Retornemos aos fatos recentes.
Caçava o príncipe pelas bandas de Penacova, ( † ) arredores de Coimbra, distante cerca de vinte quilômetros do Paço de Santa Clara. ( † ) Algo, no entanto, o incomodava interiormente.
Na tarde de 7 de janeiro, D. Pedro ( † ) servia-se da caça com os convidados, quando se ouviu ruidoso tropel.
Um cavaleiro recém-chegado, talvez a pedido de Ana, em desespero, insistiu em falar-lhe, a despeito dos amigos buscarem afastar o exausto desconhecido.
Suado, agitado, o homem tanto implorou que o levaram à presença do infante.
— O que quereis? — perguntou Pedro impaciente.
— Senhor, desculpai-me, mas tenho algo muito grave a comunicar-vos.
— Falai, então!
— A Senhora D. Inês ( † ) foi presa por decisão do rei, arrancada ao leito com muita violência. Parece que querem matá-la…
— Como? O que quereis dizer-me?
O bom homem saíra tão apressado de Coimbra, que possivelmente ainda ignorasse o trágico desfecho.
— Talvez haja tempo de Vossa Alteza salvá-la…
E não conseguiu falar mais nada, pois o príncipe o deixara em direção à montaria, dando ordens desencontradas aos seus imediatos.
Semblante contraído, arremessa-se sobre o cavalo qual bloco de pedra pressionando o lombo do pobre animal. Segura as rédeas com as mãos firmes e cavalga célere rumo de Coimbra.
Um turbilhão de lembranças conturba sua mente, e o olhar fixo persegue um ponto ainda distante em que busca alcançar a companheira querida e os filhos.
Atormentam-no as recentes preocupações de Inês — às quais não deu crédito — e as sábias admoestações maternas:
— Cuidado, meu filho, as coisas não vão bem, tua companheira corre risco…
— Por que não dei ouvidos às advertências de minha mãe? — verbera, escandindo as palavras, como se desejasse que todo o mundo ouvisse seu arrependimento.
Também as ponderações do amigo Álvaro Pereira, ( † ) na última vez em que se encontraram, insistiam em acompanhá-lo naqueles momentos:
— Pedro, fica atento às decisões que a Corte pode tomar. O rei anda muito preocupado: tuas ligações com Inês o assustam…
Já consumada a decapitação de Inês, eis que vemos Pedro — ainda desconhecendo a extensão do ocorrido — retornar a Coimbra sem os troféus da desafortunada caçada.
Envolvido pela avalanche de ideias que não consegue sufocar e extenuado pela longa cavalgada, chega ao palácio real nas primeiras horas da noite.
O desespero incontido o faz gritar por Inês, enquanto percorre as dependências do palácio, caminhando a passos vacilantes.
Ao adentrar na alcova, encontra Ana, a fiel aia de Inês, com os cabelos grisalhos desbaratados e a alma cortada pela dor, e, junto dela, as crianças: Beatriz, ( † ) a mais nova, no colo, e, agarrados à gentil senhora, João ( † ) e Dinis ( † ) — os três muito pequenos ainda para compreenderem o ocorrido. Ana, que tudo fizera para dissuadir Pero Coelho ( † ) de executar a cruel sentença, quedava-se com os olhos parados a contemplar o futuro rei. Informou-o, sem delongas, em lágrimas, que Inês estava na igreja do convento.
Aguarda o infante o corpo já frio de Inês, ataviado pela irmã do Convento de Santa Clara ( † ) — a mesma religiosa que se tornaria amiga inseparável da jovem nos séculos vindouros.
Foi tão comovente o que se passou após Pedro constatar a dimensão da tragédia ocorrida que, a seguir, pela sua aguda sensibilidade, vamos reproduzir, ipsis litteris, o difícil diálogo entre Pedro e Ana, segundo Mário Domingues:
— É verdade? — Interrogou ele, num grito de desespero.
Ana limitou-se a confirmar, com um movimento vagaroso e triste da cabeça encanecida. Lançou-se, então, pelos corredores, cujas abóbadas ressoavam em medonhos ecos, a urrar como fera mal ferida:
— Vingança!… Vingança!…
E de chofre caiu no lajedo, a contorcer-se horrivelmente, olhos alucinados, mãos crispadas, dentes cerrados e lábios brancos de escuma. A febre apossara-se dele. Durante muitos dias, perdera a noção das coisas deste mundo. Quando despertou, só uma ideia lhe enchia a mente: vingar-se.
Nascia um outro D. Pedro, mergulhado na ânsia de vingança, o que era tradição e constava das leis consuetudinárias da época com o nome de direito de revindita, herança dos visigodos.
A legislação aceita permitia a vingança em grau muito maior, como compensação da dor sofrida.
Era tão forte, sobretudo na Península Ibérica, essa figura de ódio constante do Direito Consuetudinário da Europa, que se falava a respeito: mais que direito, a vingança era um dever.
Entretanto, apesar de ser um homem da época, obrigatoriamente afeito às regras do comportamento medieval, algo mais profundo começava a agitar-se em seu espírito: a influência da Rainha Santa, ( † ) que recolhera Inês no Plano Espiritual e assistia o neto nas trevas em que se encontrava, buscando asserenar-lhes o coração.
Mais adiante, descreveremos a insânia que tomou conta do reino de Portugal, até há pouco vivendo invejável estabilidade sob o comando firme e sereno de Afonso IV, ( † ) que, porém, provocou, com seu ato violento, o desencadeamento de uma guerra civil com saques, mortes e sofrimento.
Somente a intervenção de Isabel de Aragão, do Plano Espiritual, pôde modificar o quadro.
Trabalhou diuturnamente para que, alguns meses depois, a cinco de agosto de 1355, fossem assinadas, na vizinhança do Porto, as Pazes de Canaveses, ( † ) ato jurídico que reaproximaria pai e filho, salvando Portugal de um conflito de imensas proporções.
Caio Ramacciotti