1.
Pulsava-me precípite o coração, fazendo-me lembrar o aprendiz bisonho,
diante de examinadores rigorosos. Vendo aquela mulher em lágrimas e
ponderando a energia serena do Ministro do Auxílio, tremia dentro de
mim mesmo, arrependido de haver provocado aquela audiência. 2
Não seria melhor calar, aprendendo a esperar deliberações superiores?
Não seria presunção descabida pedir atribuições de médico naquela casa,
onde permanecia como enfermo? 3
A sinceridade de Clarêncio, para com a irmã que me antecedera, despertara-me
raciocínios novos. Quis desistir, renunciar ao desejo da véspera e voltar
ao aposento, mas, era impossível. O Ministro do Auxílio, como se adivinhasse
meus propósitos mais íntimos, exclamou em tom firme:
— Pronto a ouvi-lo.
4 Ia solicitar instintivamente
qualquer serviço médico em “Nosso Lar”, embora a indecisão que me dominava,
entretanto, a consciência me advertia: Por que referir-se a serviço
especializado? Não seria repetir os erros humanos, dentro dos quais
a vaidade não tolera outro gênero de atividade senão o correspondente
aos preconceitos dos títulos nobiliárquicos, ou acadêmicos? Esta ideia
equilibrava-me a tempo. Bastante confundido, falei:
5 — Tomei a liberdade de vir
até aqui, rogar seus bons ofícios para que me reintegre no trabalho.
Ando saudoso dos meus misteres, agora que a generosidade do “Nosso Lar”
me reconduziu à bênção da harmonia orgânica. Qualquer trabalho útil
me interessa, desde que me afaste da inação.
6 Clarêncio fitou-me longamente,
como a identificar-me as intenções mais íntimas.
— Já sei. Verbalmente pede qualquer gênero de tarefa; mas, no fundo, sente falta dos seus clientes, do seu gabinete, da paisagem de serviço com que o Senhor honrou sua personalidade na Terra.
Até aí, as palavras dele eram jatos de conforto e esperança, que
recebia no coração, com gestos confirmativos.
7 Depois de uma pausa mais
longa, porém, o Ministro prosseguiu:
— Convém notar, todavia, que às vezes o Pai nos honra com a Sua confiança
e nós desvirtuamos os verdadeiros títulos de serviço. 8
Você foi médico na Terra, cercado de todas as facilidades, no capítulo
dos estudos. Nunca soube o preço de um livro, porque seus pais, generosos,
lhe custeavam todas as despesas. Logo depois de graduado, começou a
receber proventos compensadores, não teve sequer as dificuldades do
médico pobre, compelido a mobilizar relações afetivas para fazer clínica.
9 Prosperou tão rapidamente
que transformou facilidades conquistadas em carreira para a morte prematura
do corpo. Enquanto moço e sadio, cometeu numerosos abusos, dentro do
quadro de trabalho a que Jesus o conduziu.
10 Ante aquele olhar firme
e bondoso ao mesmo tempo, estranha perturbação apossara-se de mim. Respeitosamente,
ponderei:
— Reconheço a procedência das observações, mas, se possível, estimaria obter meios de resgatar meus débitos, consagrando-me sinceramente aos enfermos deste parque hospitalar.
11 — Impulso muito
nobre, — disse Clarêncio sem austeridade, — contudo, é preciso convir
que toda tarefa na Terra, no campo das profissões, é convite do Pai
para que o homem penetre os templos divinos do trabalho. 12
O título, para nós, é simplesmente uma ficha; mas, no mundo, costuma
representar uma porta aberta a todos os disparates. Com essa ficha,
o homem fica habilitado a aprender nobremente e a servir ao Senhor,
no quadro de Seus divinos serviços no planeta. 13
Tal princípio é aplicável a todas as atividades terrestres, excluída
a convenção dos setores nos quais se desdobrem. 14
Meu irmão recebeu uma ficha de médico. Penetrou o templo da Medicina,
mas sua ação, lá dentro, não se verificou em normas que me autorizem
a endossar seus atuais desejos. 15
Como transformá-lo, de um momento para outro, em médico de Espíritos
enfermos, quando fez questão de circunscrever observações exclusivamente
à Esfera do corpo físico? Não nego sua capacidade de excelente fisiologista,
mas o campo da vida é muito extenso. 16
Que me diz de um botânico que alinhasse definições apenas com o exame
das cascas secas de algumas árvores? Grande número de médicos, na Terra,
prefere apenas a conclusão matemática, frente aos serviços de anatomia.
Concordemos que a Matemática é respeitável, mas não é a única ciência
do Universo. 17 Como
reconhece agora, o médico não pode estacionar em diagnósticos e terminologias.
Há que penetrar a alma, sondar-lhe as profundezas. 18
Muitos profissionais da Medicina, no planeta, são prisioneiros das salas
acadêmicas, porque a vaidade lhes roubou a chave do cárcere. Raros conseguem
atravessar o pântano dos interesses inferiores, sobrepor-se a preconceitos
comuns e, para essas exceções, reservam-se as zombarias do mundo e o
escárnio dos companheiros.
19 Fiquei atônito. Não conhecia
tais noções de responsabilidade profissional. Assombrava-me a interpretação
do título acadêmico, reduzido à ficha de ingresso em zonas de trabalho
para cooperação ativa com o Senhor Supremo. Incapaz de intervir, aguardei
que o Ministro do Auxílio retomasse o fio das elucidações.
20 — Conforme deduz, — continuou
ele, — não se preparou convenientemente para os nossos serviços aqui.
— Generoso benfeitor, — atrevi-me a dizer, — compreendo a lição e curvo-me à evidência.
E, fazendo esforço por conter as lágrimas, pedi, humilde:
— Submeto-me a qualquer trabalho, nesta colônia de realização e paz.
21 Com um profundo olhar de
simpatia, respondeu:
— Meu amigo, não possuo apenas verdades amargas. Tenho igualmente a palavra de estímulo. Não pode ainda ser médico em “Nosso Lar”, mas poderá assumir o cargo de aprendiz, oportunamente. Sua posição atual não é das melhores; entretanto, é confortadora, pelas intercessões chegadas ao Ministério do Auxílio, a seu favor.
22 — Minha mãe? — Perguntei,
inebriado de alegria.
— Sim, — esclareceu o Ministro, — sua mãe e outros amigos, no coração
dos quais você plantou a semente da simpatia. 23
Logo após sua vinda, pedi ao Ministério do Esclarecimento providenciasse
a obtenção de suas notas, que examinei atentamente. Muita imprevidência,
numerosos abusos e muita irreflexão, mas, nos quinze anos de sua clínica,
também proporcionou receituário gratuito a mais de seis mil necessitados.
24 Na maioria das vezes,
praticou esses atos meritórios, absolutamente por troça; mas, presentemente,
pode verificar que, mesmo por troça, o verdadeiro bem espalha bênçãos
em nossos caminhos. Desses beneficiados, quinze não o esqueceram e têm
enviado, até aqui, veementes apelos a seu favor. Devo esclarecer, no
entanto, que mesmo o bem que proporcionou aos indiferentes surge aqui
a seu favor.
25 Concluindo, a sorrir, as
elucidações surpreendentes, Clarêncio acentuou:
— Aprenderá lições novas em “Nosso Lar” e, depois de experiências úteis, cooperará eficientemente conosco, preparando-se para o futuro infinito.
26 Sentia-me radiante. Pela
primeira vez, chorei de alegria na colônia. Oh! Quem poderá entender,
na Terra, semelhante júbilo? Por vezes, é preciso se cale o coração
no grandiloquente silêncio divino.
André Luiz