1.
Poucos minutos antes de meia-noite, Narcisa permitiu minha ida ao grande
portão das Câmaras. Os Samaritanos deviam estar nas vizinhanças. Era
imprescindível observar-lhes a volta, para tomar providências.
2 Com que emoção tornei ao
caminho cercado de árvores frondosas e acolhedoras! Aqui, troncos que
recordavam o carvalho vetusto da Terra; além, folhas caprichosas lembrando
a acácia e o pinheiro. Aquele ar embalsamado figurava-se-me uma bênção.
3 Nas Câmaras, apesar
das janelas amplas, não experimentara tamanha impressão de bem-estar.
Assim caminhava, silencioso, sob as frondes carinhosas. Ventos frescos
agitavam-nas de manso, envolvendo-me em sensações de repouso.
4 Sentindo-me só,
ponderei os acontecimentos que me sobrevieram, desde o primeiro encontro
com o Ministro Clarêncio. Onde estaria a paragem de sonho? Na Terra,
ou naquela colônia espiritual? Que teria sucedido a Zélia e aos filhinhos?
5 Por que razão me
prestavam ali tão grande esclarecimentos sobre as mais variadas questões
da vida, omitindo, contudo, qualquer notícia pertinente ao meu antigo
lar? — Minha própria mãe me aconselhara o silêncio, abstendo-se de qualquer
informação direta.
6 Tudo indicava a
necessidade de esquecer os problemas carnais, no sentido de renovar-me
intrinsecamente, e, no entanto, penetrando os recessos do ser, encontrava
a saudade viva dos meus. Desejava ardentemente rever a esposa muito
amada, receber de novo o beijo dos filhinhos… Por que decisões do destino
estávamos agora separados, como se eu fosse um náufrago em praia desconhecida?
7 Simultaneamente,
ideias generosas confortavam-me o íntimo. Não era eu o náufrago abandonado.
Se minha experiência podia classificar-se como naufrágio, não devia
o desastre senão a mim mesmo. Agora que observava em “Nosso Lar” vibrações
novas de trabalho intenso e construtivo, admirava-me de haver perdido
tanto tempo no mundo em frioleiras de toda sorte.
8 Em verdade, muito
amara a companheira de lutas e, sem dúvida, dispensara aos filhinhos
ternuras incessantes; mas, examinando desapaixonadamente minha situação
de esposo e pai, reconhecia que nada criara de sólido e útil no espírito
dos meus familiares. Tarde verificava esse descuido. Quem atravessa
um campo sem organizar sementeira necessária ao pão e sem proteger a
fonte que sacia a sede, não pode voltar com a intenção de abastecer-se.
9 Tais pensamentos
instalavam-se-me no cérebro com veemência irritante. Ao deixar os Círculos
carnais, encontrara as penúrias da incompreensão. E que teria sucedido
à esposa e filhinhos, deslocados da estabilidade doméstica para
as sombras da viuvez e da orfandade? Inútil interrogação.
10 O vento calmo parecia sussurrar
concepções grandiosas, como que desejoso de me espertar a mente para
estados mais altos.
2.
Torturavam-me as inquirições internas, mas, prendendo-me então aos imperativos
do dever justo, aproximei-me da grande cancela, investigando além, através
dos campos de cultura.
2 Tudo luar e serenidade,
céu sublime e beleza silenciosa! Extasiando-me na contemplação do quadro,
demorei alguns minutos entre a admiração e a prece.
3 Instantes depois,
divisei ao longe dois vultos enormes que me impressionaram vivamente.
Pareciam dois homens de substância indefinível, semiluminosa. Dos pés
e dos braços pendiam filamentos estranhos, e da cabeça como que se escapava
um longo fio de singulares proporções. n
Tive a impressão de identificar dois autênticos fantasmas. Não suportei.
Cabelos eriçados, voltei apressadamente ao interior. 4
Inquieto e amedrontado, expus a Narcisa a ocorrência, notando que ela
mal continha o riso.
— Ora essa, meu amigo, — disse, por fim, mostrando bom humor, — não reconheceu aquelas personagens?
Fundamente desapontado, nada consegui responder, mas Narcisa continuou:
5 — Também eu, por
minha vez, experimentei a mesma surpresa, em outros tempos. Aqueles
são os nossos próprios irmãos da Terra. Trata-se de poderosos Espíritos
que vivem na carne em missão redentora e podem, como nobres iniciados
da Eterna Sabedoria, abandonar o veículo corpóreo, transitando livremente
em nossos Planos. 6
Os filamentos e fios que observou são singularidades que os diferenciam
de nós outros. Não se arreceie, portanto. Os encarnados, que conseguem
atingir estas paragens, são criaturas extraordinariamente espiritualizadas,
apesar de obscuras ou humildes na Terra.
7 E, encorajando-me bondosamente,
acentuou:
— Vamos até lá. Temos quarenta minutos depois de meia-noite. Os Samaritanos
não podem tardar. Satisfeito, voltei com ela ao grande portão. Lobrigava-se,
ainda, a enorme distância, os dois vultos que se afastavam de “Nosso
Lar”, tranquilamente. 8
A enfermeira contemplou-os, fez um gesto expressivo de reverência e
exclamou:
— Estão envolvidos em claridade azul. Devem ser dois mensageiros muito elevados da Esfera carnal, em tarefa que não podemos conhecer.
3.
Ali estivemos, minutos longos, parados na contemplação dos campos silenciosos.
Em dado momento, porém, a bondosa amiga indicou um ponto escuro no horizonte
enluarado, e observou:
— Lá vêm eles!
2 Identifiquei a caravana
que avançava em nossa direção, sob a claridade branda do céu. De repente,
ouvi o ladrar de cães, a grande distância.
— Que é isso? — Interroguei, assombrado.
3 — Os cães, — disse Narcisa,
— são auxiliares preciosos nas regiões obscuras do Umbral, onde não
estacionam somente os homens desencarnados, mas também verdadeiros monstros,
que não cabe agora descrever.
4 A enfermeira, em
voz ativa, chamou os servos distantes, enviando um deles ao interior,
transmitindo avisos.
Fixei atentamente o grupo estranho que se aproximava devagarinho.
5 Seis grandes carros, formato
diligência, precedidos de matilhas de cães alegres e bulhentos, eram
tirados por animais que, mesmo de longe, me pareceram iguais aos muares
terrestres. Mas a nota mais interessante era os grandes bandos de aves,
de corpo volumoso, que voavam a curta distância, acima dos carros, produzindo
ruídos singulares.
6 Dirigi-me, incontinenti,
a Narcisa, perguntando:
— Onde o aeróbus? Não seria possível utilizá-lo no Umbral?
Dizendo-me que não, indaguei das razões.
Sempre atenciosa, a enfermeira explicou:
— Questão de densidade da matéria. n 7
Pode você figurar um exemplo com a água e o ar. O avião que fende a
atmosfera do planeta não pode fazer o mesmo na massa equórea. Poderíamos
construir determinadas máquinas como o submarino; mas, por espírito
de compaixão pelos que sofrem, os núcleos espirituais superiores preferem
aplicar aparelhos de transição. 8
Além disso, em muitos casos, não se pode prescindir da colaboração dos
animais.
— Como assim? — Perguntei, surpreso.
9 — Os cães facilitam o trabalho,
os muares suportam cargas pacientemente e fornecem calor nas zonas onde
se faça necessário; e aquelas aves, — acrescentou, indicando-as no espaço,
— que denominamos íbis viajores, n
são excelentes auxiliares dos Samaritanos, por devorarem as formas mentais
odiosas e perversas, entrando em luta franca com as trevas umbralinas.
10 Vinha, agora, mais próxima
a caravana.
Narcisa fixou-me com bondosa atenção, rematando:
— Mas, no momento, o dever não comporta minudências informativas. Poderá colher valiosas lições sobre os animais, não aqui, mas no Ministério do Esclarecimento, onde se localizam os parques de estudo e experimentação.
11 E distribuindo ordens de
serviço, aqui e acolá, preparava-se para receber novos doentes do espírito.
André Luiz
[1] “Um longo fio…” v. Cordão fluídico.
[2] Sobre a questão da densidade da matéria nas diferentes dimensões, vide uma observação no tema Matéria.
[3] Os íbis são aves pernaltas com pescoço longo e bico comprido e encurvado para baixo. †