1.
Não se passaram muitos dias, após a inesperada visita de minha mãe,
quando Lísias me veio buscar, a chamado do Ministro Clarêncio. Segui-o,
surpreso.
Recebido amavelmente pelo generoso benfeitor, esperava-lhe as ordens com enorme prazer.
2 — Meu amigo, — disse, afável, — doravante está autorizado a fazer observações nos diversos setores
de nossos serviços, com exceção dos Ministérios de natureza superior.
Henrique de Luna deu por terminado seu tratamento, na semana última,
e é justo, agora, aproveite o tempo observando e aprendendo.
3 Olhei para Lísias, como
irmão que devia participar da minha felicidade indizível, naquele instante.
O enfermeiro correspondeu-me ao olhar com intenso júbilo. Não cabia
em mim de contente. Era o início de vida nova. De alguma sorte, poderia
trabalhar, ingressando em escolas diferentes. Clarêncio, que parecia
perceber minha intraduzível ventura, acentuou:
4 — Tornando-se dispensável
sua permanência no parque hospitalar, examinarei atentamente a possibilidade
de sua localização em ambiente novo. Consultarei alguma de nossas instituições…
5 Lísias, porém, cortou-lhe
a palavra, exclamando:
— Se possível, estimaria recebê-lo em nossa casa, enquanto perdurar o curso de observações; lá, minha mãe o trataria como filho.
Fitei o visitador num transporte de alegria. Clarêncio, por sua vez, também lhe endereçou um olhar de aprovação, murmurando:
— Muito bem, Lísias! Jesus alegra-se conosco, sempre que recebemos um amigo no coração.
6 Abracei o generoso enfermeiro,
sem poder traduzir meu agradecimento. A alegria às vezes nos emudece.
— Guarde este documento, — disse-me o atencioso Ministro do Auxílio, entregando-me pequena caderneta, — com ele, poderá ingressar nos Ministérios da Regeneração, do Auxílio, da Comunicação e do Esclarecimento, durante um ano. Decorrido esse tempo, veremos o que será possível fazer relativamente aos seus desejos. Instrua-se, meu caro. Não perca tempo. O interstício das experiências carnais deve ser bem aproveitado.
2.
Lísias deu-me o braço e saí, cambaleando de prazer.
Passados minutos, eis-nos à porta de graciosa construção, cercada de colorido jardim.
— É aqui, — exclamou o companheiro, delicado.
E, com expressão carinhosa, acrescentou:
— O nosso lar, dentro de “Nosso Lar”.
2 Ao tinido brando da campainha
no interior, surgiu à porta simpática matrona.
— Mãe! Mãe!… — Gritou o enfermeiro, apresentando-me alegremente, — este é o irmão que prometi trazer-te.
— Seja bem-vindo, amigo! — Exclamou a senhora, nobremente. — Esta casa é sua.
E abraçando-me:
— Soube que sua mamãe não vive aqui. Nesse caso, terá em mim uma irmã, com funções maternais.
3 Não sabia como agradecer
a generosa hospitalidade. Ia ensaiar algumas frases, para demonstrar
minha comoção e reconhecimento, mas a nobre matrona, revelando singular
bom humor, adiantou-se, adivinhando-me os pensamentos:
— Está proibido de falar em agradecimentos. Não o faça. Obrigar-me-ia a lembrar, de repente, muitas frases convencionais da Terra…
Rimo-nos todos e murmurei, comovido:
— Que o Senhor traduza meu agradecimento a todos em renovadas bênçãos de alegria e paz.
4 Entramos. Ambiente simples
e acolhedor. Móveis quase idênticos aos terrestres; objetos em geral,
demonstrando pequeninas variantes. Quadros de sublime significação espiritual,
um piano de notáveis proporções, descansando sobre ele grande harpa
talhada em linhas nobres e delicadas. Identificando-me a curiosidade,
Lísias falou, prazenteiro:
— Como vê, depois do sepulcro não encontrou ainda os anjos harpistas; mas aí temos uma harpa esperando por nós mesmos.
5 — Oh! Lísias, — atalhou a
palavra materna, carinhosa, — não faças ironia. Não te recordas como
o Ministério da União Divina recebeu o pessoal da Elevação, no ano passado,
quando passaram por aqui alguns embaixadores da Harmonia?
— Sim, mamãe; mas quero apenas dizer que os harpistas existem, e precisamos criar audição espiritual, para ouvi-los, esforçando-nos, por nossa vez, no aprendizado das coisas divinas.
6 Em seguida aos conceitos
obrigatórios de apresentação, com que relacionei minha procedência,
vim a saber que a família de Lísias vivera em antiga cidade do Estado
do Rio de Janeiro; que sua mãe chamava-se Laura e que, em casa, tinha
consigo duas irmãs, Iolanda e Judite.
7 Respirava-se, ali,
doce e reconfortante intimidade. Não conseguia disfarçar meu contentamento
e alegria, enorme. Aquele primeiro contato com a organização doméstica
na colônia enlevava-me. A hospitalidade, cheia de ternura, arrancava-me
ao espírito notas de profunda emoção.
8 Face ao tiroteio de perguntas,
Iolanda exibiu-me livros maravilhosos. Notando-me o interesse, a dona
da casa advertiu:
— Temos em “Nosso Lar”, no que concerne à literatura, uma enorme vantagem; é que os escritores de má-fé, os que estimam o veneno psicológico, são conduzidos imediatamente para as zonas obscuras do Umbral. Por aqui não se equilibram, nem mesmo no Ministério da Regeneração, enquanto perseveram em semelhante estado d’alma.
9 Não pude deixar de sorrir,
continuando a observar os primores da arte fotográfica, nas páginas
sob meus olhos.
Em seguida, chamou-me Lísias para ver algumas dependências da casa, demorando-me na Sala do Banho, cujas instalações interessantes maravilharam-me. Tudo simples, mas confortável.
10 Não voltara a mim da admiração
que me empolgava, quando a senhora Laura convidou à oração.
Sentamo-nos, silenciosos, em torno da grande mesa. Ligado um grande aparelho,
fez-se ouvir música suave. Era o louvor do momento crepuscular. 11
Surgiu, ao fundo, o mesmo quadro prodigioso da Governadoria, que eu
nunca me cansava de contemplar todas as tardes, no parque hospitalar.
Naquele momento, porém, sentia-me dominado de profunda e misteriosa
alegria. E vendo o coração azul desenhado ao longe, senti que minh’alma
se ajoelhava no templo interior, em sublimes transportes de júbilo e
reconhecimento.
André Luiz