1.
Ante as portas livres de acesso ao trabalho cristão e ao conhecimento
salutar que André Luiz vai desvelando, recordamos prazerosamente a
antiga lenda egípcia do peixinho vermelho.
2 No centro de formoso jardim, havia
grande lago, adornado de ladrilhos azul-turquesa. Alimentado por diminuto
canal de pedra, escoava suas águas, do outro lado, através de grade
muito estreita.
3 Nesse reduto acolhedor,
vivia toda uma comunidade de peixes, a se refestelarem, nédios e satisfeitos,
em complicadas locas, frescas e sombrias. Elegeram um dos concidadãos
de barbatanas para os encargos de rei, e ali viviam, plenamente despreocupados,
entre a gula e a preguiça.
4 Junto deles, porém, havia
um peixinho vermelho, menosprezado de todos.
Não conseguia pescar a mais leve larva, nem refugiar-se nos nichos barrentos.
5 Os outros, vorazes e gordalhudos,
arrebatavam para si todas as formas larvárias e ocupavam, displicentes,
todos os lugares consagrados ao descanso.
6 O peixinho vermelho que
nadasse e sofresse. Por isso mesmo era visto, em correria constante,
perseguido pela canícula ou atormentado de fome.
7 Não encontrando pouso no
vastíssimo domicílio, o pobrezinho não dispunha de tempo para muito
lazer e começou a estudar com bastante interesse.
8 Fez o inventário de todos
os ladrilhos que enfeitavam as bordas do poço, arrolou todos os buracos
nele existentes e sabia, com precisão, onde se reuniria maior massa
de lama por ocasião de aguaceiros.
9 Depois de muito tempo, à
custa de longas perquirições, encontrou a grade do escoadouro.
10 À frente da imprevista oportunidade
de aventura benéfica, refletiu consigo:
— “Não será melhor pesquisar a vida e conhecer outros rumos?”
11 Optou pela mudança.
Apesar de magérrimo pela abstenção completa de qualquer conforto, perdeu várias
escamas, com grande sofrimento, a fim de atravessar a passagem estreitíssima.
12 Pronunciando votos renovadores,
avançou, otimista, pelo rego d’água, encantado com as novas paisagens,
ricas de flores e sol que o defrontavam, e seguiu, embriagado de esperança…
13 Em breve, alcançou grande
rio e fez inúmeros conhecimentos.
Encontrou peixes de muitas famílias diferentes, que com ele simpatizaram, instruindo-o quanto aos percalços da marcha e descortinando-lhe mais fácil roteiro.
14 Embevecido, contemplou nas
margens homens e animais, embarcações e pontes, palácios e veículos,
cabanas e arvoredo.
15 Habituado com o pouco, vivia
com extrema simplicidade, jamais perdendo a leveza e a agilidade naturais.
Conseguiu, desse modo, atingir o oceano, ébrio de novidade e sedento de estudo.
16 De início, porém, fascinado
pela paixão de observar, aproximou-se de uma baleia para quem toda a
água do lago em que vivera não seria mais que diminuta ração; impressionado
com o espetáculo, abeirou-se dela mais que devia e foi tragado com os
elementos que lhe constituíam a primeira refeição diária.
17 Em apuros, o peixinho aflito
orou ao Deus dos Peixes, rogando proteção no bojo do monstro e, não
obstante as trevas em que pedia salvamento, sua prece foi ouvida, porque
o valente cetáceo começou a soluçar e vomitou, restituindo-o às correntes
marinhas.
18 O Pequeno viajante, agradecido
e feliz, procurou companhias simpáticas e aprendeu a evitar os perigos
e tentações.
19 Plenamente transformado
em suas concepções do mundo, passou a reparar as infinitas riquezas
da vida. Encontrou plantas luminosas, animais estranhos, estrelas móveis
e flores diferentes no seio das águas. Sobretudo, descobriu a existência
de muitos peixinhos, estudiosos e delgados tanto quanto ele, junto dos
quais se sentia maravilhosamente feliz.
20 Vivia, agora,
sorridente e calmo, com centenas de amigos, no Palácio de Coral que
elegera para residência ditosa, n quando, ao se referir ao seu começo
laborioso, veio a saber que somente no mar as criaturas aquáticas dispunham
de mais sólida garantia, de vez que, quando o estio se fizesse mais
arrasador, as águas de outra altitude continuariam a correr para o oceano.
21 O peixinho pensou, pensou…
e sentindo imensa compaixão daqueles com quem convivera na infância,
deliberou consagrar-se à obra do progresso e salvação deles.
22 Não seria justo
regressar e anunciar-lhes a verdade? Não seria nobre ampará-los, prestando-lhes
a tempo valiosas informações?
Não hesitou.
23 Fortalecido pela generosidade
de irmãos benfeitores que com ele viviam no Palácio de Coral, empreendeu
comprida viagem de volta.
24 Tornou ao rio, do rio dirigiu-se
aos regatos e dos regatos se encaminhou para os canaizinhos que o conduziram
ao primitivo lar.
25 Esbelto e satisfeito como
sempre, pela vida de estudo e serviço a que se devotava, varou a grade
e procurou, ansiosamente, os velhos companheiros.
26 Estimulado pela proeza de
amor que efetuava, supôs que o seu regresso causasse surpresa e entusiasmo
gerais. Certo, a coletividade inteira lhe celebraria o feito, mas depressa
verificou que ninguém se mexia.
27 Todos os peixes continuavam
pesados e ociosos, repimpados nos mesmos ninhos lodacentos, protegidos
por flores de lótus, de onde saíam apenas para disputar larvas, moscas
ou minhocas desprezíveis.
28 Gritou que voltara a casa,
mas não houve quem lhe prestasse atenção, porquanto ninguém, ali, havia
dado pela ausência dele.
29 Ridiculizado, procurou,
então, o rei de guelras enormes e comunicou-lhe a reveladora aventura.
O soberano, algo entorpecido pela mania de grandeza, reuniu o povo e permitiu que o mensageiro se explicasse.
30 O benfeitor desprezado,
valendo-se do ensejo, esclareceu, com ênfase, que havia outro mundo
líquido, glorioso e sem fim. Aquele poço era uma insignificância que
podia desaparecer, de momento para outro. 31
Além do escoadouro próximo desdobravam-se outra vida e outra experiência.
Lá fora, corriam regatos ornados de flores, rios caudalosos repletos
de seres diferentes e, por fim, o mar, onde a vida aparece cada vez
mais rica e mais surpreendente. 32
Descreveu o serviço de tainhas e salmões, de trutas e esqualos. Deu
notícias do peixe-lua, do peixe-coelho e do galo-do-mar. Contou que
vira o céu repleto de astros sublimes e que descobrira árvores gigantescas,
barcos imensos, cidades praieiras, monstros temíveis, jardins submersos,
estrelas do oceano e ofereceu-se para conduzi-los ao Palácio de Coral,
onde viveriam todos, prósperos e tranquilos. 33
Finalmente os informou de que semelhante felicidade, porém, tinha igualmente
seu preço. Deveriam todos emagrecer, convenientemente, abstendo-se de
devorar tanta larva e tanto verme nas locas escuras e aprendendo a trabalhar
e estudar tanto quanto era necessário à venturosa jornada.
34 Assim que terminou, gargalhadas
estridentes coroaram-lhe a preleção.
Ninguém acreditou nele.
35 Alguns oradores tomaram
a palavra e afirmaram, solenes, que o peixinho vermelho delirava, que
outra vida além do poço era francamente impossível, que aquela história
de riachos, rios e oceanos era mera fantasia de cérebro demente e alguns
chegaram a declarar que falavam em nome do Deus dos Peixes, que trazia
os olhos voltados para eles unicamente.
36 O soberano da comunidade,
para melhor ironizar o peixinho, dirigiu-se em companhia dele até à
grade de escoamento e, tentando, de longe, a travessia, exclamou, borbulhante:
— “Não vês que não cabe aqui nem uma só de minhas barbatanas? Grande tolo! Vai-te daqui! Não nos perturbes o bem-estar… Nosso lago é o centro do Universo… Ninguém possui vida igual à nossa!…”
37 Expulso a golpes de sarcasmo,
o peixinho realizou a viagem de retorno e instalou-se, em definitivo,
no Palácio de Coral, aguardando o tempo.
38 Depois de alguns anos, apareceu
pavorosa e devastadora seca.
As águas desceram de nível. E o poço onde viviam os peixes pachorrentos e vaidosos esvaziou-se, compelindo a comunidade inteira a perecer, atolada na lama…
2.
— O esforço de André Luiz, buscando acender luz nas trevas, é semelhante
à missão do peixinho vermelho.
2 Encantado com as descobertas
do caminho infinito, realizadas depois de muitos conflitos no sofrimento,
volve aos recôncavos da Crosta Terrestre, anunciando aos antigos companheiros
que, além dos cubículos em que se movimentam, resplandece outra vida,
mais intensa e mais bela, exigindo, porém, acurado aprimoramento individual
para a travessia da estreita passagem de acesso às claridades da sublimação.
3 Fala, informa, prepara, esclarece…
4 Há, contudo, muitos peixes humanos que sorriem e passam, entre a mordacidade e
a indiferença, procurando locas passageiras ou pleiteando larvas temporárias.
5 Esperam um paraíso gratuito
com milagrosos deslumbramentos depois da morte do corpo.
6 Mas, sem André Luiz e sem
nós, humildes servidores de boa vontade, para todos os caminheiros da
vida humana pronunciou o Pastor Divino as indeléveis palavras: — “A
cada um será dado de acordo com as suas obras.” ( † )
Emmanuel
Pedro Leopoldo, 22 de fevereiro de 1949.
[1] [Nota: Na 1ª edição: “Vivia, agora,
sorridente e calmo, no Palácio de Coral que
elegera, com centenas de amigos, para residência ditosa,” a mudança na posição dos elementos da frase foi feita pela editora, melhorando sua compreensão.]