1.
Não sabia explicar a grande atração pela visita ao departamento feminino
das Câmaras de Retificação. Falei a Narcisa, do meu desejo, prontificando-se
ela a satisfazer-me.
2 — Quando o Pai nos convoca
a determinado lugar, — disse, bondosa, — é que lá nos aguarda alguma
tarefa. Cada situação, na vida, tem finalidade definida… 3
Não deixe de observar este princípio em suas visitas aparentemente casuais.
Desde que nossos pensamentos visem à prática do bem, não será difícil
identificar as sugestões divinas.
4 No mesmo dia, a enfermeira
acompanhou-me, à procura de Nemésia, prestigiosa cooperadora naquele
setor de serviço.
Não foi difícil encontrá-la.
5 Filas de leitos muito alvos
e bem cuidados exibiam mulheres, que mais se assemelhavam a frangalhos
humanos. Aqui e ali, gemidos lancinantes; acolá, angustiosas exclamações.
Nemésia, que se caracterizava pela mesma generosidade de Narcisa, falou
com bondade:
— O amigo deve estar agora habituado a estes cenários. No departamento masculino a situação é quase a mesma.
6 E, fazendo um gesto significativo
à companheira, acentuou:
— Narcisa, faça o obséquio de acompanhar nosso irmão e mostrar os serviços que julgar convenientes ao aprendizado dele. Fiquem à vontade.
7 Minha amiga e eu comentávamos
a vaidade humana, sempre atida aos prazeres físicos, enumerando observações
e ensinamentos, quando atingimos o Pavilhão 7. Localizavam-se ali algumas
dezenas de mulheres, em leitos separados, um a um, a regular distância.
8 Estudava eu a fisionomia
das enfermas, quando fixei alguém que me despertou mais viva atenção.
Quem seria aquela mulher amargurada, de aparência original? Velhice
que parecia prematura tipificava-lhe o semblante, em cujos lábios pairava
um ricto, misto de ironia e resignação. Os olhos, embaçados e tristes,
mostravam-se defeituosos. 9
Memória inquieta, coração oprimido, em poucos instantes localizei-a
no passado. Era Elisa. Aquela mesma Elisa que conhecera nos tempos de
rapaz. Estava modificada pelo sofrimento, mas não podia ter quaisquer
dúvidas. 10 Lembrei,
perfeitamente, o dia em que ela, humilde, penetrara em nossa casa levada
por velha amiga de minha mãe, que aceitou as recomendações trazidas,
admitindo-a para os serviços domésticos. 11
A princípio, o ritmo comum, nada de extraordinário; depois, a intimidade
excessiva, de quem abusa da faculdade de mandar e da condição de servir
alguém. 12 Elisa
pareceu-me bastante leviana, e, quando a sós comigo, comentava sem escrúpulo
certas aventuras da sua mocidade, agravando com isso a irreflexão de
nossos pensamentos. 13
Recordei o dia em que minha genitora me chamou a conselhos justos. Aquela
intimidade, dizia, não ficava bem. Era razoável que dispensássemos à
serva generosidade afetuosa, mas convinha pautar nossas relações com
sadio critério. 14
Entretanto, estouvadamente, levara eu muito longe a nossa camaradagem.
Sob enorme angústia moral, abandonou Elisa, mais tarde, a nossa casa,
sem coragem de me lançar em rosto qualquer acusação. 15
E o tempo passou, reduzindo o fato, em meu pensamento, a episódio fortuito
da existência humana. No entanto, o episódio, como alguma cousa da vida,
estava também vivo. 16
À minha frente tinha Elisa, agora, vencida e humilhada! Por onde vivera
a mísera criatura, tão cedo atirada a doloroso capítulo de sofrimentos?
Donde vinha? 17 Ah!…
naquele caso, não me defrontava o Silveira, perto de quem pudera repartir
o débito com meu pai. A dívida, agora, era inteiramente minha. Cheguei
a tremer, envergonhado da exumação daquelas reminiscências, mas, qual
a criança ansiosa de perdão pelas faltas cometidas, dirigi-me a Narcisa,
pedindo orientação. 18
Eu mesmo me admirava da confiança que aquelas santas mulheres me inspiravam.
Talvez nunca tivesse coragem de pedir ao Ministro Clarêncio as elucidações
que pedira à mãe de Lísias e, possivelmente, outra seria minha conduta
naquele instante, se tivesse Tobias a meu lado. 19
Considerando que a mulher generosa e cristã é sempre mãe, voltei-me
para a enfermeira, confiando mais que nunca. Narcisa, pelo olhar que
me endereçou, parecia tudo compreender. Comecei a falar, contendo o
pranto, mas, a certa altura da confissão penosa, minha amiga obtemperou:
20 — Não precisa continuar.
Adivinho o epílogo da história. Não se entregue a pensamentos destrutivos.
Conheço o seu martírio moral, de experiência própria. Entretanto, se
o Senhor permitiu que reencontrasse agora esta irmã, é que já o considera
em condições de resgatar a dívida.
21 Vendo a minha indecisão,
prosseguiu:
— Não tema. Aproxime-se dela e reconforte-a. Todos nós, meu irmão, encontramos no caminho os frutos do bem ou do mal que semeamos. Esta afirmativa não é frase doutrinária, é realidade universal. Tenho colhido muito proveito de situações iguais a esta. Bem-aventurados os devedores em condições de pagar.
22 E, percebendo-me a resolução
firme de empreender o necessário ajuste de contas, acentuou:
— Vamos, mas não se dê a conhecer, por enquanto. Faça-o, depois de beneficiá-la com êxito. Isso não será difícil, pelo fato de continuar ela em cegueira quase completa, temporariamente. Pelas forças que a envolvem, noto-lhe a triste característica das mães fracassadas e das mulheres de ninguém.
2.
Aproximamo-nos. Tomei a iniciativa da palavra confortadora. Elisa identificou-se,
dando o próprio nome e prestando, de boa vontade, outras informações.
2 Havia três meses
que fora recolhida às Câmaras de Retificação. Interessado em castigar
a mim mesmo, diante de Narcisa, para que a lição me penetrasse n’alma
com caracteres indeléveis, perguntei:
— E sua história, Elisa? Deve ter sofrido muito…
3 Sentindo a inflexão afetuosa
da pergunta, sorriu, muito resignada, e desabafou:
— Para que lembrar coisas tão tristes?
— As experiências dolorosas ensinam sempre objetei.
4 A infeliz, que apresentava
profunda modificação moral, meditou alguns momentos, como quem concatenava
ideias, e falou:
— Minha experiência foi a de todas as mulheres doidivanas que trocam
o pão bendito do trabalho pelo fel venenoso da ilusão. 5
Nos tempos da mocidade distante, como filha d’um lar paupérrimo, vali-me
do emprego em casa de abastado comerciante, onde a vida me impôs imensa
transformação. 6 Esse
negociante tinha um filho, tão jovem quanto eu, e depois da intimidade
estabelecida entre nós, quando toda a reação de minha parte seria inútil,
esqueci criminosamente que Deus reserva o trabalho a todos que amem
a vida sã, por mais faltosos que tenham sido, e entreguei-me a experiências
dolorosas, que não preciso comentar. 7
Conheci, de perto, o prazer, o luxo, o conforto material e, de seguida,
o horror de mim mesma, a sífilis, o hospital, o abandono de todos, as
tremendas desilusões que culminaram na cegueira e na morte do corpo.
8 Errei, muito tempo,
em terrível desespero, mas, um dia, tanto roguei o amparo da Virgem
de Nazaré, que mensageiros do bem me recolheram por amor ao seu nome,
trazendo-me a esta casa de abençoada consolação.
9 Comovidíssimo até às lágrimas,
perguntei:
— E ele? Como se chama o homem que a fez tão infeliz?
Ouvi-a, então, pronunciar meu nome e de meus pais.
— E você o odeia? — Indaguei, acabrunhado.
10 Ela sorriu tristemente e
respondeu:
— No período do meu sofrimento anterior, amaldiçoava-lhe a lembrança, nutrindo por ele um ódio mortal; mas a irmã Nemésia modificou-me. Para odiá-lo, tenho de odiar a mim mesma. No meu caso, a culpa deve ser repartida. Não devo, pois, recriminar a ninguém.
11 Aquela humildade sensibilizou-me.
Tomei-lhe a destra sobre a qual, sem que o pudesse evitar, rolou uma
lágrima de arrependimento e remorso.
— Ouça, minha amiga, — falei com emoção forte, — também eu me chamo André e preciso ajudá-la. Conte comigo, doravante.
— E sua voz, — disse Elisa, ingenuamente, — parece a dele.
12 — Pois bem! — Continuei,
comovido, — até agora, não tenho propriamente uma família em “Nosso
Lar”. Mas você será aqui minha irmã do coração. Conte com o meu devotamento
de amigo.
13 No semblante da sofredora,
um grande sorriso parecia uma grande luz.
— Como lhe sou grata! — Disse ela enxugando as lágrimas, — há quantos anos ninguém me fala assim, nesse tom familiar, dando-me o consolo da amizade sincera!… Que Jesus o abençoe.
14 Nesse instante, quando minhas
lágrimas se fizeram mais abundantes, Narcisa tomou-me as mãos, maternalmente,
e repetiu:
— Que Jesus o abençoe.
André Luiz