1 Não obstante amoroso, Judas era, muita vez, estouvado e inquieto. Apaixonara-se pelos ideais do Messias, e, embora esposasse os novos princípios, em muitas ocasiões surpreendia-se em choque contra ele. Sentia-se dono da Boa Nova e, pelo desvairado apego a Jesus, quase sempre lhe tomava a dianteira nas deliberações importantes. Foi assim que organizou a primeira bolsa de fundos da comunhão apostólica, e, obediente aos mesmos impulsos, julgou servir à grande causa que abraçara, aceitando a perigosa cilada que redundou na prisão do Mestre.
2 Apesar dos estudos renovadores a que sinceramente se entregara, preso aos conflitos íntimos que lhe caracterizavam o modo de ser, ignorava o processo de conquistar simpatias. Trazia constantemente nos lábios uma referência amarga, um conceito infeliz.
3 Quando Levi se reportava a alguns funcionários de Herodes, simpáticos ao Evangelho, dizia, mordaz:
— São víboras disfarçadas. Sugam o erário público, bajulam sacerdotes e deixam-se pisar pelo romano dominador… A meu parecer, não passam de espiões…
4 O companheiro ouvia tais afirmativas, com natural desencanto, e os novos colaboradores dele se distanciavam menos entusiasmados.
5 Generosa amiga de Joana de Cusa ofereceu, certo dia, os recursos precisos para a caminhada do grupo, de Cafarnaum a Jerusalém. Porém, recebendo a importância, o apóstolo irrefletido alegou, ingratamente:
— Guardo a oferta; contudo, não me deixo escarnecer. A doadora pretende comprar o Reino dos Céus, depois de haver gozado todos os prazeres do reino da Terra. Saibam todos que este é um dinheiro impuro, nascido da iniquidade.
Estas palavras, pronunciadas diante da benfeitora, trouxeram-lhe indefinível amargura.
6 Em Cesareia, heroica mulher de um paralítico, sentindo-se banhada pelos clarões do Evangelho, abriu as portas do reduto doméstico aos desamparados da sorte. órfãos e doentes buscaram-lhe o acolhimento fraternal. O discípulo atrabiliário, no entanto, não se esquivou à maledicência:
— E o passado dela? — Clamou cruelmente, — o marido enfermou desgostoso pelos quadros tristes que foi constrangido a presenciar. Francamente, não lhe aceito a conversão. Certo, desenvolve piedade fictícia para aliciar grandes lucros.
A senhora, duramente atingida pelas descaridosas insinuações, paralisou a benemerência iniciante, com enorme prejuízo para os filhos do infortúnio.
7 Quando o próprio Messias abençoou Zaqueu e os serviços dele, exclamou Judas, indignado, às ocultas:
— Este publicano pagará mais tarde. Escorcha os semelhantes, rodeia-se de escravos, exerce avareza sórdida e ainda pretende o Reino Divino!… Não irá longe… Enganará o Mestre, não a mim…
Alimentando tais disposições, sofria a desconfiança de muitos. De quando em quando, via-se repelido delicadamente.
8 Jesus, que em silêncio lhe seguia as atitudes, aconselhava prudência, amor e tolerância. Mal não terminava, porém, as observações carinhosas, chegava Simão Pedro, por exemplo, explicando que Jeroboão, fariseu simpatizante da Boa Nova, parecia inclinado a ajudar o Evangelho nascente.
— Jeroboão? — Advertia Judas, sarcástico, — aquilo é uma raposa de unhas afiadas. Mero fingimento! Conheço-o há vinte anos. Não sabe senão explorar o próximo e amontoar dinheiro. Houve tempo em que chegou a esbordoar o próprio pai, porque o infeliz lhe desviou meia pipa de vinho!…
9 A verdade, porém, é que as circunstâncias, pouco a pouco, obrigaram-no a insular-se. Os próprios companheiros andavam arredios. Ninguém lhe aprovava as acusações impulsivas e as lamentações sem propósito. Apenas o Cristo não perdia a paciência. Gastava longas horas, encorajando-o e esclarecendo-o afetuosamente…
10 Numa tarde quente e seca, viajavam ambos, nos arredores de Nazaré, cansados de jornada comprida, quando o filho de Kerioth indagou, compungido:
— Senhor, por que motivos sofro tão pesadas humilhações? Noto que os próprios companheiros se afastam, cautelosos, de mim… Não consigo fazer relações duradouras. Há como que forçada separação entre meu espírito e os demais… Sou incompreendido e vergastado pelo destino…
E levantando os olhos tristes para o Divino Amigo, repetia:
— Por quê?!…
11 Jesus ia responder, condoído, observando que a voz do discípulo tinha lágrimas que não chegavam a cair, quando se acercaram, subitamente, de poço humilde, onde costumavam aliviar a sede. Judas, que esperava ansioso aquela bênção, inclinou-se, impulsivo e, mergulhando as mãos ávidas no líquido cristalino, tocou inadvertidamente o fundo, trazendo largas placas de lodo à tona.
— Oh! oh! Que infelicidade! — Gritou, em desespero.
12 O Mestre bondoso sorriu calmamente e falou:
— Neste poço singelo, Judas, tens a lição que desejas. Quando quiseres água pura, retira-a com cuidado e reconhecimento. Não há necessidade de alvoroçar a lama do fundo ou das margens. Quando tiveres sede de ternura e de amor, faze o mesmo com teus amigos. Recebe-lhes a cooperação afetuosa sem cogitar do mal, a fim de que não percas o bem supremo.
Pesado silêncio caiu entre o benfeitor e o tutelado.
O apóstolo invigilante modificou a expressão do olhar, mas não respondeu.
Irmão X
(Humberto de Campos)