1 Um anjo de longínquo sistema, interessado em conhecer os variados aspectos e graus da razão na Inteligência Universal, pousou num campo terrestre e, surpreso ante a paisagem, aí encontrou um homem e um boi. Admirou as flores silvestres, fixou os horizontes coloridos de sol e rejubilou-se com a passagem do vento brando, rendendo graças ao Supremo Senhor. Como não dispunha, todavia, de mais larga parcela de tempo, passou à observação direta dos seres que povoavam o solo, aferindo o progresso do entendimento no orbe que visitava.
2 Examinou as pupilas do homem e descobriu a inquietação da maldade. Sondou os olhos do boi e encontrou calma e paz.
3 Usando o critério que lhe era peculiar, concluiu de si para consigo que o boi era superior ao homem. Consolidou a impressão quando, para experimentar, pediu mentalmente aos dois trabalhassem em silêncio. O animal respondeu com perfeição, movimentando-se, humilde, mas o companheiro bípede gritou, espetacularmente, proferindo nomes feios que fariam corar uma pedra.
4 Um tanto alarmado, o anjo recomendou paciência.
O educado bisneto da selva continuou trabalhando, imperturbável e tolerante. Todavia, o irrequieto descendente de Adão estalou um chicote, ferindo as ancas do colaborador de quatro patas.
5 Acabrunhado agora, diante da cena triste, o sublime embaixador pediu atitudes de sacrifício.
O servo bovino obedeceu, sem qualquer relutância, revelando indiscutível interesse em ser útil, distraído das próprias chagas. O administrador humano, contudo, redobrou a crueldade, recorrendo ao ferrão para dilacerar-lhe, ainda mais, a carne sanguinolenta…
6 Sensibilizadíssimo, o fiscal celeste anotou o que supôs conveniente aos fins que o traziam e afastou-se, preocupado,
Não atravessara grande distância e encontrou uma vaca em laço forte, com outro homem a ordenhá-la.
7 Sob impressão indefinível, emitiu apelos à renúncia.
A mãe bovina atendeu com resignação heroica, prosseguindo firme na posição de quem sabia sacrificar-se, mas o ordenhador, antes que o emissário de cima os analisasse, de perto, porque certa mosca lhe fustigava o nariz, esbofeteou o úbere da vaca, desabafando-se. O funcionário dos altos céus, compadecido, acariciou a vítima que se movimentou alguns centímetros, agradavelmente sensibilizada.
O tratador, porém, berrou desvairado, caluniando-a…
— Queres escoucear-me, não é? — Gritou, diabólico.
Ergueu-se lesto, deu alguns passos, sacou de bengala rústica e esbordoou-lhe os chifres.
8 Emocionado, o anjo vivificou as energias da vaca, aplicando o seu magnetismo divino, rogou para ela as bênçãos do Altíssimo, empregou forças de coação no agressor, conferindo-lhe salutar dor de cabeça, efetuou os registos que desejava e retirou-se.
9 Prestes a desferir voo, firmamento a fora, encontrou um gênio sublime da hierarquia terrena.
Cumprimentaram-se, fraternos, e o fiscal divino comentou a beleza da paisagem. Não ocultou, porém, a surpresa de que se possuía. Relacionou os objetivos que o obrigaram a parar alguns minutos na Terra e rematou para o irmão na pureza e na virtude:
— Estou satisfeito com a elevação sentimental das criaturas superiores do Planeta. Cultivam a generosidade, renunciam no momento oportuno, trabalham sem lamentações e, sobretudo, auxiliam, com invulgar serenidade, os inferiores.
10 O anjo da ordem terrestre silenciou, espantado por ouvir tão rasgado elogio aos homens. O outro, no entanto, prosseguiu:
— Tive ocasião de presenciar comovedores testemunhos. Pesa-me confessá-lo, porém: Não posso concordar com a posição dos seres mais nobres da Terra, que se movimentam ainda sobre quatro pés, quando certo animal feroz, que os acompanha, agressivo, já detém a leveza do bípede. Naturalmente, sabe o Altíssimo o motivo pelo qual individualidades tão distintas aqui se encontram unidas para a evolução em comum… Tenho, contudo, o propósito de apresentar um relatório minucioso às autoridades divinas, a fim de modificarmos o quadro reinante.
11 Assinalando-lhe os conceitos, o companheiro solicitou explicações mais claras. O anjo estrangeiro convidou-o a verificações diretas.
O protetor da Terra, desapontado, esclareceu, por sua vez, ser diversa a situação: o bípede é na Crosta Planetária o Rei da Inteligência, guardando consigo a láurea da compreensão, sendo o boi simples candidato ao raciocínio, absolutamente entregue ao livre-arbítrio do controlador do solo. Acentuou que, não obstante operoso e humilde, o cooperador bovino gastava a existência servindo para o bem, e acabava dando os costados no matadouro, para que os homens lhe comessem as vísceras…
12 O forasteiro dos céus mais altos, sem dissimular o assombro, considerou:
— Então, o problema é muito pior…
Pensou, pensou e aduziu:
— Jamais encontrei um planeta onde a razão estivesse tão degradada.
Despediu-se do colega, preparou o afastamento definitivo sem mais delonga e concluiu:
— Apresentarei relatório diferente.
13 Mas ainda não se sabe se o anjo foi pedir medidas ao Trono Eterno para que os bois levantem as patas dianteiras, de modo a copiarem o passo de um herói humano, ou se foi rogar providências aos Poderes Celestiais a fim de que os homens desçam as mãos e andem de quatro, à maneira dos bois…
Irmão X
(Humberto de Campos)