1.
Atento às recomendações de Clarêncio, procurava reconstituir energias
para recomeçar o aprendizado. Noutro tempo, talvez me sentisse ofendido
com as observações aparentemente tão ríspidas; mas, naquelas circunstâncias,
lembrava meus erros antigos e sentia-me confortado. 2
Os fluidos carnais compelem a alma a profundas sonolências. Em verdade,
apenas agora reconhecia que a experiência humana, em hipótese alguma,
poderia ser levada à conta de brincadeira. A importância da encarnação
na Terra surgia-me aos olhos, evidenciando grandezas até então ignoradas.
3 Considerando as oportunidades
perdidas, reconhecia não merecer a hospitalidade de “Nosso Lar”. Clarêncio
tinha dobradas razões para falar-me com aquela franqueza.
4 Passei dias entregue
a profundas reflexões sobre a vida. No íntimo, grande ansiedade de rever
o lar terreno. Abstinha-me, porém, de pedir novas concessões. Os benfeitores
do Ministério do Auxílio eram excessivamente generosos para comigo.
Adivinhavam-me os pensamentos. Se até ali não me haviam proporcionado
satisfação espontânea a semelhante desejo, é que tal propósito não seria
oportuno. Calava-me, então, resignado e algo triste. 5
Lísias fazia o possível por alegrar-me com os seus pareceres consoladores.
Eu estava, porém, nessa fase de recolhimento inexprimível, em que o
homem é chamado para dentro de si mesmo, pela consciência profunda.
2.
Um dia, contudo, o generoso visitador penetrou, radiante, no meu apartamento,
exclamando:
— Adivinhe quem chegou à sua procura!
Aquela fisionomia alegre, aqueles olhos brilhantes de Lísias, não me enganavam.
— Minha mãe! — Respondi, confiante.
2 Olhos arregalados de alegria,
vi minha mãe entrar de braços estendidos.
— Filho! Meu filho! Vem a mim, querido meu!
3 Não posso dizer o que se
passou então. Senti-me criança, como no tempo em que brincava à chuva,
pés descalços, na areia do jardim. Abracei-me a ela carinhoso, chorando
de júbilo, experimentando os mais sagrados transportes de ventura espiritual.
Beijei-a repetidas vezes, apertei-a nos braços, misturei minhas lágrimas
com as suas lágrimas, e não sei quanto tempo estivemos juntos, abraçados.
Afinal, foi ela quem me despertou do enlevo, recomendando:
4 — Vamos, filho, não te emociones
tanto assim! A alegria também, quando excessiva, costuma castigar o
coração.
E em vez de carregar minha adorada velhinha nos braços, como fazia na Terra, nos derradeiros tempos de sua romagem por lá, foi ela quem me enxugou o pranto copioso, conduzindo-me ao divã.
— Estás ainda fraco, filhinho. Não desperdices energias.
5 Sentei-me a seu
lado e ela, cuidadosamente, ajeitou-me a fronte cansada, em seus joelhos,
afagando-me de leve, confortando-me à luz de santas recordações. 6
Senti-me, então, o mais venturoso dos homens. Guardava a impressão de
haver o barco de minha esperança ancorado em porto mais seguro. A presença
maternal constituía infinito reconforto ao meu coração. Aqueles minutos
davam-me a ideia de um sonho tecido em trama de felicidade indizível.
7 Qual menino que procura
detalhes, fixava-lhe as vestes, cópia perfeita de um dos seus velhos
trajos caseiros. Notando-lhe o vestido escuro, as meias de lã, a mantilha
azul, contemplei a cabeça pequenina, aureolada a fios de neve, as rugas
do rosto, o olhar doce e calmo de todos os dias. 8
Mãos trêmulas de contentamento, acariciava-lhe as mãos generosas, sem
conseguir articular uma frase. Minha mãe, todavia, mais forte que eu,
falou com serenidade:
9 — Nunca saberemos agradecer
a Deus tamanhas dádivas. O Pai jamais nos esquece, meu filho. Que longo
tempo de separação! Não julgues, porém, que me houvesse esquecido. Às
vezes, a Providência separa os corações, temporariamente, para que aprendamos
o amor divino.
10 Identificando-lhe
a ternura de todos os tempos, senti que se me reavivavam as chagas terrenas.
Oh! Como é difícil alijar resíduos trazidos da Terra! Como pesa a imperfeição
acumulada em séculos sucessivos! Quantas vezes ouvira conselhos generosos de Clarêncio, observações fraternais de Lísias, para esquecer e renunciar às lamentações;
mas, ao carinho maternal, como que se reabriam velhas feridas. 11
Do pranto de alegria passei às lágrimas de angústia, relembrando exacerbadamente
os trâmites terrestres. Não conseguia atinar que a visita não era para
satisfação dos meus caprichos, e sim preciosa bênção do acréscimo de
misericórdia divina. Copiando antigas exigências, concluí erroneamente
que minha genitora deveria continuar como repositório de minhas queixas
e males sem-fim. 12
Na Terra, quase sempre, as mães não passam de escravas, no conceito
dos filhos. Raros lhes entendem a dedicação antes de as perder. Na mesma
falsa concepção de outros tempos, descambei para o terreno das confidências
dolorosas.
13 Minha mãe ouviu-me calada,
deixando transparecer inexprimível melancolia. Olhos úmidos, aconchegando-me
de quando em quando mais estreitamente ao coração, falou, carinhosa:
14 — Oh! Filho,
não ignoro as instruções que o nosso generoso Clarêncio te ministrou.
Não te queixes. Agradeçamos ao Pai a bênção desta reaproximação. Sintamo-nos
agora numa escola diferente, onde aprendemos a ser filhos do Senhor. 15 Na posição de mãe terrestre, nem sempre consegui orientar-te como convinha.
Também eu trabalho, pois, reajustando o coração. Tuas lágrimas fazem-me
voltar à paisagem dos sentimentos humanos. Alguma cousa tenta operar
o retrocesso de minh’alma. Quero dar razão aos teus lamentos, erigir-te
um trono, qual se foras a melhor criatura do Universo; mas essa atitude,
presentemente, não se coaduna com as novas lições da vida. 16
Esses gestos são perdoáveis nas Esferas da carne; aqui, porém, filho
meu, é indispensável atender, antes de tudo, ao Senhor. Não és o único
homem desencarnado a reparar os próprios erros, nem sou a única mãe
a sentir-se distante dos entes amados. Nossa dor, portanto, não nos
edifica pelos prantos que vertemos, ou pelas feridas que sangram em
nós, mas pela porta de luz que nos oferece ao espírito, a fim de sermos
mais compreensivos e mais humanos. Lágrimas e úlceras constituem o processo
de bendita extensão dos nossos mais puros sentimentos.
17 Depois de longa pausa, em
que a consciência profunda me advertia solene, minha mãe prosseguiu:
— Se é possível aproveitar estes minutos rápidos, em expansões de amor, por que desviá-los para a sombra das lamentações? Regozijemo-nos, filho, e trabalhemos incessantemente. Modifica a atitude mental. Conforta-me tua confiança em meu carinho, experimento sublime felicidade em tua ternura filial, mas não posso retroceder nas minhas experiências. Amemo-nos, agora, com o grande e sagrado amor divino.
18 Aquelas palavras benditas
me despertaram. Guardava a impressão de fluidos vigorosos que partiam
do sentimento materno vitalizando-me o coração. Minha mãe me contemplava
desvanecida, mostrando belo sorriso. Ergui-me, respeitoso, e beijei-a
na fronte, sentindo-a mais amorosa e mais bela que nunca.
André Luiz