1.
Ainda não voltara a mim da profunda surpresa, quando Salústio se aproximou,
informando a Narcisa:
— Nossa irmã Paulina deseja ver o pai enfermo, no Pavilhão 5. Antes de atender, julguei razoável consultá-la, porque o doente continua em crise muito aguda.
2 Mostrando gestos de bondade
que lhe eram característicos, Narcisa acentuou:
— Mande-a entrar sem demora. Ela tem permissão da Ministra, visto estar consagrando o tempo disponível em tarefa de reconciliação dos familiares.
3 Enquanto o mensageiro se
despedia, apressado, a enfermeira bondosa acrescentava, dirigindo-se
a mim:
— Você verá que filha generosa!
Não decorrera um minuto e Paulina estava diante de nós, esbelta e linda. Trajava
uma túnica muito leve, tecida em seda luminosa. Angelical beleza caracterizava-lhe
os traços fisionômicos, mas os olhos denunciavam extrema preocupação.
4 Narcisa apresentou-me
delicadamente e, sentindo talvez que poderia confiar na minha presença,
perguntou, algo inquieta:
— E papai, minha amiga?
— Um pouco melhor, — esclareceu a enfermeira, — no entanto, ainda acusa desequilíbrios
fortes.
— É lamentável, — retrucou a jovem, — nem ele, nem os outros cedem no estado
mental a que se recolheram. Sempre o mesmo ódio e a mesma displicência.
5 Narcisa nos convidou
a acompanhá-la, e, minutos após, tinha diante de mim um velho de fisionomia
desagradável. Olhar duro, cabeleira desgrenhada, rugas profundas, lábios
retraídos, inspirava mais piedade que simpatia. 6
Procurei, contudo, vencer as vibrações inferiores que me dominaram,
a fim de observar, acima do sofredor, o irmão espiritual. Desapareceu
a impressão de repugnância, aclarando-se-me os raciocínios. Apliquei
a lição a mim mesmo. 7
Como teria chegado, por minha vez, ao Ministério do Auxílio? Deveria
ser horrível meu semblante de desesperado. Quando examinamos a desventura
de alguém, lembrando as próprias deficiências, há sempre asilo para
o amor fraterno, no coração.
8 O velho enfermo não teve
uma palavra de ternura para a filha que o saudou carinhosa. Através
do olhar, que evidenciava aspereza e revolta, semelhava-se a uma fera
humana enjaulada.
— Papai, o senhor sente-se melhor? — Perguntou com extremo carinho filial.
9 — Ai!… Ai!… — Gritou o doente
em voz estentórica, — não posso esquecer o infame, não posso descansar
o pensamento… Ainda o vejo a meu lado, ministrando-me o veneno mortal!…
— Não diga isso, papai, — pediu a moça generosa, — lembre-se de que Edelberto entrou em nossa casa como filho, enviado por Deus.
— Meu filho?! — Gritou o infeliz. — Nunca! Nunca!… É criminoso sem perdão,
filho do inferno!…
10 Paulina falava, agora,
com os olhos rasos d’água.
— Ouçamos, papai, a lição de Jesus, que recomenda nos amemos uns aos outros. ( † )
Atravessamos experiências consanguíneas, na Terra, para adquirir o verdadeiro
amor espiritual. Aliás, é indispensável reconhecer que só existe um
Pai realmente eterno, que é Deus; mas o Senhor da Vida nos permite a
paternidade ou a maternidade no mundo, a fim de aprendermos a fraternidade
sem mácula. 11 Nossos
lares terrestres são cadinhos de purificação dos sentimentos ou templos
de união sublime, a caminho da solidariedade universal. Muito lutamos
e padecemos, até adquirir o verdadeiro título de irmão. Somos todos
uma só família, na Criação, sob a bênção providencial de um Pai único.
12 Ouvindo-lhe a voz muito
meiga, o doente se pôs a chorar convulsivamente.
— Perdoe Edelberto, papai! Procure sentir nele, não o filho leviano,
mas o irmão necessitado de esclarecimento. Estive em nossa casa, ainda
hoje, lá observando extremas perturbações. Daqui, deste leito, o senhor
envolve todos os nossos em fluidos de amargura e incompreensão, do mesmo modo, por que, eles
lhe fazem o mesmo. 13
O pensamento, em vibrações sutis, alcança o alvo, por mais distante
que esteja. A permuta de ódio e desentendimento causa ruína e sofrimento
nas almas. 14 Mamãe
recolheu-se, há alguns dias, ao hospício, ralada de angústia. Amália
e Cacilda entraram em luta judicial com Edelberto e Agenor, em virtude
dos grandes patrimônios materiais que o senhor ajuntou nas Esferas da
carne. 15 Um quadro
terrível, cujas sombras poderiam diminuir, se sua mente vigorosa não
estivesse mergulhada em propósitos de vingança. Aqui, vemo-lo em estado
grave; na Terra, mamãe louca e os filhos perturbados, odiando-se entre
si. Em meio de tantas mentes desequilibradas, uma fortuna de um milhão
e quinhentos mil cruzeiros. E que vale isso, se não há um átomo de felicidade
para ninguém?
16 — Mas eu leguei enorme patrimônio
à família atalhou o infeliz, rancorosamente, — desejando o bem-estar
de todos…
Paulina não o deixou terminar, retomando a palavra:
— Nem sempre sabemos interpretar o que seja benefício, no capítulo
da riqueza transitória. 17
Se o senhor assegurasse o futuro dos nossos, garantindo-lhes a tranquilidade
moral e o trabalho honesto, seu esforço seria de valiosa previdência;
mas, às vezes, papai, costumamos amealhar o dinheiro por espírito de
vaidade e ambição. Querendo viver acima dos outros, não nos lembramos
disso, senão nas expressões externas da vida. 18
São raros os que se preocupam em ajuntar conhecimentos nobres, qualidades
de tolerância, luzes de humildade, bênçãos de compreensão. Impomos a
outrem os nossos caprichos, afastamo-nos dos serviços do Pai, esquecemos
a lapidação do nosso espírito. 19
Ninguém nasce no planeta simplesmente para acumular moedas nos cofres
ou valores nos bancos. É natural que a vida humana peça o concurso da
previdência, e é justo que não prescinda da contribuição de mordomos
fiéis, que saibam administrar com sabedoria; mas ninguém será mordomo
do Pai com avareza e propósitos de dominação. 20
Tal gênero de vida arruinou nossa casa. Debalde, noutro tempo, busquei
levar socorro espiritual ao ambiente doméstico. Enquanto o senhor e
mamãe se sacrificavam por aumentar haveres, Amália e Cacilda esqueceram
o serviço útil e, como preguiçosas da banalidade social, encontraram
ociosos que as desposaram, visando vantagens financeiras. 21
Agenor repudiou o estudo sério, entregando-se a más companhias. Edelberto
conquistou o título de médico, alheando-se por completo da Medicina
e exercendo-a tão somente de longe em longe à maneira do trabalhador
que visita o serviço por curiosidade. Todos arruinaram belas possibilidades
espirituais, distraídos pelo dinheiro fácil e apegados à ideia de herança.
22 O enfermo tomou uma expressão
de pavor e acrescentou:
— Maldito Edelberto! Filho criminoso e ingrato! Matou-me sem piedade, quando ainda necessitava regularizar minhas disposições testamentárias! Malvado!… Malvado!…
— Cale-se, papai! Tenha compaixão de seu filho, perdoe e esqueça!…
23 O velho, porém, continuou
a praguejar em voz alta. A jovem preparava-se para discutir, mas Narcisa
endereçou-lhe significativo olhar, chamando Salústio para socorrer o
doente em crise. Calou-se Paulina, acariciando a fronte paterna e contendo,
a custo, as lágrimas. Daí a instante, retirava-me em companhia de ambas,
sob forte impressão.
24 As duas amigas trocaram
confidências, ainda por alguns minutos, despedindo-se Paulina a evidenciar
muita generosidade nas frases gentis, mas muita tristeza no olhar afogado
em justa preocupação.
25 Voltando à intimidade, Narcisa
disse, bondosa:
— Os casos de herança, em regra, são extremamente complicados. Com raras exceções,
acarretam enorme peso a legadores e legatários. Neste caso, porém, vemos
não só isso, mas também a eutanásia. A ambição do dinheiro criou, em
toda a família de Paulina, esquisitices e desavenças. Pais avarentos
possuem filhos esbanjadores. 26
Fui a casa de nossa amiga, quando o irmão dela, o Edelberto, médico de aparência
distinta, empregou, no progenitor quase moribundo, a chamada “morte suave”.
Esforçamo-nos por evitar, mas tudo foi em vão. O pobre rapaz desejava,
de fato, apressar o desenlace, por questões de ordem financeira, e aí
temos agora a imprevidência e o resultado — o ódio e a moléstia.
27 E com expressivo gesto,
Narcisa rematou:
— Deus criou seres e céus, mas nós costumamos transformar-nos em Espíritos diabólicos, criando nossos infernos individuais.
André Luiz