1.
À tardinha, Lísias convidou-me para acompanhá-lo ao Campo da Música.
— É preciso distrair-se um pouco, André! — Disse ele, gentil.
2 Vendo-me relutante, acentuou:
— Falarei a Tobias. A própria Narcisa consagrou o dia de hoje ao descanso. Vamos!
3 Eu, porém, observava
em mim mesmo singular fenômeno. Não obstante a escassez dos meus dias
de serviço, já dedicava grande amor àquelas Câmaras. As visitas diárias
do Ministro Genésio, a companhia de Narcisa, a inspiração de Tobias,
a camaradagem dos companheiros, tudo isso me falava particularmente
ao espírito. 4 Narcisa,
Salústio e eu aproveitávamos todos os instantes de folga para melhorar
o interior, aqui e ali, suavizando a situação dos enfermos, que estimávamos
de todo o coração, como se fossem nossos filhos. 5
Considerando a nova posição em que me encontrava, acerquei-me de Tobias,
a quem o enfermeiro do Auxílio dirigiu a palavra com respeitosa intimidade.
Recebendo a solicitação, meu iniciador no trabalho anuiu, satisfeito:
— Ótimo programa! André precisa conhecer o Campo da Música.
E, abraçando-me:
— Não hesite. Aproveite! Volte à noite, quando quiser. Todos os nossos serviços estão convenientemente atendidos.
2.
Acompanhei Lísias, reconhecidamente. Atingindo-lhe a residência, no
Ministério do Auxílio, tive a satisfação de rever a senhora Laura e
informar-me quanto ao regresso da abnegada mãe de Eloísa, que deveria
regressar do planeta, na próxima semana. A casa estava repleta de contentamento.
Havia mais beleza no interior doméstico, novas disposições no jardim.
2 Despedindo-nos, a dona da
casa me abraçou e falou, bem-humorada:
— Então, doravante, a cidade terá mais um frequentador para o Campo da Música! Tome cuidado com o coração!…
E, sorrindo com o nobre otimismo de sempre, acentuou:
— Quanto a mim, ainda ficarei hoje em casa. Vingar-me-ei de vocês, porém, muito breve! Não me demorarei a buscar meu alimento na Terra!…
3 Em meio da geral alegria,
ganhamos a via pública. As jovens faziam-se acompanhar de Polidoro e
Estácio, com quem palestravam animadamente. Lísias, a meu lado, logo
que deixamos o aeróbus numa das praças do Ministério da Elevação, disse
carinhoso:
4 — Finalmente, vai você conhecer
minha noiva, a quem tenho falado muitas vezes a seu respeito.
— É curioso, — observei, intrigado, — encontrarmos noivados, também por aqui…
5 — Como não? Vive o amor
sublime no corpo mortal, ou n’alma eterna? Lá, no Círculo terrestre,
meu caro, o amor é uma espécie de ouro abafado nas pedras brutas. Tanto
o misturam os homens com as necessidades, os desejos e estados inferiores,
que raramente se diferenciará a ganga do precioso metal.
6 A observação era lógica.
Reconhecendo o efeito benéfico da explicação, prosseguiu:
— O noivado é muito mais belo na espiritualidade. Não existem véus
de ilusão a obscurecer-nos o olhar. Somos o que somos. Lascínia e eu
já fracassamos muitas vezes nas experiências materiais. 7
Devo confessar que quase todos os desastres do pretérito tiveram origem
na minha imprevidência e absoluta falta de autodomínio. 8
A liberdade que as leis sociais do planeta conferem ao sexo masculino,
ainda não foi devidamente compreendida por nós outros. Raramente algum
de nós a utiliza no mundo em serviço de espiritualização. Amiúde, convertemo-la
em resvaladouro para a animalidade. 9
As mulheres, ao contrário, têm tido, até agora, a seu favor, as disciplinas
mais rigorosas. Na existência passageira, sofrem-nos a tirania e suportam
o peso das nossas imposições; 10
aqui, porém, verificamos o reajustamento dos valores. Só é verdadeiramente
livre quem aprende a obedecer. Parece paradoxo e, todavia, é a expressão
da verdade.
11 — Contudo, — indaguei, —
tem você em mira novos planos para os Círculos carnais?
— Nem podia ser de outro modo, — explicou ele, pressuroso, — necessito enriquecer
o patrimônio das experiências e, além disso, minhas dívidas para com
o planeta são ainda enormes. 12
Lascínia e eu fundaremos aqui, dentro em breve, nossa casinha de felicidade,
crendo que voltaremos à Terra precisamente daqui a uns trinta anos.
3.
Havíamos alcançado as cercanias do Campo da Música. Luzes de indescritível
beleza banhavam extenso parque, onde se ostentavam encantamentos de
verdadeiro conto de fadas. Fontes luminosas traçavam quadros surpreendentes:
um espetáculo absolutamente novo para mim.
2 Antes que pudesse manifestar
minha profunda admiração, Lísias recomendou bem-humorado:
— Lascínia sempre se faz acompanhar de duas irmãs, às quais, espero faça você as honras de cavalheiro.
— Mas, Lísias… — Respondi, reticencioso, considerando minha antiga posição conjugal, — você deve compreender que estou ligado a Zélia.
3 O enfermeiro amigo, nesse
instante, riu a valer, acrescentando:
— Era o que faltava! Ninguém quer ferir seus sentimentos de fidelidade. Não creio, no entanto, que a união esponsalícia deva trazer o esquecimento da vida social. Não sabe mais ser o irmão de alguém, André?
4 Ri-me, desconcertado, e
nada pude replicar.
Nesse momento, atingimos a faixa de entrada, onde Lísias pagou gentilmente o ingresso. n
5 Notei, ali mesmo, grande
grupo de passeantes, em torno de gracioso coreto, onde um corpo orquestral
de reduzidas figuras executava música ligeira. Caminhos marginados de
flores desenhavam-se à nossa frente, dando acesso ao interior do parque,
em várias direções. Observando minha admiração pelas canções que se
ouviam, o companheiro explicou:
6 — Nas extremidades do Campo,
temos certas manifestações que atendem ao gosto pessoal de cada grupo
dos que ainda não podem entender a arte sublime; mas, no centro, temos
a música universal e divina, a arte santificada, por excelência.
7 Com efeito, depois
de atravessarmos alamedas risonhas, onde cada flor parecia possuir seu
reinado particular, comecei a ouvir maravilhosa harmonia dominando o
céu. 8 Na Terra, há
pequenos grupos para o culto da música fina e multidões para a música
regional. Ali, contudo, verificava-se o contrário. O centro do campo
estava repleto. 9 Eu
havia presenciado numerosas agregações de gente, na colônia, extasiara-me
ante a reunião que o nosso Ministério consagrara ao Governador. Mas
o que via agora excedia a tudo que me deslumbrara até então.
10 A sociedade de “Nosso Lar” apresentava-se
em magnífica forma.
Não era luxo, nem excesso de qualquer natureza, o que proporcionava tanto brilho
ao quadro maravilhoso. Era a expressão natural de tudo, a simplicidade
confundida com a beleza, a arte pura e a vida sem artifícios. 11
O elemento feminino aparecia na paisagem, revelando extremo apuro de
gosto individual, sem desperdício de adornos e sem trair a simplicidade
divina. Grandes árvores, diferentes das que se conhecem na Terra, guarnecem
belos recintos, iluminados e acolhedores.
12 Não somente os
pares afetuosos demoravam nas estradas floridas. Grupos de senhoras
e cavalheiros entretinham-se em animada conversação, valiosa e construtiva.
13 Não obstante sentir-me
sinceramente humilhado pela minha insignificância ante aquela aglomeração
seletíssima, experimentava a mensagem silenciosa de simpatia, no olhar
de quantos me defrontavam. 14
Ouvia frases soltas, relativamente aos Círculos carnais, e, contudo,
em nenhuma palestra notei o mais ligeiro laivo de malícia ou de acusação
aos homens. 15 Discutia-se
o amor, a cultura intelectual, a pesquisa científica, a filosofia edificante,
mas todos os comentários tendiam à Esfera elevada do auxílio mútuo,
sem qualquer atrito de opinião. 16
Observei que, ali, o mais sábio restringia as vibrações de seu poder
intelectual, ao passo que os menos instruídos elevavam, quanto possível,
a capacidade de compreensão para absorver as dádivas do conhecimento
superior. 17 Em palestras
numerosas, recolhia referências a Jesus e ao Evangelho, e, no entanto,
o que mais me impressionava era a nota de alegria reinante em todas
as conversações. 18
Ninguém recordava o Mestre com as vibrações negativas da tristeza inútil,
ou do injustificável desalento. Jesus era lembrado por todos como supremo
orientador das organizações terrenas, visíveis e invisíveis, cheio de
compreensão e bondade, mas também consciente da energia e da vigilância
necessárias à preservação da ordem e da justiça.
19 Aquela sociedade otimista
encantava-me. Diante dos olhos, tinha concretizadas as esperanças de
grande número dos pensadores verdadeiramente nobres, na Terra.
20 Grandemente maravilhado
com a música sublime, ouvi Lísias dizer:
— Nossos orientadores, em harmonia, absorvem raios de inspiração nos Planos
mais altos, e os grandes compositores terrestres são, por vezes, trazidos
às Esferas como a nossa, onde recebem algumas expressões melódicas,
transmitindo-as, por sua vez, aos ouvidos humanos, adornando os temas
recebidos com o gênio que possuem. 21
O Universo, André, está cheio de beleza e sublimidade. O facho resplendente
e eterno da vida procede originariamente de Deus.
22 O enfermeiro do Auxílio,
todavia, não pôde continuar.
Fôramos defrontados por gracioso grupo. Lascínia e as irmãs haviam chegado e era preciso atender aos imperativos da confraternização.
André Luiz
[1] [Bônus-hora
moeda. — Vide explicações sobre o valor
aquisitivo do bônus-hora no capítulo 22. Podemos pressupor que Lísias
pagou o ingresso utilizando-se de algum tipo de cartão magnético ou
por alguma forma de transação online.]