1.
Enquanto Narcisa consolava o doente aflito, fui informado de que me
chamavam ao aparelho de comunicações urbanas.
2 Era a senhora Laura que
pedia notícias. De fato, esquecera-me avisar sobre as deliberações
de serviço noturno. Pedi desculpas à minha benfeitora e forneci rápido
relatório verbal da nova situação. Através do fio, a progenitora de Lísias
parecia exultar, compartilhando meu justo contentamento.
3 Ao termo de nossa ligeira
conversa, disse, bondosa:
— Muito bem, meu filho! Apaixone-se pelo seu trabalho, embriague-se de serviço útil. Somente assim, atenderemos à nossa edificação eterna. Lembre, porém, que esta casa também lhe pertence.
Aquelas palavras encheram-me de nobres estímulos.
2.
Regressando ao contato direto com os enfermos, notei Narcisa a lutar
heroicamente por acalmar um rapaz que revelava singulares distúrbios.
Procurei ajudá-la.
2 O pobrezinho, de olhos perdidos
no espaço, gritava, espantadiço:
— Acuda-me, por amor de Deus! Tenho medo, medo!…
E, olhar esgazeado dos que experimentam profundas sensações de pavor, acentuava:
— Irmã Narcisa, lá vem “ele”! O monstro! Sinto os vermes novamente! “Ele”! “Ele”!… Livre-me “dele”!, irmã! Não quero, não quero…
3 — Calma, Francisco,
— pedia a companheira dos infortunados, — você vai libertar-se, ganhar
muita serenidade e alegria, mas depende do seu esforço. Faça de conta
que a sua mente é uma esponja embebida em vinagre. É necessário expelir
a substância azeda. Ajudá-lo-ei a faze-lo, mas o trabalho mais intenso
cabe a você mesmo.
4 O doente mostrava boa vontade,
acalmava-se enquanto ouvia os conceitos carinhosos, mas volvia à mesma
palidez de antes, prorrompendo em novas exclamações.
— Mas, irmã, repare bem… “ele” não me deixa. Já voltou a atormentar-me! Veja, veja!…
5 — Estou vendo-o, Francisco,
— respondia ela, cordata, — mas é indispensável que você me ajude a
expulsá-lo.
— Este fantasma diabólico!… — Acrescentava a chorar como criança, provocando compaixão.
— Confie em Jesus e esqueça o monstro, — dizia a irmã dos infelizes, piedosamente, — vamos ao passe. O fantasma fugirá de nós.
6 E aplicou-lhe fluidos salutares
e reconfortadores, que Francisco agradeceu, manifestando imensa alegria
no olhar.
— Agora, — disse ele, finda a operação magnética, — estou mais tranquilo.
Narcisa ajeitou-lhe os travesseiros, mandou que uma serva lhe trouxesse água magnetizada.
Aquela exemplificação da enfermeira edificava-me. O bem, como o mal,
em toda parte estabelece misterioso contágio.
7 Observando-me o sincero
desejo de aprender, Narcisa aproximou-se mais, mostrando-se disposta
a iniciar-me nos sublimes segredos do serviço.
— A quem se refere o doente? — Indaguei, impressionado. — Está, porventura, assediado por alguma sombra invisível ao meu olhar?
8 A velha servidora das Câmaras
de Retificação sorriu carinhosamente e falou:
— Trata-se do seu próprio cadáver.
— Que me diz? — Tornei, espantado.
9 — O pobrezinho era
excessivamente apegado ao corpo físico e veio para a Esfera espiritual
após um desastre, oriundo de pura imprudência. Esteve, durante muitos
dias, ao lado dos despojos, em pleno sepulcro, sem se conformar à
situação diversa. — Queria firmemente levantar o corpo hirto, tal o império
da ilusão em que vivera e, nesse triste esforço, gastou muito tempo.
10 Amedrontava-se
com a ideia de enfrentar o desconhecido e não conseguia acumular nem
mesmo alguns átomos de desapego às sensações físicas. Não valeram socorros
das Esferas mais altas, porque fechava a zona mental a todo pensamento
relativo à vida eterna. 11
Por fim, os vermes fizeram-lhe experimentar tamanhos padecimentos que
o pobre se afastou do túmulo, tomado de horror. Começou, então, a peregrinar
nas zonas inferiores do Umbral; no entanto, os que lhe foram pais na
Terra possuem aqui grandes créditos espirituais e rogaram sua internação
na colônia. 12 Trouxeram-no
os Samaritanos, quase à força. Seu estado, contudo, é ainda tão grave
que não poderá ausentar-se, tão cedo, das Câmaras de Retificação. O
amigo, que lhe foi genitor na carne, está presentemente em arriscada
missão, distante de “Nosso Lar”…
13 — E vem visitar o doente?
— Perguntei.
— Já veio duas vezes e experimentei grande comoção, observando-lhe
o sofrimento, discreto. Tamanha é a perturbação do rapaz, que não reconheceu
o pai generoso e dedicado. Gritava, aflito, mostrando a demência dolorosa.
14 O progenitor, que
veio vê-lo em companhia do Ministro Pádua, do Ministério da Comunicação,
pareceu muito superior à condição humana, enquanto se encontrava com
o nobre amigo que obtivera hospitalidade para o filho infeliz. Demoraram-se
bastante, comentando a situação espiritual dos recém-chegados dos Círculos
carnais. 15 Mas,
quando o Ministro Pádua se retirou, compelido por circunstâncias de
serviço, o pai do rapaz me pediu lhe perdoasse o gesto humano e ajoelhou-se
diante do enfermo. Tomou-lhe as mãos, ansioso, como se estivesse a transmitir
vigorosos fluidos vitais, e beijou-lhe a face, chorando copiosamente.
16 Não pude conter as
lágrimas e retirei-me, deixando-os a sós. Não sei o que se passou, em
seguida, entre ambos; mas notei que Francisco, desde esse dia, melhorou
bastante. A demência total reduziu-se a crises que são, agora, cada
vez mais espaçadas.
17 — Como tudo isso comove!
— Exclamei sob forte impressão. Entretanto, como pode a imagem do cadáver
persegui-lo?
— A visão de Francisco, — esclareceu a velhinha, atenciosa, — é o pesadelo
de muitos Espíritos depois da morte carnal. 18
Apegam-se demasiadamente ao corpo, não enxergam outra coisa, nem vivem
senão dele e para ele, votando-lhe verdadeiro culto, e, vindo o sopro
renovador, não o abandonam. 19
Repelem quaisquer ideias de espiritualidade e lutam desesperadamente
por conserva-lo. Surgem, no entanto, os vermes vorazes, e os expulsam.
A essa altura, horrorizam-se do corpo e adotam nova atitude extremista.
20 A visão do cadáver,
porém, como forte criação mental deles mesmos, atormenta-os no imo da
alma. Sobrevêm perturbações e crises, mais ou menos longas, e muito
sofrem até à eliminação integral do seu fantasma.
21 Notando-me a comoção, Narcisa
acrescentou:
— Graças ao Pai, venho aproveitando bastante, nestes últimos anos de
serviço. Ah! Como é profundo o sono espiritual da maioria de nossos
irmãos na carne! 22
Isto, porém, deve preocupar-nos, mas não deve ferir-nos. A crisálida
cola-se à matéria inerte, mas a borboleta alçará o voo; a semente é
quase imperceptível e, no entanto, o carvalho será um gigante. A flor
morta volve à terra, mas o perfume vive no céu. 23
Todo embrião de vida parece dormir. Não devemos esquecer estas lições.
E Narcisa calou-se, sem que me atrevesse a interromper-lhe o silêncio.
André Luiz