1.
Imitando a criança que se conduz pelos passos dos benfeitores, cheguei
à minha cidade, com a sensação indescritível do viajante que torna ao
berço natal depois de longa ausência.
2 Sim, a paisagem não se modificara
de maneira sensível. As velhas árvores do bairro, o mar, o mesmo céu,
o mesmo perfume errante. Embriagado de alegria, não mais notei a expressão
fisionômica da senhora Laura, que denunciava extrema preocupação, e
despedi-me da pequena caravana, que seguiria adiante.
3 Clarêncio abraçou-me e falou:
— Você tem uma semana ao seu dispor. Passarei aqui diariamente para revê-lo, atento aos cuidados que devo consagrar aos problemas da reencarnação de nossa irmã. Se quiser ir a “Nosso Lar”, aproveitará minha companhia. Passe bem, André!
4 Último adeus à dedicada
mãe de Lísias e me vi só, respirando o ar de outros tempos, a longos
haustos.
Não me demorei a examinar pormenores. Atravessei celeremente algumas ruas,
a caminho de casa. O coração me batia descompassado, à medida que me
aproximava do grande portão de entrada. 5
O vento, como outrora, sussurrava carícias no arvoredo do pequeno parque.
Desabrochavam azáleas e rosas, saudando a luz primaveril. Frente
ao pórtico, ostentava-se, garbosa, a palmeira que, com Zélia, havia
plantado no primeiro aniversário de casamento.
6 Ébrio de felicidade,
avancei para o interior. Tudo, porém, denotava diferenças enormes. Onde
estariam os velhos móveis de jacarandá? E o grande retrato onde, com
a esposa e os filhinhos, formávamos gracioso grupo? Alguma coisa me
oprimia ansiosamente. 7
Que teria acontecido? Comecei a cambalear de emoção. Dirigi-me à sala
de jantar, onde vi a filhinha mais nova, transformada em jovem casadoira.
E, quase no mesmo instante, vi Zélia que saía do quarto, acompanhando
um cavalheiro que me pareceu médico, à primeira vista.
8 Gritei minha alegria
com toda a força dos pulmões, mas as palavras pareciam reboar pela casa
sem atingir os ouvidos dos circunstantes. Compreendi a situação e calei-me,
desapontado. 9 Abracei-me
à companheira, com o carinho da minha saudade imensa, mas Zélia parecia
totalmente insensível ao meu gesto de amor. Muito atenta, perguntou
ao cavalheiro alguma cousa que não pude compreender de pronto. 10
O interlocutor, baixando a voz, respondeu, respeitoso:
— Só amanhã poderei diagnosticar seguramente, porque a pneumonia se apresenta muito complicada, em virtude da hipertensão. Todo o cuidado é pouco, o Dr. Ernesto reclama absoluto repouso.
2.
Quem seria aquele Dr. Ernesto? Perdia-me num mar de indagações, quando
ouvi minha esposa suplicar, ansiosa:
— Mas, doutor, salve-o, por caridade! Peço-lhe! Oh! Não suportaria uma segunda viuvez.
2 Zélia chorava e torcia as
mãos, demonstrando imensa angústia.
Um corisco não me fulminaria com tamanha violência. Outro homem se apossara
do meu lar. A esposa me esquecera. A casa não mais me pertencia. 3
Valia a pena ter esperado tanto para colher semelhantes desilusões?
Corri ao meu quarto, verificando que outro mobiliário atendia na alcova
espaçosa. No leito, estava um homem de idade madura, evidenciando melindroso
estado de saúde. Ao lado dele, três figuras negras iam e vinham, mostrando-se
interessadas em lhe agravar os padecimentos.
4 De pronto, tive ímpetos
de odiar o intruso com todas as forças, mas já não era eu o mesmo homem
de outros tempos. O Senhor me havia chamado aos ensinamentos do amor,
da fraternidade e do perdão. Verifiquei que o doente estava cercado
de entidades inferiores, devotadas ao mal; entretanto, não consegui
auxiliá-lo imediatamente.
5 Assentei-me, decepcionado
e acabrunhado, vendo Zélia entrar e sair do aposento, várias vezes,
acariciando o enfermo com a ternura que me coubera noutros tempos, e,
depois de algumas horas de amarga observação e meditação, voltei, cambaleante,
à sala de jantar, onde encontrei as filhas conversando. Sucediam-se
as surpresas. A mais velha casara-se e tinha ao colo o filhinho. E meu
filho? Onde estaria ele?
6 Zélia instruiu convenientemente
uma velha enfermeira e veio palestrar, mais calmamente, com as filhas.
— Vim vê-los, mamãe! — Exclamou a primogênita, — não só para colher notícias do Dr. Ernesto, como também porque, hoje, singulares saudades do papai atormentam-me o coração. Desde cedo, não sei por que penso tanto nele. É uma cousa que não sei bem definir…
7 Não terminou. Lágrimas abundantes
borbotavam-lhe dos olhos.
Zélia, com imensa surpresa para mim, dirigiu-se à filha autoritariamente:
— Ora essa! Era o que nos faltava!… Aflitíssima como estou, tolerar as suas
perturbações. Que passadismo é esse, minha filha? Já proibi a vocês,
terminantemente, qualquer alusão, nesta casa, a seu pai. 8
Não sabe que isso desgosta o Ernesto? Já vendi tudo quanto nos recordava
aqui o passado morto; modifiquei o aspecto das próprias paredes, e você
não me pode ajudar nisso?
9 A filha mais jovem interveio,
acrescentando:
— Desde que a pobre mana começou a se interessar pelo maldito Espiritismo, vive com essas tolices na cachola. Onde já se viu tal disparate? Essa história dos mortos voltarem é o cúmulo dos absurdos.
10 A outra, embora continuasse
chorando, falou com dificuldade:
— Não estou traduzindo convicções religiosas. Então é crime sentir saudades de papai? Vocês também não amam, não têm sentimento? Se papai estivesse conosco, seu único filho varão não andaria, mamãe, a praticar por aí tantas loucuras.
11 — Ora, ora! — Tornou Zélia,
nervosa e enfadada, — cada qual tem a sorte que Deus lhe dá. Não se
esqueça de que André está morto. Não me venha com lamúrias e lágrimas
pelo passado irremediável.
12 Aproximei-me da filha chorosa
e estanquei-lhe o pranto, murmurando palavras de encorajamento e consolação,
que ela não registrou auditiva, mas subjetivamente, sob a feição de
pensamentos confortadores.
13 Afinal, via-me em face de
singular conjuntura! Compreendia, agora, o motivo pelo qual meus verdadeiros
amigos haviam procrastinado, tanto, o meu retorno ao lar terreno.
14 Angústias e decepções sucediam-se
de tropel. Minha casa pareceu-me, então, um patrimônio que os ladrões
e os vermes haviam transformado. Nem haveres, nem títulos, nem afetos!
Somente uma filha ali estava de sentinela ao meu velho e sincero amor.
15 Nem os longos anos de sofrimento,
nos primeiros dias de além-túmulo, me haviam proporcionado lágrimas
tão amargas.
3.
Chegou a noite e voltou o dia, encontrando-me na mesma situação de perplexidade,
a ouvir conceitos e a surpreender atitudes que nunca poderia ter suspeitado.
2 À tardinha, Clarêncio passou,
oferecendo-me o cordial da sua palavra amiga e reta. Percebendo meu
abatimento, disse, solícito:
— Compreendo suas mágoas e rejubilo-me pela ótima oportunidade deste testemunho.
Não tenho diretrizes novas. Qualquer conselho de minha parte, portanto,
seria intempestivo. 3
Apenas, meu caro, não posso esquecer que aquela recomendação de Jesus
para que amemos a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós
mesmos, ( † )
opera sempre, quando seguida, verdadeiros milagres de felicidade e compreensão,
em nossos caminhos.
4 Agradeci, sensibilizado,
e pedi que me não desamparasse com o necessário auxílio.
Clarêncio sorriu e despediu-se.
Então, à face da realidade, absolutamente só no testemunho, comecei
a ponderar o alcance da recomendação evangélica e refleti com mais serenidade.
5 Afinal de contas,
por que condenar o procedimento de Zélia? E se fosse eu o viúvo na Terra?
Teria, acaso, suportado a prolongada solidão? Não teria recorrido a
mil pretextos para justificar novo consórcio? E o pobre enfermo? Como
e por que odiá-lo? Não era também meu irmão na Casa de Nosso Pai? Não
estaria o lar, talvez, em piores condições, se Zélia não lhe houvesse
aceitado a aliança afetiva? 6
Preciso era, pois, lutar contra o egoísmo feroz. Jesus conduzira-me
a outras fontes. Não podia proceder como homem da Terra. Minha família
não era, apenas, uma esposa e três filhos na Terra. Era, sim, constituída
de centenas de enfermos nas Câmaras de Retificação e estendia-se, agora,
à comunidade universal. 7
Assomado de novos pensamentos, senti que a linfa do verdadeiro amor
começava a brotar das feridas benéficas que a realidade me abrira no
coração.
André Luiz