1 Quando o Espírito comunicante, cheio de boa vontade, se referiu ao domicílio na vida extrafísica, Rafael, um irmão que se caracterizava pelos primores da inteligência, objetou, mordaz:
— Casas no Além? Que contrassenso!…
2 O mensageiro, não obstante desapontado, registou impressões da vida social no “outro mundo”. Então, o mesmo cavalheiro ironizou sem pestanejar:
— Ora esta! Sociólogos além-túmulo? Era o que nos faltava.
3 O emissário não desanimou. Aludiu aos jardins que lhe cercavam a residência.
— Que é isso? — Indagou o investigador que apreciava os sarcasmos sem-fim, — serão os jardins suspensos de Semíramis? Qual! Tudo mera ilusão!… Depois de nossas roseiras espinhosas e de nossos adubos desagradáveis, não há canteiros de fluidos.
4 A entidade perseverante reportou-se aos institutos de ensino que frequentava. No entanto, o mau obreiro deu-se pressa em considerar:
— Se os “mortos” estiverem sujeitos à luta estudantil, estamos francamente perdidos.
5 O comunicante não desistiu. Passou a dizer da expectativa sublime que alimentava, aguardando a esposa querida, além do sepulcro. O companheiro irreverente, entretanto, fez-se ouvir na mesma inflexão de zombaria:
— Deliciosa mentira! Onde já se viu casamento na Esfera das almas?
6 O portador da mensagem não desfaleceu. Comentou os problemas do corpo sutil que lhe servia, agora, à consciência. Enumerou as facilidades e os obstáculos que o defrontavam, mas o fraternal inquisidor observou, céptico:
— Espírito não tem corpo. Simples fantasia. Presenciamos fenômenos de puras impressões alucinatórias.
7 O prestimoso estafeta das boas novas, que vinha do reino espiritual, despediu-se finalmente.
Ante os colegas curiosos e inquietos, o renitente analista esclarecia enfaticamente:
— Mais objetividade! Nada de ilusões! Sou um homem que sabe julgar.
8 Após o incidente, afastou-se do grupo de trabalhadores do bem. Afirmava-se demasiadamente realista para aceitar, sem maior exame, as descrições dos desencarnados. Situava a concepção doutrinária num campo de absoluta transcendência.
9 Devotados amigos, bastas vezes, rogaram-lhe a volta aos estudos. Parentes interpunham recursos afetivos, a fim de que retomasse o salutar esforço da crença religiosa. Todavia, foi Rafael impermeável a todas as ponderações. Ouvia os apelos, esboçava gesto brejeiro e arremedava um texto evangélico:
— Deem à matéria o que é da matéria e ao espírito o que é do espírito. Fora disso, não compreendo a atitude de vocês.
10 E rematava, orgulhoso de si:
— Não se esqueçam de que sou um homem que sabe julgar.
11 Veio, porém, o minuto em que foi arrebatado da vida carnal. Desalentado, aflito, estabelecia a própria identidade. Afinal, — monologava para dentro, — a mudança não fora tão grande. Mentalmente, sentia-se o mesmo homem. E, no íntimo, não conseguia eliminar o desejo louco de regressar aos negócios, atividades e afetos que o imantavam ao campo humano. 12 Meditava na justiça divina e buscava tranquilizar-se. Não se lembrava de haver praticado o mal com o propósito deliberado de ferir alguém. Não cometera crime algum. No fundo dalma, contudo, mantinha certa inquietude. Concluía que prejudicara a si mesmo. Não se dera à observação da verdade, tanto quanto devia. Não seria razoável o retorno à zona terrestre, para intensificar indagações? Quem sabe? Talvez pudesse prover-se de melhores recursos, em benefício da paz interna.
13 A aproximação de iluminado mensageiro espiritual sustou-lhe a marcha dos pensamentos. Contemplou-o, esperançoso, e pediu, com respeito:
— Benfeitor divino, acudi-me!… Dizei-me onde está a minha propriedade terrestre?
14 O interpelado respondeu com benevolência:
— Propriedade sua? Que enorme equívoco!…
— E meu corpo físico? — Interrogou Rafael, choroso.
— Seu veículo de carne, agora, meu amigo, é simples fantasia.
— Meus bens?
15 O emissário sorriu e ajuntou:
— Se seu tesouro não está guardado no espírito imperecível, suas vantagens de outro tempo não passavam de ilusão…
16 — Minhas apólices, meus títulos? Registavam-me o nome!…
— Para impressão de alguns anos, — esclareceu o preposto da realidade divina.
17 — Meus filhos?
— Eram de Deus, primeiramente, antes de serem encaminhados à sua paternidade provisória.
18 — Minha mulher? Onde está ela? Sempre me obedeceu cegamente. Dar-se-á o caso de haver-me abandonado também?!…
— Sua companheira associava-se com renúncia e bondade ao seu destino, mas nunca foi uma escrava de seus caprichos. Conserva um título de filiação celeste, tanto quanto você mesmo.
19 — Meu gabinete na cidade, meu sítio no campo, meus documentos, meus interesses…
— Sim, tudo para você, presentemente, é serviço feito, resíduo do passado, que persiste em deter na mente enfermiça, antes de verificar o proveito das lições que viveu no mundo…
20 — Oh! que horror! — Gritou Rafael, apavorado, — como entender tudo isto? Quem estará sob o domínio de simples impressões? Os que partem da Terra ou os que por lá se demoram? os que “morrem” ou os que “vivem”?
O benfeitor sorriu, de novo, e concluiu:
— Consulte a própria consciência. Como sempre, você é um homem que sabe julgar…
Irmão X
(Humberto de Campos)