantes.
5.
Nessa altura, das elucidações, arrisquei uma pergunta, no intervalo
que se fez, espontâneo:
— Como interpretar, de maneira simples, as três regiões de vida cerebral a que nos referimos?
2 O companheiro não se fez
rogado e redarguiu:
— Sistema nervoso, zona motora e lobos frontais, no corpo carnal, traduzindo
impulsividade, experiência e noções superiores da alma, constituem campos
de fixação da mente encarnada ou desencarnada. 3
A demora excessiva num desses planos, com as ações que lhe são consequentes,
determina a destinação do cosmo individual. 4
A criatura estacionária na região dos impulsos perde-se num labirinto
de causas e efeitos, desperdiçando tempo e energia; 5
quem se entrega, de modo absoluto, ao esforço maquinal, sem consulta
ao passado e sem organização de bases para o futuro, mecaniza a existência,
destituindo-a de luz edificante; 6
os que se refugiam exclusivamente no templo das noções superiores sofrem
o perigo da contemplação sem as obras, da meditação sem trabalho, da
renúncia sem proveito. 7
Para que nossa mente prossiga na direção do alto, é indispensável se
equilibre, valendo-se das conquistas passadas, para orientar os serviços
presentes, e amparando-se, ao mesmo tempo, na esperança que flui, cristalina
e bela, da fonte superior de idealismo elevado; através dessa fonte
ela pode captar do Plano divino as energias restauradoras, assim construindo
o futuro santificante. 8
E, como nos encontramos indissoluvelmente ligados aos que se afinam
conosco, em obediência a indefectíveis desígnios universais, quando
nos desequilibramos, pelo excesso de fixação mental, num dos mencionados
setores, entramos em contato com as inteligências encarnadas ou desencarnadas
em condições análogas às nossas.
9 O instrutor, com ar fraternal,
indagou:
— Entendeste?
Respondi afirmativamente, possuído de sincera alegria porque, afinal, assimilara a lição.
6.
Calderaro fez aplicações magnéticas sobre o crânio do enfermo, envolvendo-o
em fluidos benéficos, e disse-me, após longa pausa:
2 — Temos aqui dois
amigos de mente fixada na região dos instintos primários. O encarnado,
depois de reiteradas vibrações no campo do pensamento, em fuga da recordação
e do remorso, arruinou os centros motores, desorganizando também o sistema
endócrino e perturbando os órgãos vitais. 3
O desencarnado converteu todas as energias em alimento da ideia de vingança,
acolhendo-se ao ódio em que se mantém foragido da razão e do altruísmo.
4 Outra seria a situação
de ambos se houvessem esquecido a queda, reerguendo-se pelo trabalho
construtivo e pelo entendimento fraternal, no santuário do perdão legítimo.
5 O Assistente deixou perceber
novo brilho nos olhos percucientes e acrescentou:
— Segundo verificamos, Jesus-Cristo tinha sobradas razões recomendando-nos
o amor aos inimigos e a oração pelos que nos perseguem e caluniam. ( † )
Não é isto mera virtude, senão princípio científico de libertação do
ser, de progresso da alma, de amplitude espiritual: no pensamento residem
as causas. 6 Época
virá, em que o amor, a fraternidade e a compreensão, definindo estados
do espírito, serão tão importantes para a mente encarnada quanto o pão,
a água, o remédio; é questão de tempo. 7
Lícito é esperar sempre o bem, com o otimismo divino. A mente humana,
de maneira geral, ascende para o conhecimento superior, apesar de, por
vezes, parecer o contrário.
8 Em seguida, permaneceu
Calderaro longos minutos em vigorosas irradiações magnéticas, que, envolvendo
a cabeça e a espinha dorsal do enfermo, se me afiguraram fortemente
repousantes, porque em breve o doente, antes torturado, se abandonava
a sono tranquilo, como se sorvera suavíssimo anestésico. 9
Dentro em pouco encontrava-se em nosso Círculo, temporariamente afastado
do veículo denso, tomado de pavor perante o verdugo implacável, que
se mantinha sentado, impassível, num dos ângulos do leito.
10 Verifiquei que o enfermo
não nos notava a presença, qual acontecia com o algoz em muda expectativa.
Contava como certo que o Assistente os cumulasse de longas doutrinações; Calderaro, porém, guardou absoluto silêncio.
11 Não me contive: interroguei-o.
Porque os não socorrer com palavras de esclarecimento? O doente parecia-me
aflito, enquanto o perseguidor se erguia, agora, mais agressivo. Porque
não sustar o braço cruel que ameaçava um infeliz? Não seria justo impedir
o atrito, que acarretaria consequências imprevisíveis ao companheiro
hospitalizado?
12 O instrutor ouviu-me, sereno,
e respondeu:
— Falaríamos em vão, André, porque ainda não sabemos amá-los como se fossem nossos irmãos ou nossos filhos. Para nós ambos, Espíritos de raciocínio algo avançado, mas de sentimentos menos sublimes, são eles dois infortunados, e nada mais. Damos-lhes, no momento, o de que dispomos, isto é, intervenção benéfica no campo de seus sofrimentos exteriores, nos limites de nossas aquisições no domínio do conhecimento.
13 Olhou para grande porta
próxima e acentuou:
— A providência não foi, porém, esquecida. A irmã Cipriana, orientadora dos serviços de socorro do grupo em que coopero, não pode tardar.
14 Mais alguns instantes, durante
os quais o verdugo e a vítima reciprocavam palavras amargas, e o prestimoso
mentor prosseguiu:
— Lembras-te de De Puysegur? ( † )
15 Sim, recordava-me
de modo vago. Fez-se em meu cérebro uma livre associação de ideias,
rememorando estudos que levara a efeito sobre certas realizações de
Charcot. ( † )
Não podia, entretanto, especificar particularidades, porquanto a psiquiatria
não fora meu campo direto de trabalho na medicina.
16 Tornou Calderaro, solícito:
— De Puysegur foi dos primeiros magnetistas que encontraram o sono revelador,
em que era possível conversar com o paciente noutro estado consciencial
que não o comum. Desde então, a descoberta impressionou os psicologistas;
com ela, surgia nova terapêutica para tratamento das moléstias nervosas
e mentais. 17 Entretanto,
para nós, “neste lado” da vida, o fenômeno é corriqueiro: diariamente
milhões de pessoas adormecem sob a influência magnética de amigos espirituais,
a fim de serem auxiliadas nas resoluções inadiáveis.
18 — E porque não
tentarmos o esclarecimento verbal, agora, a estes nossos amigos? — Insisti,
ansioso por minha vez, observando os infortunados contendores, que se
trocavam insultos e acusações.
— Porque, se o conhecimento auxilia por fora, só o amor socorre por dentro,
— acrescentou o instrutor tranquilamente. 19
Com a nossa cultura retificamos os efeitos, quanto possível, e só os
que amam conseguem atingir as causas profundas. Ora, os nossos desventurados
amigos reclamam intervenção no íntimo, para modificar atitudes mentais
em definitivo… E nós ambos, por enquanto, apenas conhecemos, sem saber
amar…
20 Nesse momento, alguém assomou
à porta de entrada.
Oh! Era uma sublime mulher, revelando idade madura; nos olhos esplendia-lhe brilho meigo e enternecedor. Curvei-me, comovido e respeitoso. Calderaro tocou-me o ombro de leve, e murmurou-me ao ouvido:
— É a irmã Cipriana, a portadora do divino amor fraternal, que ainda não adquirimos.
André Luiz
[1] No original: “na manhã imediata”