1 O Natal de 1354 fora festivo no Paço de Santa Clara, ( † ) em Coimbra.
2 Álvaro Pires de Castro, ( † ) irmão de Inês, viera com os amigos, alguns deles, ao lar do Infante D. Pedro, ( † ) onde a noite de entretenimentos familiares fora linda.
3 As castanhas, os doces regionais, os pastéis natalinos e os vinhos antigos enriqueciam as mesas. Falava-se da política de Portugal e de Castela com anedotários de intimidade.
4 O futuro rei de Portugal ouvia interessado as informações do irmão de sua companheira. E, por fim, ambos não hesitavam em concordar que Tereza Lourenço ( † ) — jovem nascida na Galiza e sobrinha de D. Aldonça Lourenço, que fora mãe de Inês de Castro ( † ) com o fidalgo Pedro Fernandes de Castro, ( † ) que não lhe era o marido — era menina de rara beleza que nem D. Pedro e nem D. Álvaro, mesmo na condição de parente, deixavam de admirar.
5 Tereza Lourenço viera a Coimbra muito de ligeiro e voltara aos familiares, deixando uma onda de indisfarçável simpatia. O assunto não passou despercebido a Inês de Castro, cuja mente se turvava com os problemas que se lhe multiplicavam na vida.
6 O Ano Novo chegara igualmente em clarões de alegria, mas, a quatro de janeiro de 1355, D. Pedro e D. Álvaro concordaram em que promoveriam as primeiras caçadas no dia seguinte.
7 O tempo convidava. As manhãs ensolaradas sucediam-se umas às outras. Preparavam-se matilhas de cães, prateavam-se os estribos para as montarias.
8 Cavaleiros auxiliares adestravam cavalos, e as aias iam e vinham, improvisando os pratos que serviriam por bases de merenda à real caravana.
9 À noite, D. Pedro recolheu-se à câmara do casal, mais cedo que de costume, pois via nos olhos da companheira uma tristeza vaga, que ele não conseguira compreender.
10 Interpelando-a, Inês explicou-se:
— Pedro, disse medrosamente, não sei o que se passa. Tenho o coração mergulhado em amargos pressentimentos.
11 Os fidalgos, de modo geral, me odeiam a presença, conquanto mostrem a você mascarados sorrisos.
12 A sua ausência, mesmo por dias curtos, me apavora. Em Coimbra, temos espiões diversos de Pero Coelho, ( † ) hoje guindado à posição de conselheiro de El-Rei D. Afonso, ( † ) que me observam todos os passos.
13 Respeitarão o futuro rei de Portugal, que é você, mas não respeitarão a mim, não obstante saberem que sou mãe de seus filhos. Incapaz de obter o que desejava de mim, desde os tempos de D. Constança, ( † ) Pero Coelho não vacilará em vingar-se…
14 As tramas dos inimigos, as complicações de Estado, a aversão da realeza em meu desfavor, o futuro de nossos filhos, as incertezas que me apavoram, ah! Pedro, tudo isso…
15 E porque a companheira chorasse copiosamente, D. Pedro reanimou-a:
— Inês, estará você doente, porventura? Tantas lágrimas por dois a três dias de caça em companhia de seu próprio irmão?
Ninguém se atreverá a incomodá-la… Pero Coelho não terá coragem de endereçar a você qualquer gracejo. Ele pagaria um preço caro demais por isso…
16 — Mas outros receios me invadem murmurou a companheira — temo igualmente por você…
— Por mim?
17 — Pela primeira vez, depois de nossa união, vi seus olhos brilharem com carinho por outra mulher…
— Quem seria ela, se somente você está em meu pensamento, dia e noite? — perguntou o infante, surpreendido.
— Tereza Lourenço, ( † ) a sobrinha de minha verdadeira mãe, que me impôs a condição de bastarda — informou Inês, chorosa.
18 D. Pedro coçou a cabeça e explicou:
— Juro que isso teria sido alguma coincidência. Vi alguma cousa de seus traços nessa jovem galega, que nasceu sob o mesmo céu que amparou seu berço. Nada mais que isso.
19 E, franzindo o cenho para demonstrar a sua austeridade de atitudes, D. Pedro acrescentou:
— Inês, eu sou um homem como tantos outros e, em quaisquer circunstâncias difíceis, não negaria a minha condição, mas, embora não tendo nenhum propósito de separar-me de seu caminho, creia que, se um dia a morte se interpuser entre nós, nada nem ninguém poderá retirar você de minh’alma.
20 E se, na condição de homem isolado, buscar o convívio com essa ou aquela mulher, isso seria o meu desespero em procurar inutilmente algum fragmento de sua própria imagem.
Inês, não consigo arredá-la do pensamento, você é tudo para mim…
21 Em seguida, abraçou-a, carinhosamente, acentuando:
— Amo a você cada vez mais.
— Oxalá seja assim! — falou Inês entre lágrimas.
22 No dia imediato, na manhã de sol, D. Pedro e D. Álvaro Pires de Castro, com grande séquito, seguiam para a caça.
23 Inês, junto dos filhos e em companhia de Ana, fixou os dois cavaleiros que chefiavam a excursão até que desaparecessem ao longe, mas, em seguida, caminhou com dificuldade da varanda de pedra — em cujo balcão se debruçara — para dentro de casa, com a tristeza da véspera transformada em nuvem a lhe pesar no coração.
24 Íntima intuição lhe prenunciava penosas ocorrências. Mal sabia que se achava na antevéspera de sua própria morte.
25 Executada a machado, no cepo especialmente levado pelos executores da sentença, no pátio extenso do Paço de Santa Clara, pertencente à própria Quinta das Lágrimas, inutilmente rogou D. Inês para despedir-se dos filhos.
26 Fixada a cabeça no cepo improvisado, ante às últimas estrelas que ainda luziam no lusco-fusco da manhã, Inês foi violentamente degolada.
27 Por muitos dias, a perturbação alucinou-lhe a mente desencarnada, mas depois o ressentimento e a mágoa lhe tomaram o coração. Por mais que fosse insistentemente chamada pelas vozes do Mais Alto ao perdão das ofensas, Inês de Castro uniu-se a D. Pedro nos dias de revolta e de vingança.
28 Quando a sedição do filho contra o poder paterno chegou às vizinhanças da cidade do Porto, é que a influência da Rainha Santa, desencarnada anos antes, atingiu-lhe o coração.
29 Primeiro Isabel ( † ) induziu a nora, a rainha D. Beatriz, ( † ) a fazer a paz entre pai e filho, nas bases da abnegação e da humildade.
30 E somente quando viu Pedro ( † ) render-se ao amor materno, em Marco de Canaveses, ( † ) sob a proteção e inspiração da grande Isabel, é que Inês, consciente de sua própria desencarnação, caiu também vencida pela humildade de Isabel, concordando em retirar-se da presença de D. Pedro — para que ele seguisse em seus novos empreendimentos — acolhendo-se nos braços maternais da Rainha Santa, saindo da paisagem portuguesa, orando e soluçando.
Inês de Castro